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Contos-->Manuscrito -- 18/09/2012 - 11:34 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

O Manuscrito

I: APROXIMAÇÃO

 

Começar a contar uma história é fácil; o problema é expor os fatos de uma forma verossímil, até porque os fatos podem ser modificados, a narrativa pode torná-los mais ou menos acreditáveis, se é que alguém pode acreditar em algo num tempo em que não se acredita em nada. Um certo filósofo alemão já dizia nos idos do século dezenove que Deus está morto. Se alguém diz isto de peito aberto numa época em que mal a humanidade sabia dos micróbios, o que pensar de hoje em dia? Se ele tivesse nascido hoje, provavelmente mandaria fuzilar o tal inóspito Deus e o reduziria a frangalhos, uma entidade esfacelada...Bem, tal não é o meu propósito; não desejo reduzir quem quer que seja a frangalhos, não desejo nada senão sobreviver. E pensar que há bem pouco tempo, eu ainda dormia com tranquilidade, tocava minha vida como os demais a tocam. Despertava para trabalhar, sabia de meus desajustes biológicos. Cuidava de meu corpo, lia meus livros e escrevia como se fosse escritor, uma pretensão que nunca abandonei, isto apesar do pouco tempo que tinha para trabalhar as minhas ideias...Posso começar a dizer porque eu digo isto a todos, agora, depois de tantos anos, desde que eu achei o Manuscrito. Sempre fui dado a pesquisar livros antigos. Alguns eu os tenho em casa, ou lá aonde agora deixei minhas coisas e que provavelmente um dia serão descobertas as causas desse meu desterro. Quem primeiro vai notar algo de estranho será meu Locatário, mestre em duvidar de tudo o que eu dissesse a meu favor para postergar o pagamento do mês, sempre regateando o preço para baixo. Não que o lugar não fosse aconchegante, pelo contrário! Havia pelo menos duas vizinhas que vez em quando me visitavam com uma insaciável voracidade e ele, o Dono da Verdade não me perdoava pelas queixas dos vizinhos incomodados com o ranger de certas molas. Ele que trocasse as molas, oras! Bem, o Manuscrito...Dessa vez eu deveria ter ouvido o nosso simpático reclamão. Ele me advertira uma vez, com um ar circunspecto, sério, professoral (adorava dar lições de moral nas horas mais impróprias):

--Meu caro, há horas em que a procura pode se tornar a maior inimiga do homem...

Sábias palavras. Talvez eu devesse levá-lo mais a sério e agora vejo que ele antevia algo a meu respeito de que eu nem suspeitava, àquela altura. Mas como eu dizia, adorava procurar livros antigos e mais de um deles jaz em minha pequena biblioteca que vai comigo quando eu me mudo--e de uns tempos para cá o lugar em que eu residia à época dos acontecimentos que eu narro aqui seria meu lugar mais estável e simpático. Eu estava numa de minhas pesquisas de livros antigos, seguindo a indicação de um amigo que conhecera um misterioso cidadão que havia dito que ele conhecia um lugar excelente para os colecionadores de antiguidades literárias. Ouso dizer que o tal misterioso deve fazer parte de um bando diabólico que já tramava algo contra mim, porque logo que cheguei ao lugar, notei a atmosfera algo sinistra assim que entrei no estabelecimento, sendo recebido por um sininho estranho e um camarada que me fazia lembrar aqueles personagens de filmes antigos. Ele devia ter seus um metro e setenta, vestia uma roupa larga até porque tinha a compleição de quem lutava para se manter a um peso rebelde; sapatos puídos, calça com suspensórios e um óculos dourado que devia ser uma antiguidade também... Raros cabelos ainda prateavam sua testa. Ele lia algo quando eu apontei à porta.

--Posso ajudar? Temos livros antigos, raridades verdadeiras. Pode olhar à vontade: Todos os que aqui vêm, voltam muitas vezes.

Comecei a explorar os labirintos da loja; a entrada não dava a exata dimensão do que era a loja toda. Quando notei, eu estava perdido e não havia fio que me guiasse a não ser o sino que volta e meia tocava, cada vez mais longe enquanto que mais e mais livros maravilhosos me encantavam. Livros como a Divina Comédia, com ilustrações feitas a bico de pena. Uma cópia perfeita! Mas havia livros realmente antigos, alguns com páginas amareladas pelo manuseio de muitas mãos, outros de capas duras e carcomidas nas beiradas. Um exemplar do Paraíso Perdido chamou minha atenção: A ilustração da contracapa ornava perfeitamente a obra de Milton.

--...Gosta de livros antigos?

O autor da pergunta pairava ao lado de uma das estantes onde haviam livros raros, não sei de onde aparecera. Carregava em seu rosto algo trágico, como se estivesse a ponto de chorar, ou muito emocionado. Eu lhe disse que sim, que adorava livros antigos. Eu geralmente comprava um a cada mês, e o fiz saber que era um amante de boa literatura. Também o fiz saber que queria ficar só mas ele não se fez de rogado. Nada tinha a ver com o dono da loja.Antes que eu pudesse fazer algo, ele já chegara perto e me indicava o tal Manuscrito. Ele me disse que o tal Manuscrito era muito antigo.

--Talvez, segundo apuram, ele venha do Antigo Egito, porém há os que defendam a hipótese de ter sido escrito muito antes; o documento teria sido escrito pelos atlantes, antes do continente ter sido submerso pela catástrofe que se repete...

--Como assim?

--São catástrofes cíclicas. Em verdade, talvez sejamos a quinta raça que vive sobre o planeta. Eles (os atlantes) chegaram ao apogeu uns 800.000 anos atrás. Sua evolução era tal  que deixou marcas no planeta todo. As pirâmides, a Esfinge. Teotihuacán. Ilha de Páscoa. Desapareceram sem deixar vestígios... a não ser o Manuscrito, que seria uma releitura de um outro antigo, mais ainda, que teria sido escrito pelos antecessores deles.

Da mesma maneira que iluminou o assunto, o gajo sumiu. Às vezes tenho a impressão que ele simplesmente se dissolveu no ar. Teria estado ali, ou teria sido um fruto de minha ansiedade para achar o tal Manuscrito? Há os que dizem ser a mente um labirinto e que ela nos aprisiona aonde quer chegar, se é que quer chegar a algum lugar. O Minotauro de nossa mente é a nossa própria percepção distorcida. A realidade é aquilo que se apresenta ou é um simulacro de algo maior? Seremos rascunhos de uma experiência cósmica? Enquanto procurava o tal documento, eu pensava num certo autor que conta que um sonho é um esquema proposto por alguém que sonha o sonho, fora dele. Isto é, o sonho é a realidade e a realidade é sonho. Eu estava quase chegando a esta conclusão quando deparei com o tal do manuscrito... Uma capa de um material que se diria resistente, talvez um tipo de couro. Eu não sabia precisar  sua cor: Talvez vermelho escuro, talvez marrom com tons de vermelho. No prefácio, alguém advertia que "nas entradas dos labirintos, costuma-se hesitar e é saudável, porque a contrapartida está no fundo da escuridão. Tomai, pois, o fio de Ariadne e temei o Desconhecido. Não há religião maior que a verdade!" A citação era de algum teosofista, dir-se-ia recente pois, mais do que a origem do documento em si. Além do que se via, existiam pequenas anotações à margem, escritas em língua cifrada. À guisa de introdução, alguém avisa que o que se lerá a seguir dá o exemplo de como o Homem pode perecer quando imita os deuses: "O que se lerá bem pode ser uma advertência do que pode acontecer ao Homem quando nega de si a natureza divina ou quando se alça a tais alturas que se lhe derretem as penas e despenca ele ao abismo que o cerca. Este Manuscrito foi traduzido de uma língua antiga por mais antigos egípcios, que o herdaram de uma tradição tão antiga que se diz das origens do mundo. Coube a nós trazê-lo à superfície."  Um estranho sinete abria o documento que era pois a tradução vertida para o inglês de um documento trazido aos antigos egípcios de algo escrito em uma língua mais antiga ainda. Meio incrédulo, iniciei a leitura de tal documento, incerto ainda do que iria encontrar nele.

Iniciava-se uma espécie de narrativa:

"São os anos da colheita. Eu, que aqui escrevo, registro que no céu as estrelas já mudaram de lugar quatro vezes antes de eu mesmo viver e antes de meu povo existir. Nos anos da colheita, o vento é quente, vem do grande Oceano uma brisa que acalenta nossas costas e as florestas que beiram os morros são batidas pela brisa que encontra nossas casas de portas abertas. As altas montanhas se tingem de branco nos cimos e as nuvens as cobrem de manchas brancas. De lá do alto, desde que o frio foi embora, descem as águas que se juntam aos poucos e se tornam em rios que se fundem formando caudalosos cursos d'água e que enchem nossos vales de férteis terras e de esperança. Sou Toolak, filho de Thuurk e Atlan, filhos de Tooriam e Thaark. Nossa casa é ampla  e aqui em nossa cidade vivemos em paz; temos de pagar o dízimo de nossa colheita ao governo central, no centro de nosso país cercado ao leste por terras ainda frias, ao oeste por uma grande ilha desconhecida e ao sul por extensas águas e pântanos malcheirosos. Pastam em nossas terras alguns Chhamm, lentos a mascar a erva e rápidos em seu trote; vieram das terras frias e se espalham sozinhos nas pradarias e vales de nossa terra e são formosos e garbosos. Aceitam nossas cercas mas de vez em quando alguns fogem para as longínquas praias quentes de nosso imenso litoral.

"Minha esposa se chama Larya, bela moça filha de Tlanctl e Oximatl, casal descendente das antigas tribos do sul, de pele acobreada e alta estatura. Sempre se disseram de pura raça, descendentes dos guerreiros antigos que conquistaram nossas terras que agora formam imensa nação. Eu não acredito na pureza da raça, eu acredito na beleza de Larya; nossos filhos, Myia e Laacl, um casal de gêmeos, correm rindo nos campos arados de nossa comunidade, acompanhados de Larr, nosso guardião desde há anos. Os guardiães são talhados para a tarefa, são robustos e se alimentam de quaisquer coisas, aceitam nossa companhia e dormem aos pés de nossas camas, ouvidos sempre atentos ao mais ínfimo ruído. Não só uma vez Larr surpreendeu ladrões como os estraçalhou, dada a enorme força de suas mandíbulas e seus dentes afiados. São de tal forma leais a nós que podem ser surrados por uma criança que não reagem, apesar de serem praticamente invulneráveis. Cada família tem o seu guardião, cada terra é delimitada pelo seu poder e força."

"Larr há alguns dias levantou-se e ficou teso e atento. As crianças vieram nos chamar porque ele assim levanta as orelhas porque ouve algo ao longe. No entanto, por mais que tentássemos, Larr não saiu de seu lugar. Um rumor, um zumbido então, começou como se fosse assim um ninho das enormes Mozcallah, hábeis criaturas voadoras de picada quase mortal e que tanto assusta os povos próximos ao Pântano. No entanto, foi como se as montanhas se movessem ao longe e pudemos ver que de uma delas descia uma coluna de fumaça e a cobertura branca deixara de existir num enorme cogumelo ameaçador. Dias depois soubemos que um rio que passava perto de nossa fazenda se tornara volumoso a ponto de tragar as casas e toda a criação da pobre família que ainda lá residia. As nossas crianças, sabiam de algo que nós, eu e sua mãe, não desconfiávamos".

"Uma vez a cada sete Laks, eu vou ao centro de nossa cidade, vender o que produzo e assim conseguir os gêneros que preciso para minha família. Os meus amigos estavam lá e comentaram os fatos que eu relatei e alguns disseram que aquele seria um aviso dos deuses das montanhas.  Fui ao Grande Estupa, onde residiam nossos maiores líderes e aonde fazíamos as consultas de quando e como deveríamos plantar para melhores colheitas obter. O templo é enorme, de grandes paredes alvas e com um telhado dourado. Ao entrar, sentamos e podemos consultar nossos grandes Estupas, cidadãos que se valem de seu poder sobre os elementos e de grandes artes mágicas que são mistérios para nós que vivemos de nossas colheitas. Entramos em cabines isoladas e então fechamos os olhos e assim se forma a imagem de um Estupa que diz em voz profunda:

--O que deseja falar, humilde campônio?

--Nossa casa está assustada; nossos filhos sabem de algo mas não o dizem. Nosso guardião se encontra estranho e vimos a montanha se mover ontem. Há algo que devemos temer?

--Nada deveis temer. Há os ensinamentos que dizem que há muito tempo reclamam as montanhas de suas alturas e muitas delas se revoltam; assim ela o fez, mas nada que não possa ser previsto pelas nossas leis que controlam a força das montanhas e a suavidade das ondas.

--Mas, meu maravilhoso Estupa, e as famílias que pereceram afogadas, e suas criações que se perderam e os filhos que órfãos estão? Que será agora dessa gente?

--Filho amado, vós temeis por algo que já foi sanado. Os filhos sem pais já se encontram resguardados e as terras revoltas já cicatrizam suas feridas expostas. Não há que revolver o pântano da dúvida em seu coração nem que prantear o que não lhe pertence. Volve, pois, à vossa terra que lhe espera cheia de bênçãos! Deixai conosco o que é passível de ser curado. Não tomeis a dor de outrem por vossa.Segue em paz e volta aos vossos.

Chegar em casa, encontrar a família reunida à espera dos relatos da cidade cintilante, com o suave aroma das árvores no caminho, Larya e sua calorosa acolhida e sentar à mesa, abrindo a sacola de presentes a víveres. Não há coisa melhor que esta, a recompensa por dias de trabalho duro. Noto, porém, que minha esposa tem olhar grave e os gêmeos têm um ar de interrogação nos olhos claros. Pergunto a ela, ela desvia os olhos e não nega um beijo que promete delícias. No entanto, algo nela está tenso, talvez seu pescoço, uma certa resistência em seu abraço ““.

"--Aconteceu algo que eu não saiba?

--As crianças. Elas me assustam.

--Como assim? O que foi dessa vez?"

 

--...Posso ajudá-lo? Era o dono da livraria.

--Claro que pode. Que história é esta? O tal Manuscrito não passa de um diário de uma família camponesa?

--Meu caro, este é o Manuscrito , assim está escrito.

--Venho até aqui porque um amigo diz que um estranho lhe indicou um Manuscrito que seria secreto, talvez uma raridade.

--O senhor cochilou. Eu o encontrei ressonando sobre o tal...Manuscrito...

--Quanto custa?

--Senhor! Não posso vender este livro.

--Não?

--Não. Definitivamente.

--E porque o expõe, então?

--Porque o senhor veio. Porque eles me avisaram  de sua vinda.

--Eles?

--Tudo se esclarecerá ao seu devido tempo.

--Não pode me vender  o Manuscrito?

--O senhor pode lê-lo aqui; terei prazer em ajudá-lo na tarefa.

"Filho amado, vós temeis por algo que já foi sanado. Os filhos sem pais já se encontram resguardados e as terras revoltas já cicatrizam suas feridas expostas. Não há que revolver o pântano da dúvida em seu coração nem que prantear o que não lhe pertence. Volve, pois, à vossa terra que lhe espera cheia de bênçãos! Deixai conosco o que é passível de ser curado. Não tomeis a dor de outrem por vossa.Segue em paz e volta aos vossos".

--Ouviu algo?

--Senhor, estamos na hora de fechar. Se me permite, eu o acompanho até a saída.

Meus temores se confirmaram, eu realmente extrapolara o meu momento. No entanto, se havia algo lá no Manuscrito, eu o elucidaria. Despedi-me do livreiro e saí pela porta, ouvindo o tilintar do sininho à porta.

--É um belo livro.

Novamente, o mesmo misterioso homem, a mesma entonação de voz anasalada. Um estranho tique nervoso que o fazia coçar a orelha vermelha e a testa gordurenta marcavam seus movimentos...

--Garanto que terá belas leituras. Faça proveito de cada lição delas. Todas são extremamente didáticas. No entanto, há sofrimento. É inerente ao ser humano.

--Pois não. Saberei saborear cada gomo de sabedoria.

Quando me voltei para dizer alguma obscenidade ou coisa que o valha, ele havia sumido. Mania esquisita, sumir assim.

Ainda ouvindo o tilintar da porta e pensando comigo que tipo de  manuscrito era aquele, eu caminhei a passos lentos para minha morada, aonde eu iria ouvir o indefectível discurso do meu locatário. Que assim não poderia manter o prédio, que se todos se eximissem, ele ia à falência, e coisas que tais. Enfim, um fecho de ouro para uma noite produtiva. O caminho para minha casa era escuro, alguns postes mal cuidados escureciam a visão do céu cheio de fuligem, que ardia nos olhos...Espere um pouco, passos atrás de mim? Quem me seguiria àquela hora? Olhei para trás, nada havia de estranho, a não ser o vulto de um gato baldio. Ou de um cachorro latarrão que espreitava o gato. Não sei, eu não vi nada mas, como a prudência anda de passos dados com o cuidado, eu tratei de apressar o andar e meio distraído, quase passei a porta de meu prédio. Estranhei o meu locatário que sempre antes me perguntava do aluguel. Ele, sério, lia um jornal sentado em sua cadeira de couro verde, sob a luz do abajur em sua mesa de escritório, que tinha uma cúpula verde que eu achava parecida com um besouro. A fumaça do cigarro criava o clima noir e ele, levantando as sobrancelhas(ele era dramático...) perguntou:

--Conhece algum Jamal?

--Não. Gamal talvez, mas Jamal nunca.

--...Pois é, esse Jamal se apresentou. Muito distinto, ele se vestia com uma roupa estranha, meio bufante.

--Certo.

--Perguntou por você, se você voltaria logo. Eu não disse nem que não, nem que sim. Vai que é um ladrão! Mas ele falou que não podia lhe esperar e trouxe consigo este canudo. Pediu que você mesmo o abrisse, na hora que achasse apropriada...

--Obrigado!

Subi ao meu andar pelo velho elevador de portas pesadas...Sentei ao sofá e contemplei o canudo de cor vinho, aveludado e com um filete dourado à guisa de acabamento. Abri o canudo, havia algo lá dentro. Um pergaminho...

"Este é o caminho da verdade. Por ele em estreita senda vão os justos e aqueles que eu chamar deverão responder. Se este manuscrito chegou até você, não hesite em lê-lo. A Verdade vale mais que a ilusão que grassa neste mundo. Contemple a Verdade sem a face da ilusão que marca nosso mundo."

Via-se um selo dourado, que ficava por fora, da mesma forma que o selo no tubo que o continha. Era um selo em forma de Mandala; tinha seis formas que se entrecruzavam e no meio delas um tipo de letra que me lembrava o Sânscrito, a escrita dos deuses e sacerdotes. Era a sétima forma. Quem havia mandado aquele manuscrito? Senti uma enorme vontade de retornar ao livreiro; será que ele tinha algo a ver com aqueles fatos? E quem seria Jamal, Gamal ou quem quer que fosse?  No entanto, pelo adiantado da hora, decidi que iria lá no dia seguinte. Já estava irritado, afinal. Em questão de horas, o tal Manuscrito adquirira cores que eu jamais imaginara e sua importância já tomava dimensões que me preocupavam; eu só queria ler um documento raro. Só fora até o livreiro por indicação de meu amigo, não tinha nenhuma intenção outra que ler e me divertir com talvez uma história antiga contada por um povo exótico.Recordei o livreiro, o camarada que comentara sobre o tal documento; os passos na rua escura de meu prédio e este documento estranho trazido por um homem estrangeiro. Não conheço nenhum Jamal; conheço de ouvir falar de um tal Gamal, que meu amigo dizia ser um conhecedor de textos raros e que eventualmente me trouxera livros antigos que ele regateava (muito bem, a propósito) com estranhos donos de sebos escusos. No entanto, o que eu tinha como hábito agora já virara um estranho sonho, mais diria eu um pesadelo.

Eu me preparei para dormir, não sem antes tomar um chá de ervas. Tudo naquele dia parecia diferente, extraordinário. Tudo vinha com uma bruma, um estranho nevoeiro. Não sem razão, tive dificuldade para adormecer...Quando finalmente adormeci, tive um estranho sonho.

"Não nos abandone", dizia uma linda moça. Como eu poderia abandonar vocês? No mar, ondas imensas, verdes, com enormes cristas elevadas como montanhas. O cheiro do mar eu o podia sentir; a maresia se fazia presente em minha língua e em minha pele.Eu a tinha curtida, queimada pelo sol inclemente. A linda moça dizia isso e eu voltava os olhos à baça luz da casa onde vivia e duas crianças também sorriam para mim. Ao fundo, montanhas altas e com os cimos nevados. Um vento tépido, um calor agradável. Ela me olhava e ainda tenho na minha boca o calor daquele cálido beijo, o perfume de seu hálito e o carinho de seus braços. Não, nos vos abandonarei!!! O chão tremeu; podíamos os quatro sentir os movimentos da terra como se fôssemos joguetes. Tudo na casa tilintava e coisas caíam ao chão. Apavoradas, as crianças nos abraçavam. Súbito, ouvimos um rumor, como se fosse um trem ao longe. Olhamos o horizonte e o mar havia regredido. As rochas brotavam do fundo e as águas refluíram. Eu e ela nos abraçamos e aos nossos filhos e vimos a enorme massa de água se avolumando até que os picos das montanhas ao fundo se apagaram com a enorme vaga que se aproximava. Muitos fugiam, nós quatro ficamos no lugar. Eu lhes disse que os protegeria e eles se aninharam a mim. Quando a onda chegou, nós quatro fomos engolfados e a escuridão nos envolveu. Acordei sufocado ainda, com a sensação de tristeza e de enorme solidão ainda presente...

--Deus do céu, que diabos é isso?

                                               ***************

 

--Você está abatido...

--Você acha?

Depois daquela noite horrorosa, que mais eu podia mostrar ao mundo? Meu colega de trabalho recomendou-me descanso. A secretária do escritório mal acreditou em minha palidez. Disse que eu parecia ter sido consumido por uma voragem. Palavras dela. Voragem, vertigem. Era o que eu sentia, e mais de uma vez eu pensara em desistir de mostrar o tal documento ao livreiro, procurando quem sabe alguma resposta às perguntas que se aninhavam em minha mente. Por exemplo, de onde vinha o Manuscrito, realmente? Qual era a ligação daquele documento escrito numa língua estranha com o tal Manuscrito? O que o livreiro podia saber sobre o tal indivíduo que me fornecera pistas dentro de sua livraria? Mal podia esperar para chegar o final do expediente. Larguei às duas. Dirigi-me de imediato ao meu antro de pesquisas, a livraria com o tal Manuscrito que jamais poderia ser vendido. Entrei, tocou o infalível sininho. O livreiro estava lá, com seu ar enigmático e seu ar pensativo e não foi sem surpresa que ele me recebeu.

--Ora, voltamos ao mesmo ponto.

--Claro. Se o senhor me vendesse o documento, talvez se privasse de mim. No entanto...

--Já lhe disse, não o posso vender. Este documento está com minha família faz tempo. Questão de herança, sabe?

Mostrei-lhe o documento que havia recebido de um tal de Jamal, ou Gamal. Ele ficou vivamente interessado, porque ele pegou o Manuscrito original dele que estava exposto e o comparou.

--Veja, estas letras existem aqui e lá. São selos. Onde conseguiu isto?

--Alguém o deixou em minha casa.

--Tem aqui algo muito valioso. Gostaria de comprar do senhor.

--Se alguém o deu a mim, em meu nome, deve significar algo. Não acha?

--Com certeza. Garanto-lhe, no entanto, que em minhas mãos o documento que o senhor possui estará em segurança.

Neguei ao livreiro, quem sabe eu pudesse valorizar o que tinha em mãos e arrecadar bom dinheiro?

--O senhor não sabe o que tem nas mãos. Não sabe!

--Por quê deveria saber?

A atitude do livreiro denotava desconforto e ambição. O que quer que significasse, ele certamente já o sabia e dava todas as indicações de querer tirar de mim tal descoberta...

--Bem, o senhor que sabe. Mas, o senhor gostaria de reler o...Manuscrito?

Fiz que sim com a cabeça. Ele me guiou até a prateleira, aonde o tal texto me esperava, ávido de me devorar, sedento para me sugar em uma voragem e me deixar em vertiginosa companhia. Pareceu-me ver um vulto que nos observava a ambos. Num relance, compreendi, poderia ser minha imaginação já espicaçada pela noite insone. Sempre que deixava de dormir, minhas fantasias se multiplicavam e eu flutuava em meio às vagas de meu inconsciente.O dono da livraria pareceu notar meu desconforto.

--O senhor está abatido. Tem dormido bem?

Não sei se o sorriso que vi nos cantos de seus lábios foi uma ironia ou um esgar de alguém que se via perto de algo muito desejado, porém impossibilitado de realizar seu desejo. Teria algo a ver com o tal selo que Jamal me trouxera?

--Aqui está a prateleira. Bom divertimento.

Deixou-me a sós com a sombra do texto, enquanto eu pegava o pergaminho e o comparava com o Manuscrito. Havia uma notável identidade entre os sinais, embora o Pergaminho parecesse mais velho, mais atingido pelo tempo. No entanto, ambos mostravam mais do que a idade vetusta: Mostravam autoridade, dignidade. Também mostrava que quem quer que fosse o tradutor, talvez tivesse acesso a segredos mais profundos não expressos ali, no Manuscrito mesmo.  Lá estava o sinete; o mesmo sinete que havia no Pergaminho estava no manuscrito. Os dois, definitivamente, tinham uma correlação!

Procurei o texto aonde havia parado na noite anterior. Tinha tempo, iria mais fundo agora.

"“ Este é o caminho da verdade. Por ele em estreita senda vão os justos e aqueles que eu chamar deverão responder. Se este manuscrito chegou até você, não hesite em lê-lo. A Verdade vale mais que a ilusão que grassa neste mundo. Contemple a Verdade sem a face da ilusão que marca nosso mundo"

"--Essas crianças me assustam!

--O que foi desta vez?

--Vou lhe contar, meu marido.

Ele sentou-se porque ela tinha um ar alarmado, assustadiço, como o da pequena corça antes do abate, ou do coelho dos campos em sua fuga dos predadores.

--Hoje pela manhã, logo que você saiu para consultar o Oráculo da Estupa Sagrada, eu dormia e achei ter ouvido um ruído. Pensei que era algum roedor, procurando algo na casa das sementes. Mas não era. Pensei que fosse Larr, que ultimamente anda inquieto.

--Compreendo você.

--Mas não era Larr. Não era, mas eu gostaria que fosse.

Nesse instante, sua pele empalideceu, como se uma onda de terror abominável a preenchesse, ao solicitar uma memória desagradável. Notei suas narinas dilatarem e suas mãos que eu peguei se tornaram úmidas, pegajosas de medo.

--O que a aflige, querida?

--Eu lhe conto, meu marido. Fui espiar atrás da casa das sementes. E o que vi, o que ví..."

Quem ouviu um ruído fui eu. Interrompi minha leitura desinteressada e percorri o local com os olhos, em suspeita atitude; dir-se-ia que eu carregava um pacote de entorpecentes, tal minha cautela...novamente o ruído...

"--Querido marido, era como se folhas fossem, batidas ao vento...Mas não! Eu via um remoinho e perto do remoinho, uma voz que saía do alto, assim como se fosse um sussurro. De lá me aproximei.Apurei os ouvidos. Antes não tivesse ouvido o que tal voz dizia.

--O que ela dizia, querida esposa?

--Ela dizia:

'Em breve, as nuvens descerão nas colheitas, haverá novo infortúnio. No entanto, temei por conta do infortúnio maior que virá ao fim do sexto dia. Grande será a aflição e vos aviso, recolhei os seus pertences e foge para o mais alto dos montes, porquanto vos será dada a chance de perpetuar vossa semente deitada à terra. Ser-vos-á dada a chance de renegar o passado de vergonha e de cortejar um futuro que, de tão distante, nem o vulto se lhe vê, aonde voarão os pássaros de ferro e roncarão as terras como um inferno crepuscular. Ouvi e deixeis o orgulho de lado, porquanto se avolumam as evidências de teu pecado'.

--E então?

--Então, meu marido e amo, tive um vislumbre. Pude ver ao longe, terras que não conheço e que temo que jamais conhecerei. Lá estavam os pássaros de ferro, cidades inauditas, pessoas apressadas e Oceanos cobertos de águas luminosas. Pude ver também em meu vislumbre que os nossos destinos estão selados e que é tempo de nos prepararmos para uma vida mais plena que esta nossa. Uma vida em que a alegria iluminará nossos semblantes, o meu e o seu e os de nossos filhos, na perene eternidade. Pude ver um anjo celestial que abria as portas da Vida para nós. Neste lugar, corria um rio de cristal onde pedras preciosas ornavam os peixes que nadavam plácidos, onde as árvores exalavam perfume das flores e frutos; nossos filhos corriam livres no campo semeado de grãos deliciosos e Larr, liberto de sua escravidão, corria ao lado de Chamms de crina alta, de olhos astutos e felizes. Pude ver, meu querido, que a vida que levamos, apesar de feliz, pode ser e será mais venturosa ainda quando estivermos juntos, os quatro, caminhando na doce planície da ventura eterna. Neste meu vislumbre, eu sentia que isso seria em breve. Também senti que outro seria informado de nossa partida e viria, de um mundo distante, participar de nosso caminho dourado."

Meu coração, ao ler aquelas palavras, disparou. As tênues palavras de Larya, confessando ao esposo seu temor e ao mesmo tempo sua tranquilidade frente ao destino inexorável--Afinal, todos temos este inexorável fim, que pode ser um recomeço--me comoveram às lágrimas. Quem seria o estranho que viria, que participaria do caminho dourado? Com os olhos turvos, ainda de coração opresso, voltei à leitura.

"As crianças brincavam e Larya, sempre previdente, as havia chamado pois a noite era fria; pediu que eles pusesses as blusas de pele que eu havia trazido da cidade quando fora consultar o Estupa Sagrado. Elas vieram.

--Papai, papai, o bosque está cheio de estrelas voadoras.

--Viu? Eu lhe disse, não as pegue!

--Por quê?

--Porque se as pegar, elas entram em sua pele; levam você ao céu e você terá de caminhar entre as estrelas. Daí, ficaremos com muita saudade...

Miya sorriu zombeteiro e abriu a pequenina mão, ao que um vagalume enorme se desprendeu, aparentemente sem nenhum dano, porque seus lampejos iluminavam a sala e ao sair pela janela chamaram a atenção de Larr, que o perseguiu.

--Larr! Deixe a estrela voar.

--Estrelas não voam. Elas estão lá, apontou Lacl para o céu. Elas só mudam quando a Mudança vier, e em breve mudarão de novo de lugar. Mas elas não descerão para nós; nós é que subiremos a elas.

Nós três ouvimos suas palavras com assombro e Larya, com um movimento de cabeça, como que confirmou o que dissera há pouco, que as crianças talvez soubessem de algo que nem eu nem ela sequer desconfiávamos. Lacl sorriu, com suas mechas loiras caindo sobre seus olhos amendoados e voltou aos folguedos com seu irmão gêmeo.

--Você viu? Lacl sabe, Myia sabe, até Larr sabe. O que será, meu querido? O que será que fizemos, nosso povo, nossa cidade, para merecer o desconhecido?

--Mas, como assim, querida?

--Tenho tido sonhos, querido. Sonhos terríveis. Sonhos sobre o mar, sobre as ondas, sobre destroços de barcos que chegam a terras que não são nossas. Sonhos sobre meu fim, nosso fim. Somos tão jovens! Mal saímos de nossos lares paternos para juntar nossos destinos e aqui fazer nossa criação crescer. Cuido tão bem de nosso cantinho, Larr vigia tão bem nossas terras, nossos filhos são tão lindos! O que temos de sofrer? "

 

--Surpreendente, não?

Interrompido em minha leitura, dei com os olhos no mesmo indivíduo que sempre aparece quando menos eu espero. Tez amorenada, nariz que se diria ser ele de algum país do Golfo, olhos argutos, boca fina e um sorriso cruel.

--Em qual sentido?

--Você sabe bem.

--Não estou entendendo.

--A vida, esse surpreendente tecido. Já notou que, como uma tênue rede, a vida aparece e desaparece em todos os sentidos, como um raio?

Aturdido, eu inicialmente pensei que ele brincava. No entanto, sério, falava fitando-me nos olhos. Notei de certa forma que o que quer que eu fizesse, naquele momento, seria um sinal, se para o bem ou para o mal, só ele poderia saber. Não havia ninguém lá, só nós dois. Ele parecia ter a sabedoria de séculos sobre os ombros, daí talvez se explicasse o tom de voz às vezes cansado, enfarado.

--A vida, meu caro, não é um acaso. Pelo menos eu penso assim.

--Como se poderia dizer isto desse evento extraordinário que se desenrola sobre a casca desse mundo onde vivemos?

--Explique melhor.

--...Veja você. Fascinado por um documento que já não sabe se é falso, se não passa de uma falácia, ouve rumores a seu respeito e decide investigar. Dá de encontro...

--Com uma história de carochinha!

--Ou talvez de um Mito, em plena ebulição.

--Que você sabe sobre o Manuscrito?

--Primeiro, devo apresentar-me. Afinal, somos cavalheiros, ou não?

--Tomé.

--Sou Gamal.

--Ah! Foi você que trouxe isso--E retirei o pergaminho da pasta que andava comigo.

--...Exato. Na verdade, um é parte do outro, que ainda faz parte de outro. Infinitos sejam os Manuscritos.

--Infinitos?

--Como queira. Todos são faces de diferentes visões do mundo; O mundo tem diferentes visões; cada qual é diferente uma da outra. São infinitas visões. Esse Manuscrito pode ser apenas uma parte de algo maior que você, eu ou o próprio Manuscrito.

--Você fala de maneira cifrada.

--Entenda o que quiser. Posso dizer a você que isso é uma parte, uma porta pequena demais para a sala que há além dela.

Seguiu-se um silêncio, interrompido por algumas asas de pombos na parte exterior da janela. Arrulhos os denunciavam. O dono da biblioteca jogava migalhas de manhã cedo, os pombos se empanturravam de miolo de pão arremessados por outros lojistas. Do ponto de vista dos pombos, o mundo era vasto, iluminado, seco e pleno de gente de maravilhosa índole. Do meu ponto de vista, os pombos incomodavam a leitura. E do ponto de vista de Gamal?

--Afinal, quem é você?

--Sou Gamal, o guardião das portas.

--Responda: quem o mandou aqui? Por qual razão me vigia? Sou um pequeno burguês, minhas economias eu as tenho guardadas em local seguro. Vivo só. Não preciso de muita coisa...

--Talvez precise visitar o outro lado, além da sala que está por trás da porta que eu vigio...

--O que há com você? Não entendo ainda por quê eu, um mísero servidor do estado, atocaiado em meu abrigo moderno e com banheira de hidromassagem, não entendo em que posso ser útil, se é que tudo isso tem sentido,afinal.

--Não dê importância aos sentidos. Nesta longa viagem que se avizinha, nem um deles serve a quem quer que seja.

Senti um arrepio. Novamente as palavras de meu locatário vieram à minha cabeça. Quem procura, acha e às vezes acha um caminho sem volta.Sentia estar num limiar e Gamal, ali, servia de ponte. No entanto, o dono do estabelecimento, talvez sabendo o que me esperava, resolveu intervir à sua maneira.

--Gostaria de avisar que em breve fecharei. Já é tarde. Minha família me espera para o jantar que se serve às dezenove horas. Somos rígidos e não posso passar uma noite aqui esperando que suas conversas lhes tragam bons frutos a esta hora. Peço, de qualquer forma, mil perdões...

Gamal, antes um nobre, agora humildemente fazia uma saudação típica dos árabes, retirando-se, não sem antes dizer, para que eu ouvisse:

--Mesmo na mais miserável casca de noz se guarda uma terrível tempestade.

"Eu e Larya nos abraçamos enquanto víamos o sol descendo nas colinas e nas altas montanhas rebrilhavam as alvas neves antigas. As crianças se debruçavam sobre um inseto que Larr abatera em pleno vôo, como sempre costumava fazer assim que achava que algo os ameaçava".

Caminhando para casa me perguntava ainda muitas coisas. Algo ali me lembrava os filmes de Andrei Tarkovsky, o sempre presente elemento água, a força do destino imponderável, a sempre presente roda da vida. O Homem não pode fugir ao seu destino. Tem duas escolhas, sempre, ou morre ou enlouquece tentando compreender o seu destino. Uns não aceitam o inevitável e se perdem em ilações perfeitamente evitáveis, inúteis pois que o sol se lhes derreterá as asas, de qualquer forma. Outros se sabem demasiado humanos e sofrem por sua finitude e seu tempo restrito. Tentam, assim, compensar o horror com mil estratagemas e fugas. Claro está, não conseguem fugir ao implacável. Qual das duas atitudes seria a minha? Sentia um poderoso limite se erguendo e eu, do alto de minha vida acomodada, soerguendo os olhos podia ver, bem ao meu alcance, algo que jamais imaginaria em sã consciência há cerca de dois anos atrás. Não pretenderia bombardear o desconhecido nem flertar com o infortúnio...Olhei o relógio, tarde. Muito tarde. Talvez tarde demais para se voltar atrás do que quer que fosse...Dessa vez meu locatário não me aguardara. O silêncio do hall de entrada foi quebrado pelos meus passos rápidos...Procurei algo no balcão, nada havia esperando. Nenhum bilhete.

De noite, o sonho.

 

--Tomé?

--Sim...

--Posso lhe perguntar uma coisa?

--Claro!

--Você tem andado estranho. Abatido, tem dias que chega aqui e entra em sua sala, não sai mais. Tem algo de errado?

--Como assim?

--Algum problema, uma coisa que queira falar. Sei lá.

André, meu amigo mais chegado no trabalho me conhecia há anos. Sabia de minhas andanças pela literatura e admirava meu gosto pelos livros antigos. Porém, desde que eu iniciara minha aventura pelo Manuscrito, eu me fechara. Ele é claro, estranhara. Não é para menos.

--Não aconteceu nada, André. Apenas...Tenho dormido mal. Tenho sonhos meio incomuns, ultimamente.

Deixei no ar o assunto. Ele captou algo a mais, aquele não verbal que denuncia algo bem mais denso, algo mais espesso. Convidou-me para tomar um vinho, ou um café. Estava exausto naquele dia, não pretendia ir ao livreiro estranho nem sustentar diálogos com Gamal e seus olhos duros. Aceitei, terminado o expediente. Saímos e fomos direto a um bar próximo, já conhecido de todos nós. Sempre que podíamos, lá estávamos. O garçom, sempre solícito, tomou nota de nosso pedido: Um queijo bom e duas taças de um vinho chileno dos bons. Não gostava de beber porém dadas as circunstâncias, sorvi um gole do vinho tinto encorpado, saboroso e leve.

--Problemas com a ex?

--Não! Viviane? Não, ela há tempos se esqueceu de mim. Afinal, eu lhe dei um fora bem aprumado. Ela percebeu.

--Então, o que é que há? A nossa secretária outro dia disse que o encontrou cochilando na frente da mesa. Ela mesma o acordou com um livro caído no chão. Deu para não dormir agora?

--Pelo contrário. Tenho dormido bem. O problema são os sonhos que tenho. São muito estranhos.

--Quer contar algum? São censurados?

--Não são para maiores. Bem, tive um que era assim...

...E contei a ele a epopeia toda do Manuscrito, com o sonho das montanhas de água; falei a ele da linda mulher que clamava para que eu não os abandonasse; disse a ele o enorme vazio e tristeza que me invadiram após a chegada das águas... E lhe falei de Gamal e o estranho comportamento do livreiro assim que lhe mostrei o estranho documento enviado a mim pelo árabe misterioso.

--Eu não entendo. Foi você que procurou o Manuscrito?

--Sim, mas um amigo meu que o indicou. Assim que tive contato com ele, tudo começou. Tudo. Noites estranhas, as pesquisas até tarde e a história de um casal milenar que teria vivido há não sei quantos anos...E a moça. Ela é maravilhosa. você não tem ideia. Sabe a noção de beleza? Ela é perfeita. Nunca conheci alguém tão bela. Nunca. Olha, eu conheço as mulheres. Essa moça é esplêndida. O que mais me interessa nela é a certeza. Ela tem uma integridade, uma certeza...Que ela sabe que tudo acabará bem.

--Como ela é?

Descrevi Larya.

--Caramba. Parece ser uma deusa.

--Talvez seja.

--Por outro lado, você pode dizer o que quiser, mas é muito solitário. Tem dias que some sem deixar pegadas. Tem dias que nós o procuramos, quem sabe um programa juntos, quem sabe uma viagem lhe faria bem? Mas não.

--Gosto de meu trabalho.

--Parece que gosta mesmo é de moças imaginárias. Veja bem, esse texto...

--O Manuscrito.

--Sim. Ele parece estar criando raízes próprias em você. Precisa arejar, a vida é mais do que isso. Você não vá me enveredar por esse caminho viu? Pense sobre isso. Areje mais, sinto falta do Tomé mais leve, mais solto.

--Acho que tem razão. Vou descansar mais e nós vamos nos programar para a semana que vem.

--Assim que se fala!

Despedi-me de André. Não sei porquê, mas tive um pressentimento. Talvez eu estivesse realmente indo por um caminho mais obscuro que o costume. Ele me deixou à porta de meu prédio. Lá estava meu locatário, com olhar preocupado e o cenho franzido.

--Boa noite!

--Boa noite. Escute, Tomé. Se precisar de algo, fale comigo. Você sabe, pode contar comigo e com minha mulher.

Dito isto, ele que nunca falara nada, entregou-me um envelope. Meu coração disparou, não sei porquê eu pensara em Larya. Imaginem, a moça, se é que existira, há muito seria pó e estaria sob milhas de mar. Se é que a lenda dos Atlantes era verdadeira, se é que tudo aquilo não passasse de uma farsa. Olhei o envelope. Não era um envelope comum. Tinha um certo perfume, sândalo talvez? Nunca fui versado nas coisas do Oriente. Teria algo a ver com Gamal?

--Quem lhe entregou?

--Seu amigo, o árabe.

Tinha sido Gamal. As coisas estavam ficando mais sérias ou seria só minha impressão?

"Não foi hoje à livraria. Sentimos sua falta lá. Precisamos conversar sobre Larya". Como raios ele sabia sobre o que eu estava lendo? Ele seria uma espécie de espião sujo, a serviço de alguma potência estrangeira? Quais seriam seus desígnios afinal? Que era um homem inteligente e refinado, disso não posso negar! Dir-se-ia que possuía vasta cultura. No entanto, o que dizia de ser um guardião é que o tornava mais misterioso. Eu estava nauseado, com certa dor de cabeça. Caminhar agora seria uma boa pedida, resolvi dar uma espairecida. Perto de meu prédio havia um pequeno parque, restos de um grande jardim que fora--segundo meu locatário--iluminado por postes a gás. Os postes estavam lá, porém o gás de outras épocas já se fora. Árvores antigas faziam sombra ao final do entardecer, copas cheias de folhas e pássaros tristes (sabiás sempre me pareceram tristes cantores). Fui sentar num banco, próximo a um destes postes de grandes lâmpadas. Anoitecia. Eu puxei o envelope que estava em meu bolso, cheirei o tecido da carta com sândalo e imaginei Larya. Só, a milênios de distância, ela lançava um pedido que chegava até a mim, homem do século vinte e um. Não um luminar da ciência, não um pesquisador de história. Um reles homem comum, um mero leitor ávido de esquisitices e um escritor muito incipiente. Por qual razão eu enfim? Sentia um misto de ternura por aquela mulher insondável e etérea, curiosidade por tudo aquilo e uma profunda raiva de Gamal. O traidor andava lendo o que eu lia, sabia de meus passos. Talvez meu destino já estivesse selado por um grupelho desses que vivem estourando bombas atadas a seus corpos. Coisa mais inútil, levando aos ares inocentes, culpados e o que mais esteja por perto, em nome de um além inominável. Não, eu definitivamente sentia raiva de Gamal e se eu desejava alguma coisa agora era vê-lo para esmurrar a sua cara safada de espião sujo e secreto.

--Por acaso, leu meu bilhete, Sahib?

Meus cabelos se eriçaram. Minha raiva cegou-me. Levantei, pronto a enfrentar meu destino. Venderia caro minha vida, fosse lá o que fosse tudo aquilo. Avancei para ele mas algo brilhante me fez parar. Ele apenas mostrou o punhal, sem tirar seus olhos de mim. Em nenhum momento brilhou nele algum resquício de violência; ele se fez respeitar pela sua atitude firme. Parei a um metro dele.

--Espião sujo! Deu para ler o que eu leio? Que quer de mim?

--Não sei do que fala, Sahib.

--Como sabe de Larya?

--Está escrito, Sahib. O que Ele escreveu, será e já foi. Larya e você estão ligados por mais que não queira admitir. Eu sou o Guardião das Portas. Apenas perguntei sobre ela porque ela perguntou de você.

--O quê? Como assim? Você vem me falar de uma pessoa que morreu há milênios! Você deve ser louco se acha que vai se safar disso assim, num estalar de dedos. Há leis...

--Há Leis. Eu as obedeço e, juro, não lhe quero mal nenhum. Apenas estamos juntos porque está escrito. Só isto.

Não podia perder a razão. resolvi, enfim, embarcar em seu jogo.Quem sabe não me renderia uma boa história? Se bem que teria de tomar cuidado para não provocá-lo. Os piores loucos são os tranquilos, os obstinados. Olhos frios, ele me fitava. Ele obviamente esperava uma atitude minha, uma indagação. Sentei-me no banco, meio tonto com tudo aquilo.Gamal sentou-se no mesmo banco, ereto e a uma distância que poderia me alcançar, se o quisesse, em frações de segundo. Pensando bem, talvez ele quisesse mesmo me poupar. Para o quê, eu não tinha a mínima idéia!

--Então?

--Sahib. A paciência é a virtude dos sábios. Já notou que um sábio sabe ser reservado enquanto os estouvados gastam suas energias deblaterando contra o mundo? Quando chegam à sua idade, costumam estar cansados, cheios e enfarados do mundo. Você no entanto, sempre foi reservado...Indício de sabedoria!

--O que sabe sobre mim, Gamal?

Gamal, então, desfiou minha vida rapidamente à minha frente. Falou de minha infância cheia de presságios. Falou de minha adolescência cheia de livros, sempre mergulhado em estudos. Falou de meus poucos amigos e de minha relação fracassada. Fêz-me notar que eu não era adaptado àquele mundo. Minhas namoradas sempre falavam disso, de minha excessiva independência, de minha falta de paciência... Teceu um fio que ligava minha vida anterior à minha vida atual.

--Indícios de sabedoria, Sahib.

--Aturdido, eu olhei para ele novamente. Ele me fitava impassível, como se tivesse declamado uma prece.

--Você acaba de falar sobre mim como se me conhecesse há anos. Ninguém sabe destas passagens. Você é um espião, Gamal?

--Não, Sahib. Sei de coisas vastas, muito mais do que sobre sua vida. Porém, não vem ao caso.

--O que vem ao caso, afinal?

--Você deve ler o Manuscrito; porém, há diversas formas de leitura. Ela pode ser feita com os olhos e com a razão, que demora mais. Muito mais. Há uma outra maneira.

Meu coração disparou, mostrando perigo iminente.

--Não compreendo.

--O que está escrito, está escrito. Lá está o texto para ser lido com os olhos. Porém, a razão intervém e nubla a verdadeira visão que é a do coração. Viver mais ligado ao coração; é o que você precisa. Ler mais para o seu coração. Afinal, o homem surgiu quando Deus teve medo de ficar só. Surgiu o Homem, depois a mulher e o mundo que aí está. Mas Deus não lê o mundo com os olhos da razão. Antes prefere ler nas entrelinhas da Alma. Assim é. Está escrito. E Ele torna as coisas mais fáceis quando o Homem se decide pelas veredas de seu coração. A Alma, essa centelha que carregamos, é a verdadeira porta para o Infinito. Pena que os homens de hoje em dia estejam quase esquecidos de toda a sua luminosidade. Que adianta ter essas coisas todas se sua alma é mirrada, obscura e ressequida? De quê vale toda esta civilização se o que têm em nada se assemelha à mais cara das gemas que é a preciosa pedra do espírito?

Ele gesticulava e suas mãos abarcavam a praça, as árvores. Os pássaros piavam tristes, corria um menino atrás de um pneu de carro gasto. Um gato miava em uma janela próxima de uma casa decrépita, ao lado da praça. Um senhor de cabelos bem brancos fumava um cigarro com prazer e olhou para nós com um sorriso que bem poderia ser o de Deus satisfeito com uma tragada tão esperada. Parecia concordar com as palavras de Gamal. O misterioso guardião me olhava, agora de lado, podendo eu avaliar seu nariz aquilino e a pele tostada por anos no deserto. Seria um beduíno dos modernos tempos?

--Você me deixou curioso.

--Você É curioso. Está em sua natureza, está em seu destino. Está escrito.

--Que outra maneira há de ler um livro? Se não for pelos olhos...

--...Pode ser com o coração.

--Como farei para prosseguir e ler o Manuscrito, se ele não está comigo?

--Use o pergaminho que lhe dei. Mas saiba que no sinete está o segredo que lhe abrirá as portas de outro tempo. Se você assim o quiser e se permitir a si mesmo desvendar os caminhos de sua alma, assim serão as coisas e eu estarei lá, lhe esperando.

--Para quê, homem de Deus?

--Para guiá-lo através das portas. Agora devo partir. Vá para sua casa. Precisa de duas boas noites de sono. Não leia por ora, nada relativo ao Manuscrito. Espere. Quando chegar a hora, ele lhe avisará.

Levantei, disposto e respirar um pouco( o ar estava cristalino e seco, como em todo bom inverno).

--Como então farei para ler o que quero?

No entanto, Gamal não estava mais lá. A praça era grande, só estávamos eu, os pássaros, o velho fumante e o menino ia longe com o seu pneu. O senhor meneou a cabeça, indicando o caminho de saída. Assustado, eu fui embora. Estivera falando com uma alucinação? Do ponto de vista da pessoa, a alucinação é perfeitamente real. Ela só existe para o que a imagina. Não existe para o mundo. Estaria eu perdendo o juízo? Essa e outras perguntas eu teria de responder, agora talvez e mais do que nunca, uma questão de sobrevivência.

 

II. A PARTIDA

Curiosamente, cheguei tranqüilo a meu apartamento. Peguei as coisas de costume, uma ou outra conta que indefectível lá me esperava. Como eu comprava livros, eles chegavam aos poucos. Nunca fui exagerado mas em alguns meses mais de cinco vinham ao mesmo tempo, em dias diferentes da semana. Meu locatário era meticuloso e entregava sempre em mãos as encomendas que chegavam. O prédio onde eu morava era uma construção antiga, com janelas de madeira, caixilhos de madeira e portas pesadas e maciças, com fechaduras de cobre. Alguns apartamentos haviam sido reformados. Outros nem tanto, de tal forma que a construção era preservada. Havia vários inquilinos e ele nos cobrava sempre a assiduidade em reuniões e decisões, apesar de eu não concordar muito (afinal, o dono era outro). Nosso locatário era um homem que se ocupava, pondo sempre os dedos em toda parte. Não era impossível vê-lo varrendo uma sacada vazia, passando lustra-móveis em algum banco escuro, fazendo rebrilhar alguma janela. Se uma coisa podíamos dizer, é de que morar ali dava gosto. Pela limpeza e asseio, pela organização da correspondência. Ele não era o zelador, que sempre percorria os andares à busca de uma lâmpada perdida. Homem de pouco falar, o zelador trabalhava ali há muito tempo.

--Tanto tempo faz, que a Arca ainda não fora construída, seu moço.

Ele falava isto de maneira jocosa, tinha o bom humor da gente sofrida e que sabe que qualquer oportunidade é de ouro, se soubermos aproveitar. Cruzei com ele no elevador.

--Essa porta está fechando muito brusca. Tem de dar uma revisada nas molas. O senhor está bem, seu moço?

--Claro! Fui espairecer um pouco na praça.

--Porquê vosmecê está meio pálido!

--É que a gente às vezes vê fantasmas...

Ele se persignou.

--Não me fale disso não. Olha, eu já vi tanta coisa nessa vida que já não duvido de mais nada não.

--Aqui mesmo?

--Aqui mesmo, nesse arrebol antigo. Mais de uma vez, se não foi!...

--O senhor me conta outro dia?

--Fiquei sabendo é que o senhor gosta de ouvir umas histórias.

--Gosto mesmo....Mas hoje, agora, vou dormir cedo. Foi um dia meio fora do eixo...

--Então, outro dia eu me sento mode ao seu lado. O senhor já ouviu história de assombração?

--Sim!

--Ainda não ouviu as minhas...

--...Pelo jeito, vou ouvir logo!

--Pode esperar.

Ler com o coração. Ler com a alma. Ler além dos olhos. O que Gamal queria dizer com aquilo? Entrei em meu pequeno canto. A sala estava lá, acendi a luz do lustre, umas lâmpadas que já passavam da hora da troca. Meus livros estavam lá, todos me olhando de soslaio. Sabe-se lá se nele dá um surto de nos jogar para fora como quando a namorada dele o deixou. Cultura sempre é a última das prioridades. Lá está o sofá, com o abajur de pé alto. Tem um livro lá que eu gosto muito, um Don Quixote escrito em espanhol. Divirto-me com as aventuras de nosso louco lutador contra os moinhos de vento e com a sagacidade de Sancho Pança. Na verdade, eu me sinto meio como Quixote. Penso nisso agora, depois de tanta luta e de tudo o que aconteceu(e ainda vai acontecer, eu sei) pois ninguém acredita na gente quando os fatos são poderosos porém improváveis. como provar o indizível? Convencer uma multidão que cega, corre ao abismo invisível, sendo você o único portador de uma vela tosca que se apaga ao primeiro vento?

Lá está ele, o Manuscrito ou melhor, o pergaminho; a porta, segundo Gamal. Ler com o coração. O que será que ele quis dizer com isto? Eu estou cansado. Antes de deitar, porém, quero mais uma vez olhar o pergaminho. Abro o envelope de perfume inconfundível. Lá está o velho documento, de estranhas palavras. Estranhas anotações à margem dele, como letras de um estranho alfabeto. No entanto, repete-se um padrão, que eu percebo. Agora, com a lente, fica mais fácil, no sossego da sala eu me concentro. Lá está, um padrão. É como se fosse uma frase. Ponho o papel contra a luz. Há um pequeno papel que cai do envelope. Está escrito em espanhol, posso verificar. Ao lado das palavras, os caracteres. É uma tradução. Um símbolo, uma frase. Traduzo os símbolos então na anotação à margem escrita no pergaminho. Forma-se uma frase. uma frase que eu jamais deveria ter lido, não em voz alta, jamais sozinho, nunca à meia -luz. Quando penso nisso, tudo me volta, as coisas ficam difíceis. No entanto, lá está a frase, um encantamento antiquíssimo.

"Leia com o coração, Sahib. Leia com o coração, lembre-se! Ele é nossa salvaçao, sempre. É em nosso coraçao que mora nossa mais límpida visão do paraíso e nossa mais terrível fera. Desvie-se de sua voracidade, domine seu medo e desperte em outra fonte de vida!".

Gamal? Eram suas palavras e no entanto, não pareciam ser dele,e sim de uma entidade mais velha que o mundo, determinada a mudar para sempre meu destino. Senti um sono invencível e ainda lutei contra aquilo. não tomei nada, não gosto de beber, definitivamente estou doente. O que vem a ser isso? Os últimos lampejos de uma consciência que se vai devem ser dolorosos; não sei ao certo se flutuei ou dormi, sei de ter ouvido rugidos terríveis, de sentir a terra tremendo sob meus pés exaustos; cedi ao sono, irmão da Morte, esta que nos redime de todo sofrimento. Certa vez li num livro escrito por um lama tibetano que a vida logo após a morte é inicialmente habitada por estas entidades fantásticas, ruídos avassaladores, tremores tremendos. Não conseguia acreditar que minha vida estivesse no fim...

Por quantas horas estive mergulhado no sono espesso, não pude precisar. Quando acordei, havia uma brisa em meu rosto. Suave barulho de mar. As águas límpidas beijavam a areia, vindas de uma arrebentação violenta a quilômetros dalí. Eu estava molhado nas calças, na camisa. Estava tostado pelo sol. Levantei a cabeça, pássaros grandes, quais pelicanos, voavam perto de uma duna; tinham grandes bicos e definitivamente não gostavam de minha presença. Piavam assustadoramente alto. Alguns voavam rasantes à minha cabeça. Atordoado, olhei o céu luminoso,  o sol recém-nascido. O mar, as montanhas altas e nevadas ao longe. O ronco das águas batendo nas rochas, levantando espumas multicoloridas. Água da vida e da fonte, somos dois terços mar. Esses são nossa força! No entanto, e apesar de tudo isso, avaliei minha situação nada confortável. Um homem perdido em uma praia distante, sem nenhuma ferramenta, sem nada do que me poderia servir de útil para sobreviver nesta terra hostil. Que eu faria? Como escaparia de tal armadilha?

--Bem, se isso é o fim, que assim seja.

Já comecei a pensar: Que lugar é este? De que confim de minha mente teria saído aquilo?  O que mais me incomodava era a sensação...de fome! Se é verdade que a vida após o fim seria igual à nossa vida normal, então alguém estava seguindo o roteiro à risca! Era como se eu houvesse viajado um outro tanto assim, para me ver do lado de cá do Estige com uma tremenda fome. O barco de Caronte infelizmente não tinha lanche a bordo.

A paisagem indescritível se desenrolava à minha frente. As águas de um azul cristalino pertenciam a uma baía, encimada por um morro à direita que subia gradativamente, sendo que olhando mais e mais à direita, havia uma cordilheira de picos nevados, enormes, sob o pé dos quais se descortinavam vales verdejantes, parece que arados, cultivados, pois havia desenhos simétricos à maneira de enormes fazendas. Digo enormes porque a escala da visão toda era imensa. As montanhas deviam ter, pelo menos, seis mil ou sete mil metros de altura, a julgar pelos picos nevados e os vales estavam a muita distância de onde eu me encontrava. O final da baía, à direita tinha uma curiosa forma, na montanha que terminava a cordilheira. Não conseguia enxergar direito, mas parecia haver um pico de curioso formato, parecido com uma espécie de agulha, uma estrutura alongada; depois eu teria de verificar. Caminhando com os olhos, o mar aberto, abaixo da pequena elevação onde eu acordara. Lá abaixo, ondas cristalinas se formavam e batiam na areia branca, finíssima, cheia de escolhos, pedaços de troncos de árvores, algas e sargaços—devia ter havido uma tempestade por ali há pouco tempo.  O Mar não me engana; esse titã num dia está com cara de paisagem, noutro traz a carranca dos vagalhões. Afastei-me um pouco para o lado esquerdo da elevação e olhei o horizonte: No final, á esquerda, brumas ocultavam a visão do litoral para aquele lado, num tom violeta e azul escuro. Tudo me parecia extremamente grande, extremamente novo. Ao que me lembrasse, nunca sequer ouvira falar de tal portento, de tal majestade.

A fome agitava minhas entranhas. Fosse o que fosse, mesmo supondo que havia passado para o lado de lá, não ia querer morrer de novo de fome. A idéia, um absurdo. No entanto, a pura verdade. Teria de procurar algo para comer. Olhei em direção aos traçados geométricos; se havia algo para se comer devia vir daquele lado. Comecei a caminhar e ouvi o rumor de um córrego; Pavlov tinha razão porque só de me imaginar saciando minha sede, meu corpo se energizou. Caminhei cerca de uma hora, achei o córrego e na margem espelhada dele saciei a sede que me incomodava. Notei pássaros de miríades de cores; araras, papagaios, algo parecido com um pavão real(bem maior, por sinal), pica-paus de barrigas amarelas, de cabeça vermelha; beija-flores de finíssimos bicos, sorvendo a água de suas bromélias e orquídeas...Eu estava sozinho, num dos lugares mais belos que eu já conhecera e não tinha a menor idéia do que haveria a seguir. Acho que essa idéia me percorreu a espinha como um calafrio, porque eu repentinamente senti a temperatura cair. Logo eu soube, era a água do riacho que passava perto, formando nuvens de vapor de água. Caminhei mais um pouco e um rumor surdo sacudia a terra. Penetrei mais na mata que ladeava o riacho, passei alguns arbustos e dei com uma espetacular queda que devia ter pelo menos uns sessenta metros, formando um lago que seguia em direção à praia, formando um anel de água serpenteante até a foz que eu não conseguia visualizar. A água era gelada, provavelmente (eu supunha) devia vir dos cumes nevados que havia à frente das fazendas imensas. No entanto, a beleza sanara minha sede. E a fome? A premência da fome faz o homem viver, o instinto de sobrevivência é que faz o homem andar. Qual o homem que não conhece a fome absoluta? Dolorosamente eu aprendia a passos rápidos como povos inteiros podem sucumbir ao mero desejo de comer. Hordas de hunos cruzaram a Ásia, em busca de comida, civilizações inteiras desapareceram em nome da fome ou em torno dela. Deus nessas horas nunca foi bondoso, nem com os povos eleitos. Porquê seria comigo? Continuei meu caminho para o interior, parando de vez em quando para verificar minha posição. Passei o que supus ser uma espécie de cerca, feita de pedras cheias de liquens, algo mais antigo do que eu podia supor. Senti um cheiro adocicado e meus sentidos se aguçaram; parecia cheiro de cítricos, talvez um laranjal? Ouvi um ruído à minha direita, como um galho se partindo, talvez a multidão de pássaros me observasse. Não me passou pela cabeça que toda aquela organização, as cercas, o ambiente todo podia ter um dono, alguém que velasse por tudo aquilo. Bem, se era uma espécie de paraíso,  o dono certamente não se importaria se eu tomasse algo emprestado para mitigar meu sofrido corpo. Na clareira em frente vi árvores que davam frutos amarelos, grandes e polpudos, com aparência de mangas. Olhei para os lados, ninguém me olhando. Apanhei a fruta da árvore, perto havia um riacho minúsculo, talvez um braço de irrigação para aumentar o volume e a fertilidade dos campos cultivados. Lavei a fruta e foi o melhor almoço que já tive, em anos. A consistência leve, o sabor levemente adocicado e o suave caldo que escorria me deixaram absolutamente fascinado. O fruto perfeito, capaz de mitigar a sede e a fome! Regalei-me com a estranha manga, até o caroço elíptico e duro que havia no centro. Não deixei a casca jogada; se houvesse alguma divindade observando, ela ia notar que eu tive o cuidado de enterrar a casca para que aproveitasse mais dos restos para o solo e, com cuidado, usando uma lasca de madeira, cavara um pequeno buraco nde tivera o cuidado de enterrar o caroço, futura mangueira, bem próximo ao curso d’água. A temperatura próxima ao rio era agradável, de modo que não sentia frio, apesar da umidade que reinava em torno. Haveria algum sistema de borrifamento? Porque, em determinadas horas, sentia mais frio que o habitual, como se uma nuvem se pusesse entre o sol e o solo.

Tive o cuidado de apanhar mais uma fruta, para me embrenhar mais na plantação. Notei o padrão repetitivo, monótono, de um imenso pomar. Havia mão humana ali, disso eu agora tinha certeza. Só não tinha idéia do que haveria a seguir, como pude ver nas horas seguintes. A escala de tudo aquilo era gigantesca. Pensei, que tipo de civilização floresceria ali, capaz de cuida de tão grande pomar, milimetricamente verdejante como eu havia visto do alto da colina?

 

III.ENCONTRO

 

Caminhei algumas horas, embrenhado no pomar, para ver mil maravilhas. Sempre próximo do rio, sempre junto ao pomar, fui avançando mata adentro. Não havia como me perder e se assim acontecesse, poderia contar com o curso do rio, com um de seus afluentes e com as frutas para saciar meu corpo cansado. Notei o sol já mudando seu curso e a idéia de andar só, num lugar tão ermo e gigantesco, no meio de um pomar tão rico em alimentos só me trouxe a próxima dúvida: Haveria ali algum animal feroz? Porque, pensando na cadeia alimentar que eu seguia, eu certamente não faria parte do topo, se é que conseguem me entender. Deveria haver uma espécie de predador. Mas, imagine! Predadores no Paraíso? Só um camarada paranóico pensaria assim. Intrigado, eu caminhava. Ouvi novamente um barulho, desta vez bem próximo a mim. Certamente a razão de minhas paranóias era meu Inconsciente. Sempre atento ao menor dos movimentos, este campo de conhecimento não verbal abarca nosso ser e só se faz presente quando dele menos nos apercebemos. Jung já falava disso há tempos! Cabe a nós interpretarmos os sinais de seus passos, para o bem ou para o mal. Onde estava minha audição todo este tempo? Absorvido em sobreviver à fome, mal tinha idéia de que se pudesse sairia dali correndo, a julgar pelos impulsos que tive quando ouvi novamente o estalar de galhos secos, pausadamente, como se algo grande me seguisse (e que parava de me seguir quando eu parava de andar).

--Há alguém aí?

Silêncio total. Bem, eu não estava a fim de ter minha segunda morte, se é que havia morrido, num lugar tão ermo e desconhecido, sem conhecer a face de meu executor, se é que existia alguém ali perto. Tomei coragem, o barulho parecia vir de muito perto. Atrás de algum arbusto, o ruído cessara e apenas algumas folhas caíam ao chão. Aproximei-me do arbusto, coração batendo rápido. Ora, pensei, que seja assim, pelo menos terei tentado enfrentar o demônio.

--Curioso, Sahib?

--Gamal!

 

Gamal estava bem atrás de mim. Sua voz me deu um tremendo susto: Virei o corpo, lá estava ele ricamente vestido, com uma roupa agora sem nenhum disfarce ocidental; parecia um rajá, ou um rei antigo de Punjab, talvez um Sultão. Tinhas pedras preciosas em anéis, carregava um amuleto ao peito.

--Sahib. Tenha mais cuidado ao andar por aí.

--Foi você que me pôs aqui, Gamal?

--Não, Sahib. Você seguiu seu coração.

--Estou morto?

--Tão ou mais vivo do que eu, Sahib. Pelo menos não tem de cuidar dos portais, como eu.

--Se não estou morto, se você é real, que lugar é este?

-- O Manuscrito lhe dirá. Mas fique com isso; talvez precise para entender o que se fala aqui—ele me entregou seu amuleto, que eu pendurei no pescoço. Uma pedra iluminava o interior de uma mandala, com mil letras desconhecidas...

--Lembre-se: Use o coração.

--Para onde vai?

--Senhor, todos temos deveres e direitos. O meu direito é ver você aqui, o meu dever é fazer de sua estadia um acontecimento luminoso para seu caminho interior. Estarei com você sempre que precisar!

Dito isto, Gamal sumiu por uma estranha abertura... Pude ouvir sua voz ainda, ao longe:

---O Coração...!

Se é que havia coração dentro de meu peito ainda, este gelou ao abrir a moita. Numa clareira, uma fera de aspecto indizível me fitava com olhos esgazeados. Tinha o pelo escuro de um leopardo negro, mandíbulas poderosas e garras onde as unhas se eriçavam ao me ver. Ele talvez fosse meu algoz, talvez a personificação de todo meu mal oculto, que me estraçalharia antes que eu pudesse fazer uma última prece. A criatura andava de um lado a outro, emitindo agora estranhíssimos esturro, que ressoava na mata. Se aquela entidade quisesse, já teria acabado comigo faz tempo. Novamente senti que havia alguém mais por perto, uma presença inescrutável. A fera não atacava, andava de lado e me fitava com os olhos imensos cravados em meus pontos fracos. Só que já foi fitado por um animal destes sabe de seu potencial mortífero; certa vez  num safári na África do Sul, onde caçávamos fotos, um leopardo estava numa árvore sem que o guia o percebesse. Senti seus olhos fixos em mim, os olhos da criatura ali em minha frente eram os mesmos do leopardo, avaliando quando, como e onde atacar. Finalmente, a fera tomou uma atitude, pôs-se em marcha, lenta, fatal e determinada, em minha direção. Vinha lentamente, olhos cravados em mim e eu, hipnotizado como um sapo pela cobra, não conseguia me mover. Mil coisas se passaram entre eu e minha morte certa: Uma certa resignação, um certo abandono inevitável, nenhum medo de morrer. Afinal, eu já estava morto. Ou não? A fera arremeteu, eu me virei para receber o golpe de misericórdia, a coisa devia ter quase dois metros.

--Larr, não!!!!

O esturro encheu o ar e a coisa cessou o ataque; pude sentir o calor de seu hálito enquanto a coisa me cheirava o pescoço. Uma mulher! Uma mulher evitara minha morte certa. Eu estava de olhos fechados, trêmulo, caído ao chão, sem perceber como fizera aquilo. A coisa se afastou, eu abri os olhos.

Diante de mim, uma linda mulher, morena e vestida com roupas leves e quase         diáfanas, olhava para mim entre séria e divertida.

--Acho que você está sujo.

Notei que minhas calças estavam molhadas. O que faz o medo, oh horror dos horrores! Levantei-me para minorar o ridículo da situação e quase caí de tontura. Ela me amparou, a fera a meio metro me avaliando, medindo minhas proporções, julgando. Parecia antes um enorme gato, poderoso gato. Trôpego, firmei as pernas. Muita emoção para um dia só. Olhei para a moça: Morena, de média estatura, cabelos anelados; um pescoço adornado por uma jóia de pedras amarelas, dourada (supus ser ouro), com uma saia colada ao corpo, que lhe dava agilidade nos movimentos. Olhos cor de mel. Grandes, atentos, olhos de quem sabe a vida que tem.Orelhas pequenas, redondas e graciosas. Braços torneados, pernas bem feitas e pés calçados por uma espécie de mocassim. Na mão direita uma espécie de lança prateada, com uma pedra cristalina na ponta. Olhei para o meu peito, lá estava o adorno que Gamal me dera. Compreendi sua utilidade, porque se era verdade o que acontecia (eu ainda achava que estava morto) quem quer que fosse jamais ouvira minha língua latina; não nos entenderíamos, não fosse o pequeno milagre operado pelo tal colar de Gamal.

--Estou morto?

--Poderia estar, não estivesse eu por perto. Larr é nosso guardião. Fala minha língua? Vejo pelas suas roupas que você é estrangeiro.

--Eu...

--Você está cansado. Venha comigo, nossa casa fica perto. Larr farejou você há muito tempo. Ele guarda nossas cercas. Pelo menos você não passou fome.

--E estou muito agradecido, senhorita...

--...Larya.

Levei um susto. Mais uma peça pregada pela divindade que presidia aquele lugar!

--Larya?

--Qual a razão do espanto?

--Conheço você!

Ela deu uma risada graciosa, olhando-me de lado, encantadora.

--Eu o estou conhecendo agora, estrangeiro. De onde vem? Pelas roupas, é de estranhas terras. Ninguém dos nossos se veste como você, por aqui. Faz frio aonde mora?

--Não, Larya. É que estava em meu apartamento. Era noite, daí eu ainda não havia tirado meu casaco.

--Casaco? Essa roupa que cobre a roupa que está embaixo?

--Sim, a camisa.

--Camisa. Nome estranho para tantos panos! Larr! Pare de cheirar o estrangeiro.

O felino ou o que quer que fosse media minhas reações, meticuloso. Eu e a encantadora mulher caminhávamos lentamente. Ela me mostrava a extensão de sua fazenda.

--Você teve sorte de não cruzar com outro guardião. Eles costumam ser cruéis com estranhos, ainda mais estranhos que tiram coisas do lugar. Como veio parar aqui, senhor...

--Tomé.

--Conte-me mais sobre você!

Contei-lhe a história, desde o início. Do Manuscrito, de Gamal, da jóia de Gamal, das portas, de meu sono. Ainda achava que estava morto.

--Você por acaso é a Beatriz de Dante? Vai me levar ao paraíso, aonde meus pais devem estar?

Fingindo ciúmes, Larya perguntou em voz mais baixa:

--Quem é essa Beatriz? Sua companheira lá de onde vem?

--Não, ela é...Um personagem, uma personagem de uma peça. Dante a procura no Inferno. Eu não estou nele, não?

--Senhor Tomé, definitivamente está vivo. Por ora está vivo, mas se estivesse em outra propriedade, poderia ter sido atacado por outro guardião. Além disso, temos os Trabalhadores. Eles são muito obtusos, só fazem o que lhes mandamos. Não toleram intrusos.

--Portanto, tive sorte.

--Muita. Venha. Essa é minha casa.

No alto de um platô bosqueado, uma bela casa feita de pedras, resistente e ampla. Larr sumiu perto do quintal, aonde havia uma horta com diversos tipos de verduras que eu não conhecia. Eu estaquei à porta, esperando que Larya me chamasse. Ela aquiesceu com o olhar, aprovando minha educação. Entrei, um ambiente iluminado por algum tipo de lamparinas que não emitiam fumaça. Ela me levou a um quarto, onde ela me falou, calma e pausadamente.

--Este é um quarto que reservamos para quem nos visita. Minha irmã veio recentemente. Você precisa de um banho, Tomé. Venha!

Mostrou-me um banheiro pequeno, aonde havia uma banheira feita de uma espécie de pedra verde, parecida com jade, extremamente lisa. Ela colocou água, vinda de uma espécie de dutos, quem prontamente encheram o banheiro de vapor.

--Esta água vem das montanhas revoltas, lá...E apontou para os cumes nevados, que eu vira da praia de onde viera. Fechou a porta, despi-me e entrei no banho. Depois de horas de caminhada, por quilômetros de mata, pedras, fome e sede, para ao final quase ser abatido por uma fera indescritível, eu aceitei a hospitalidade de Larya. Banhei-me, nunca me senti tão confortável. Devo ter adormecido, porque despertei com um pequeno barulho e quando olhei para aonde estavam minhas roupas, havia uma espécie de traje, mais ou menos do meu tamanho. Como eu emagrecera um pouco nos últimos meses, o traje me coube perfeitamente bem! Saí do banho, depois de colocar no peito o tal colar de Gamal. (Nunca me separaria dele em toda a minha estadia).

--Ora ora, quem vem lá!

Larya me olhava de lado, aprovando o que eu vestia.

--Caiu bem essa roupa em você, estrangeiro.

--Obrigado...Larya! Se eu estiver mesmo vivo, você é a pessoa mais encantadora que já conheci nessa vida e em outras.

--...Isso porque ainda não conheceu minha irmã, Luurya. Mas deixemos disso. Gostou do banho, estrangeiro?

--Muito bom. As águas, você disse, vêm das montanhas? Quem fez isto?

--Os homens da capital. Onde meu marido está, foi negociar as frutas que o senhor andou comendo (deu uma risada deliciosa) e que são o nosso sustento. Ainda bem que está comigo. Não gosto de dar ordens o tempo todo, sozinha, aos Trabalhadores. Eles são muito grosseiros.

--Como assim?

--Eles trabalham há muitos anos aqui, nesta fazenda, que foi de meus pais. Os descendentes dos antigos trabalhadores é que cuidam de nossas terras, que cultivam as árvores, podam as florestas e mantém limpa nossa fazenda. Eu adoro este lugar. As crianças também adoram.

--Eles se chamam...Miya e Laacl?

Ela estacou, olhando-me nos olhos, estupefata.

--Como sabe o nome de meus filhos, estrangeiro? Que feitiço é este? Você é algum tipo de espião?

Ela olhou de soslaio o bastão prateado com o cristal na ponta, sempre ao seu lado. Não sabia o que era, porém sabia que aquilo devia ter poder.

--Larya! Está tudo escrito no Manuscrito.

--Quem escreveu este manuscrito, este papel?

--Pelo que entendi, foi seu marido.

Ela se acalmou. Notei que tinha algo a dizer para mim, mas esperava a hora certa. Notei um alarido chegando, pareciam as vozes de duas crianças. Como toda boa mãe, ela lhes perguntou, sem desgrudar os olhos de mim:

--Onde estavam? Já disse que andar na floresta é perigoso!

Ouvi os passos respeitosos das crianças, agora silenciosas, entrando sorrateiras em casa.

--Desculpe, mamãe. Fomos à fonte borbulhante, lá perto do Lago Espelhado. Brincamos muito lá com nossa amiga Thevet.

--Olhe, estrangeiro. Eu lhe recebi em casa, cuidei de você. Se fizer algo que traga um mínimo de risco aos meus filhos, não terá tempo nem de respirar. Vai desejar que Laarr tivesse acabado com você na floresta.

Era a Larya dura que falava, a leoa que prezava seus filhos, era a provedora da casa.

--Entendo seu temor, Larya. Se quiser, vou-me e eles nem ficam sabendo de minha presença. De qualquer modo agradeço sua hospitalidade! Afinal, sou seu hóspede.

Larya  refletiu e percebeu que eu ali oferecia menos risco que os tais Trabalhadores lá fora, hostis em sua dura tarefa. Olhou nos meus olhos aturdidos ainda com a situação toda e falou em voz mais baixa.

--Está bem, está bem, Tomé. Desculpe-me, eu ando tendo sonhos estranhos e esquisitos. Em alguns deles, você me aparece.

--Eu?

--Sim, de certa forma já sabia que você viria. Laacl me falou de você também. Contei tudo a Toolak, meu marido. Ele é muito compreensivo! Prometeu que só vai esfolar você se o vir aqui.

Olhando para mim, com aqueles olhos divertidos, claro que não a levei a sério.

--Nurya! Ponha estas duas pestes para tomar banho!

Nurya era sua criada, mulher robusta, braços grandes e rosto calmo, sempre fazendo de tudo, sem um ai de reclamação. Era tratada como se fosse da família, porém escolhia as horas certas de aparecer e ficar em seu canto. Ela me avistou ali, no alto, em companhia de sua ama.

--Tudo bem,senhora?

--Nurya, este é Tomé, o estrangeiro.

A criada inclinou a cabeça e foi buscar as crianças. Laacl foi a primeira que me viu. Miya segurava algo em sua mão direita.

--Mamãe, o que é isso?

Ele segurava meu relógio. Eu olhei Larya, ela abaixou os olhos. No bolso de minha calça eu sempre carregava aquele relógio que fora presente de meu velho pai. Eu sempre o consultava e no trabalho havia quem me chamasse de antiquado por conta dele. Era um relógio a corda e por dentro havia uma pequena foto onde estavam meus pais, já mortos. Larya deu uma volta em torno da pequena mesa que havia na saleta que dava para a sala maior.

--Achei melhor ver se você não tinha nada de perigoso.

--Eu faria o mesmo!

Ela sorriu, aliviada.

--Miya, ponha aonde você achou. Vocês dois, subam aqui e venham conhecer nosso hóspede.

A menina e o menino tinham a mesma idade, ao redor de oito anos. A menina tinha olhos claros e cabelos aloirados. Ela me olhou com curiosidade e olhou para o irmão, como se quisesse cochichar no ouvido dele alguma coisa. Miya mal segurava o riso.

--Mamãe, ele é engraçado.

Eles me cumprimentaram. O que era impressionante, porque se eu estava certo milênios nos separavam. Aí era eu que me perguntava: Que feitiçaria fora esta que me fizera viajar até onde o tempo havia esquecido? Larya era linda, sua filha Laacl tinha um quê de luminoso no olhar e Miya era mais frio que os dois, como uma miniatura do pai, que eu ainda não conhecera.

--Olá. É verdade que você veio...Das estrelas?

--Não, Laacl, ele não veio das estrelas. Estava andando pela fazenda quando eu o encontrei. Precisava comer, tomar um banho...

--Lá de onde você vem, não se toma banho? Perguntou Miya.

--Não tive tempo, meu amiguinho.

--Agora ele já tomou. É a vez dos dois, agora!

Laacl me olhou intensamente. Seus olhos cintilaram no escuro da meia sombra do aposento. Virou-se para a mãe e disse, sem meias palavras:

--Ele veio. Ele veio das estrelas e nos levará para elas, quando houver chegado o tempo.

--Quem lhe disse isto?

--Não importa, mamãe. Miya sabe também. O estrangeiro veio para nos levar para as estrelas.

Senti um aperto no peito, porque aquelas palavras me soavam proféticas, ainda mais vindas dos lábios de uma linda criança. Eu apertei a jóia de Gamal. Seria este o meu destino? Morrer para morrer de novo,junto a gente tão boa como aquela família que se desenhava?  Miya devolveu o relógio.

--Faz barulho.

--Quer para você?

Ele me olhou, encantado.

--Miya, outra hora ele lhe dá isto. Agora...

Os dois saíram correndo para cumprir a triste tarefa das crianças de obedecer à sua prestimosa mãe. Larya me olhou, agradecida.

--Eles gostaram de você. Laacl em especial. Afinal, quem é você?

--Já lhe disse...Sou um simples funcionário que gosta de ler muito e que deparou com um Manuscrito mágico...

O absurdo da situação era tamanho que eu e ela demos risadas. Nem em minhas mais loucas fantasias eu sequer imaginara isto. Imaginei o que ela pensava de mim: “este camarada aparece em minha fazenda, rouba frutos e come sem pedir; suja as calças e ainda oferece ao meu filho um brinquedo inútil!” e eu lhe daria razão. Eu ia pegar o copo, quando as coisas deram uma balançada e eu senti uma espécie de vertigem.

--O que foi isto?

--Ah, sempre acontece por aqui...

Ela estava inquieta.

--No entanto tem acontecido demais ultimamente. Noutro dia, meu marido foi até a capital perguntar o que houvera aqui perto, pois num desses tremores uma parte de uma montanha caíra sobre muitas casas...O Estupa...

--Quem é o Estupa?

--Nosso grande sacerdote. Ele nos disse que o que havia sido escrito é o que se cumprira e que nós ficássemos tranqüilos que nada havia de suceder-nos. Mas ele mente.

Eu e ela sabíamos a verdade. Se era mesmo real, eu estava sentado com uma dona de casa atlante, a cerca de oitocentos mil anos de minha época, à beira de um desastre de proporções inimagináveis. O que eu fazia ali, quais eram os desígnios que me faziam estar ali, este era o grande mistério. Eu ainda esperava acordar e abrir os olhos, em minha cama, com o Manuscrito caído ao chão ou coisa que o valha. Mas não: Subia-me o cheiro delicioso de comida que Nurya preparava, cantarolando uma estranha canção enquanto os dois pirralhos tomavam banho aos gritos. Olhei a casa. Havia uma sala baixa com uma mesa elíptica, as paredes com lindos adornos. As tais lamparinas tinham brilho, tinham chama mas não esfumaçavam. Do local em que estávamos, que ficava à frente do quarto de hóspedes, podia se ver uma balaustrada semelhante, onde ficava o quarto do casal. Mais abaixo, descendo as escadas, ficava o quarto das duas crianças. Logo, estariam separadas, pois Laacl já mostrava a vaidade típica das meninas de sua idade. Tapetes finos feitos de algum tipo de pele ornavam o chão da sala, em algumas paredes havia gravuras. Pareciam retratar épocas passadas. Havia uma gravura de uma cidade.

--Aquela é nossa capital. É para lá que Toolak foi vender nossas frutas. Ele volta em dois dias...

Notei uma tristeza em seus olhos. Uma lágrima escorreu pelo canto de seu olho direito. Eu me adiantei, toquei em seu rosto e ela ao invés de me repelir ou fazer algum gesto de desaprovação, pôs sua mão sobre a minha, um calor maravilhoso que aumentou a ternura que eu sentia por ela, naquele momento.

--O que lhe aflige, Larya?

Ela me olhou nos olhos. Intensamente, profundamente, a mesma luminosidade que eu vira em Laacl.

--Tomé,  eu temo que já não verei meu marido.

Ela me contou então de seus sonhos e presságios. Contou sobre os freqüentes abalos que sacudiam aquelas terras. Eu não sabia o que dizer porque nunca fora um especialista em Atlântida. Este assunto costumava ser um tabu, mesmo em nossa época esclarecida. Figurava mais nos almanaques de esoterismo. Nem na história nos ensinavam mais sobre esta ilha desaparecida. Citações veladas e indiretas diziam sobre um povo orgulhoso que vivera nestas plagas, e que por seu desafio aos deuses fora punido com o desaparecimento. Larya chorava enquanto me contava de sues presságios e o que mais a deixava consternada não era nem a possível finitude pessoal mas o destino de Miya e Laacl. Como toda boa mãe, daria sua vida, sua alma para que se salvassem. Sua voz tinha a delicadeza dos murmúrios dos regatos eu eu vira, seus olhos tinham o frescor das manhãs que eu vira e seus olhos eram a força do mar que eu vislumbrara. O sentimento que eu sempre me proibira, seria possível, já medrara ali mesmo, enquanto eu punha a mão em seu rosto de traços finos e pele lisa e sedosa. Quão feliz devia ser aquele casal!

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