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Cronicas-->A Invenção da Comida e a Fundação da Cidade -- 12/01/2000 - 13:00 (José Belizário Nunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"O homem é um animal que come. E como o homem come!", disse o poeta Thiago de Mello. "Perfeito" - respondeu Erwin von Romell, comandante do Afrika Korps - "e é por isso que não se pode começar uma guerra com racionamento de pão."

Durante a Segunda Guerra Mundial, o exército dos Estados Unidos contratou dois matemáticos, Robert Sollow e George Dantzig, para criarem uma alimentação eficiente e barata, destinada a melhorar as condições físicas das tropas, o desempenho dos combatentes em ação na Europa e a relação custo/benefício das campanhas. Com a ajuda de médicos, economistas, químicos, psicólogos, nutricionistas, de um antropólogo judeu quase candidato a governador de West Virgínia e do sargento-carrasco das Forças Armadas (?), o mesmo que trabalhou duro depois do grande julgamento de Nuremberg, os dois matemáticos produziram a receita de uma gororoba intragável, a RFFT - Rational Food for Troops, que misturava, em proporções bem definidas, toucinho defumado, soja, espinafre, beringela, repolho roxo, caldo de limão galego, rapadura, talos de mandioca, mel de furo, bagaço de cana desidratado, caroços de algaroba peruana, casca de ovo em pó, iscas do baço de um jacaré africano, peito de morcego novo ao molho de quatro queijos, gergelim ao gosto, salada verde de alcachofra e chá de capim-santo. Nem o ardor patriótico tradicional, nem o fervor de Strips and Stars, nem as marchas contagiantes de John Philip Sousa, nem a reputação científica dos pesquisadores, nem a perfeição bromatológica da dieta, nem o aumento dos soldos, nem a brutalidade dos exercícios, nem a obediência devida aos guidelines, nem as punições disciplinares, nem a cadeira elétrica, conseguiram fazer com que a soldadesca comesse aquela desgraça.

A receita Sollow & Dantzig foi abandonada já antes da guerra seguinte, a da Coréia. No Vietnã, o governo americano jamais se preocupou com essa problemática, porque o conflito já estava quase todo privatizado e as coisas tinham voltado ao sistema da guerra de Tróia: cada combatente escolhia um inimigo específico no cadastro das desavenças, travava a sua batalha particular, preparava a própria comida ou saía para jantar fora e pagava a despesa com cartão de crédito. O resultado foi a tragédia que todos viram: o exército americano - com seus radares mediúnicos, seus mísseis intercontinentais, seus satélites que tudo espiam, seus computadores que tudo calculam e denunciam, seus caças bombardeiros e jatos de interceptação, seus fuzis AR-15 dotados de mira telescópica, guiados a raio laser e capazes de acertar balaços no olho de uma borboleta chinesa em plena escuridão - enfim, com toda a sua logística poderosa perdeu uma guerra que poderia ter ganho, lutando contra um exército de anões esqueléticos que comiam jaca com arroz, se cobriam com chapéus-de-palha e brigavam de cacete. No Golfo Pérsico a campanha foi rápida, durou apenas 100 horas e a tropa não exigiu mais do que hambugers, fried chicken e só muito de vez em quando uma lata de coca-cola, uma garrafa de uísque de milho ou um pouco de potato crisps para o tira-gosto.

Entretanto, a ciência do cálculo evoluiu muito por conta da empreitada científica de Robert Sollow e George Dantzig: em 1943, criou-se o método simplex, um algoritmo místico que veio a ser a base de uma nova disciplina matemática chamada Programação Linear.

O Brasil teve alguma coisa a ver com esse negócio: em 1952, a tal receita Sollow & Dantzig, executada com base em sobras de restaurante e outras pequenas modificações, foi aproveitada por um baiano esperto, Archanjo Gomes Provedor dos Martírios, estabelecido na Praça 15 de Novembro, Rio de Janeiro, que criou o angu do Gomes, uma iguaria horripilante, feia, cara e indigesta, processada em tonéis de zinco de 40 litros, mexida com colher de pedreiro e cabo de picareta, e geralmente consumida de madrugada por bêbados irreparáveis e turistas deslumbrados, os quais, umas horas depois da ingestão, atribuem os seus resultados desastrosos aos efeitos colaterais da bebida ou às irreverências do calor tropical.

Na década de 1780, todos sabem, as safras francesas foram péssimas, os impostos eram altos e a ganància da nobreza e do alto clero, maiores proprietários de terra, era mais violenta do que jamais fora. O trigo - que era a base da alimentação popular - se tornou escasso e a fome foi tanta que uma revolução libertária se tornou necessária e viável. Maria Antonieta, a rainha, que era ruim da cabeça (acabou perdendo-a na guilhotina, em janeiro de 1793) teve uma idéia absolutamente imbecil e que jamais poderia dar certo: "se não têm pão, que comam brioche", disse essa austríaca da pá virada. Antoine Laurent Lavoisier (1743-1793), notável homem do iluminismo e da razão, preocupou-se com o assunto e mergulhou fundo na luta contra a desnutrição. Intelectual sofisticado, porém metodologicamente dispersivo, Lavoisier perdeu-se nos meandros da própria pesquisa: descobriu o oxigênio e as leis fundamentais de transmissão do calor, criou a química moderna, a bioquímica, o fertilizante agrícola, os agrotóxicos, inventou o moderno sistema de coleta de impostos, a mangueira de incêndio, a ciência da nutrição e por pouco não chegou à feijoada, que é apenas prima-irmã do que ele (tanto quanto a dupla Sollow & Dantzig) estava realmente procurando - o rubacão ou baião-de-dois de alto estilo - e que já tinha sido inventado quase dois milênios antes.

De fato, foi um chefe militar competente, o imperador romano Júlio César (101-44 a.C.), quem estabeleceu pela primeira vez a relação entre o desempenho dos exércitos em marcha e combate, o preparo físico, o treinamento e a provisão de proteínas. César, que costumava dormir nos acampamentos, agasalhar-se com um cobertor barato e comer junto com os seus soldados, percebeu que seria impossível submeter a Bretanha, completar a conquista da Gália (França), atravessar o Rubicão, acabar com a farra republicana de Pompeu, aplacar a fornalha uterina de Cleópatra e instalar no Egito a dinastia Ptolomeu, sem uma tropa treinada, furiosa e bem alimentada. Valeu-se do tamanho do império: mandou vir do norte da África duas espécies de feijão - um, a faba, de caroço grande, meio redondo e chato (a nossa atual fava); outro, a fabicella, de semente menor e esférica, que corresponde ao conhecido feijão-ligeiro, azuk ou chocha-bunda nordestino, de ciclo curto, alta produtividade e apreciado pelos vegetarianos. Da Birmània veio o arroz-agulha; de um bosque qualquer da própria Europa, onde os havia em quantidade, vieram costelas e miúdos de javali; de Málaga, veio o quarto de pimenta comum e de Belterra outro tanto de pimenta-do-reino; da Ligúria, chegaram as folhas de louro; da Numídia, o cominho; da Valência irrigada, os limões, os tomates e o ácido ascórbico; do Reno, compareceu a manteiguinha; do Alentejo, o coentro e a salsa; dos reinos bárbaros da Hungria, importaram-se linguiças, salsichões, salames e mais um caminhão de embutidos; de Sevilha, orelhas e mocotós de cerdos domesticados; das ilhas Canárias e de Maiorca, os olhos de pombo congelados, as pontas de asa de gaivota e os pimentões-gigantes; da Via Ápia, os paralelepípedos; de Cartago, uns cacos de telha; do Paquistão, as cordas de cànhamo; do Império do Meio, uma partida de gin-seng; do Ceilão, raízes afrodisíacas e sementes maceradas; da Síria, ervas aromáticas; da Magna Grécia, um pouco de azeite doce e de Siracusa quase um terço da alavanca de Arquimedes; da Calábria, os testículos de um mafioso caído em desgraça; de Piancó, as postas frescas da cobra cascavel; da Transilvània, vampirinhos tenros ao molho pardo; de Kiev, os germes de trigo roxo e um pé de bailarino; de Nínive, o rabo da baleia que engoliu Jonas; do Mar Morto, as últimas novidades que poderiam vir de um mar morto (os papiros da escritura e o protocolo dos sete sábios); da índia, as folhinhas de canabis sativa, da Colómbia, o cloridrato de epadu, de Estrasburgo, os fígados de ganso com cirrose; de Juiz de Fora, cubinhos do queijo frescal; da Serra da Estrela, lascas de requeijão curtido; de Campina Grande, as tiras de pneu e os ternos de couro cru; da Terra Nova, óleo de fígado de bacalhau; da Fordlàndia, mudas da seringueira amazónica; de São Bernardo do Campo, as porcas, os parafusos e as arruelas; de Benguela, as cristas de galinha d´Angola; de Petrolina e de Barra do Tarraxil, o alho porró, a cebola em rodelas e a tintura de açafrão amarelo; de Leeds, as palmilhas de tênis Reebok; da Alemanha, navalhas solingen, e de Toledo as facas e canivetes para cortar os ingredientes; de Mossoró, pitadas de sal finíssimo e iodado para evitar as papadas do bócio; de Manaus, as guelras de pirarucu; do Equador e da Guatemala, as bananas-caixão; do Levante, o cravo, a canela e a noz moscada; dos quartéis, um Deus nos acuda! - e essa coisa toda reunida, picada, misturada, somada e subtraída, elevada à potência e extraída a raiz, moída com força e determinação, machucada, fervida e cozinhada a fogo alto em panelas de rocha vulcànica de Herculano, mexida com paixão e competência por uma escrava núbia de turbante vermelho na cabeça e o diabo no corpo, servida em travessas luminosas de Creta e pratinhos de barro trazidos de Tracunhaém, Pernambuco, resultou na ração divinal que é o rubacão - uma corruptela de Rubicão, como será lembrado pelos que leram Commentarii de bello Gallico, escritos por Júlio César em pessoa, onde há um capítulo especial dedicado à comida e a essa travessia famosa.

Júlio César não conseguiu dominar completamente a Bretanha e algumas comarcas vizinhas, o que deixou uma boa dezena de tribos de galos, francos e bretões durante muito tempo privadas do rubacão, mas livres da pizza e do latim vulgar. Contudo, esse imperador admirável - morto a facadas em uma sexta-feira 13 de março por um moleque de rua, Brutus, um trombadinha da beira do rio Tibério que ele adotou mas não soube educar - consolidou a conquista da Espanha e deixou para a humanidade uma comida que é a tentação dos anjos benfeitores e está muito ligada aos delírios do paladar, à fortaleza do corpo, às glórias da guerra e ao progresso geral da ciência.

E foi justo através da Espanha que essa maravilha chegou ao Nordeste brasileiro, nas vésperas do dia 5 de agosto de 1585, data em que um general das milícias coloniais, Diego Flores de Valdez, estremenho como Pedro Almodóvar, presidiu em nome de Felipe II Habsburgo a fundação, às margens do rio Sanhauá, da cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, capital do Estado da Paraíba - um dos três países totalmente eletrificados do mundo. "Depois da cerimónia cívico-militar, do enterramento da pedra fundamental, do lançamento de um selo comemorativo e sobretudo da comilança de rubacão" - conta o frei Vicente do Salvador, primeiro historiador brasileiro, que andava pelos arredores rezando missa, convertendo índios tabajaras à fé cristã e casando amancebados - "o general espanhol não se aguentou: podre de sono, de tédio e de enfado, enjoado com tantos discursos inúteis de apoio ao governo, tantos desfiles de crianças com bandeirinhas, tantas presepadas dos mestres-antropófagos e toques de banda marcial; inspirado por um vento fresco que vinha do mar oceano e imitando o Pai Eterno no sétimo dia da Criação, deu três gritos de viva el rey de Castilla y Aragón! e um de adelante por Santiago, carajo!, dispensou os empregados, soltou os cachorros, enxotou os convidados, deitou-se em uma rede branca de varandas e roncou a tarde inteira."





(*) José Belizário Nunes, 63, é escritor. Nasceu em Piancó, Paraiba, e vive em Brasília
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