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Contos-->Olho de japonês -- 09/05/2001 - 22:06 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
OLHO DE JAPONÊS

Cuidadosamente, ele se postara a um canto, à espera de que o dono ainda voltasse. Pequinês de todo já não era, mas longe estava de se contar entre os vira-latas, ou tomba-latas como hoje se reiventa. Triste se via, ou era eu a contemplá-lo com tristeza e pena? Era eu a pensar por ele, ou seria que ele, em mim, estivesse pensando?

A crer nos motoristas de táxi, já desde manhã bem cedo ali surgira, como se brotado daquele canto de calçada. Por toda parte, um pouco andara farejando, inaudíveis choramingos. Uma temeridade, um cachorrinho daqueles, criado dentro de casa, sozinho de repente atravessar a rua.

Mas ei-lo que sobrevive, horas depois, na iminência de incerto destino ou paradeiro. Um pouco mais atrás, a vasilhinha com água e, sobre papel laminado, restos do que fora um marmitex, comida de gente. Bem que ele se esforçara, mas aqueles fiapos de frango empanados em feijão, arroz e farofa com passas... Sede era o que ele mais tinha, propagandeava um já bastante propenso a carregá-lo consigo. De raça!, exclamei, querendo reforçar argumentos em prol de uma adoção bem perto de se concretizar. Dos nossos ele não é, concedeu pensativo um outro taxista. Olho de japonês, arriscou um terceiro.

Naquela altura dos não-acontecimentos, o cachorrinho concentrava as atenções de uma pequena multidão de condenados à melancolia daquele final de tarde de um domingo ocioso. Sensibilidade à flor dos pêlos, era de se pensar que já ele pudesse ter atinado com a dura verdade ali mais do que palpável, podia-se muito bem viver de conjecturas e de espera. As corridas eram poucas e os mototáxis dividiam entre si o que sobejara de mesa antes tão lauta.

Silenciosa e elegantemente postado, o pequinês parecia evitar a visão de um outro animal caído um pouco mais ao centro da rampa de entrada da rodoviária, a ver um entulho, estorvo, em meio ao ir e vir dos que partiam ou acabavam de chegar. Aquele sim, era um dos nossos. Bêbado, suado, mijado, escarrado, vomitado, sujo como estava, difícil, se não impossível que alguém dele se condoesse. Só mais tarde, já quase na boca da madrugada, a perua kombi do Serviço Social viria recolhê-lo, arrastá-lo, rebocá-lo para pernoite em albergue de mendicância.

Sem o encanto daquele resultado de indecifrável mestiçagem canina, o mendigo já quase nada ostentava dos traços distintivos de sua espécie e raça. Encolhido, impossível decifrar-lhe a genealogia pelo formato dos olhos, como há pouco por aquele par de olhos tristonhos, de um cãozinho que já fora de raça.

Diferentemente daquele outro bicho esquisito e repulsivo atravessado no meio do passa-passa, o quase-pequinês era a própria dignidade animal, capaz de sensibilizar empedernidos corações humanos à volta. À distância, os curiosos de sempre, populares. Mais de perto, marmanjos em zelo se desmanchando, motoristas de táxi à espera de um milagre que já não haveria, e um cronista da cidade que por ali passava a seu esmo.
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