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Contos-->As Luzes do Alto -- 09/11/2011 - 17:47 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 No dia quente de Novembro, entre nuvens que teimavam em ocultar um sol inclemente, o avião sobrevoava aos solavancos a capital do estado que ele escolhera para viver, ou melhor, como ele pensava amargamente, que o fazia sobreviver. Nada lhe lembrava os dias de antes, somente a cega sensação de vitória que ele podia ter, ao decidir abandonar tudo em nome de uma vida nova, adiante... Ao seu lado, um pequeno homem de óculos ensebados e evidentemente apavorado com o sobe-desce do aparelho remoía umas orações inúteis(ele as abandonara há tempos; percebera sua inutilidade ao perder as pessoas que mais amava sem apelação, sem dó). Nos olhos do homem ele conseguia ver um fervor, uma fé de que aquilo logo acabaria. Ele podia vislumbrar nas pupilas dilatadas dele o respeito que ele já não mais tinha pela divindade muda, que daquelas alturas vislumbrava seu poder de vida e de morte sobre os pequenos de todo o mundo e se comprazia disto.

 

Quem não gosta de ser idolatrado, incensado?

 

Um solavanco, mais rezas. Outro solavanco, a moça ao lado soltou um pequeno grito. Mais um e uma criança começou a chorar ao fundo. Começou a recear pela sua vida, a única que tinha, tanto ainda a descobrir naquele pedaço de terra que lhe coubera e onde palmilhava ainda; não seria agora que se renderia ao céu inominado. Ele olhou o relógio, estranhamente luminoso naqueles minutos intermináveis; passava das onze da noite, fazia quinze minutos que entrara nessa máquina e que o avião decolara rumo aos lugares que ele pensava jamais poder ver. Bem que a previsão de tempo fizera um lúgubre aviso sobre “possíveis turbulências, ondas de até quatro metros no litoral e chuvas torrenciais no norte-nordeste”. Ainda havia assuntos pendentes, havia ainda a mudança de suas coisas do antigo apartamento — era o acordo com sua ex-companheira; ele lhe deixava tudo e levava algumas coisas das quais fazia questão: Livros caros, discos raros e fotografias de tempos dos quais ele já não fazia questão de se lembrar. Levava também uma máquina fotográfica com a qual pretendia documentar suas mudanças. Um computador de mão que lhe servia há anos. O resto, móveis, roupas, nada levara. Só queria a escrivaninha que lhe era tão cara (presente da avó falecida que lhe dera em tempos de fartura).

 

Mais um solavanco.

 

--Puta que o pariu!

 

O sonoro palavrão fora proferido pelo homenzinho ao seu lado, as mãos crispadas até o ponto de ficarem brancas nos nós dos dedos. Uma faceta nova que ele descobriu nas pessoas ao seu redor fora que, fragilizadas, se sentiam solidárias, tanto que, quando as coisas se acalmaram e cessaram as brusquidões e quedas, palmas se ouviram entre aliviados rostos. A divindade resolvera poupá-los, rindo-se nas nuvens abarrotadas de chuva e ventos ocultos. Resolveu ir ao banheiro e no caminho, frenéticos preparativos entre os comissários faziam entender que eles precisavam servir o lanche logo – talvez para saciar a fome dos que ainda conseguiam senti-la depois de toda a revolução que se abatera sobre eles. Olhou pela janela, um sorriso nos lábios da moça que fitava embevecida as nuvens se esgarçando e descobrindo pequenas gemas que surgiam abaixo, como diamantes iluminados por dentro, em grandes colares que se juntavam à medida que o aparelho se afastava rumo às alturas.

 

O tilintar de copos se fez ouvir enquanto ele passava uma água no rosto, visivelmente relaxado. Saiu do banheiro e sentiu o bafio no rosto, um cheiro de gente amedrontada, misturado aos humores do lanche e ao odor das bebidas que eram servidas. Novamente, sentiu no rosto olhar da moça da janela. Não, ele pensou, já não. Não havia porque agora se envolver assim, não ali numa altura impensável, a quilômetros do solo, voando em velocidades insuspeitas. A vitória do Homem era ilusória, as gargalhadas do mundo se avolumavam lá atrás, por onde haviam passado há minutos e que por onde passariam outros, e mais outros, e mais outros até que um seria ceifado, sem dó, como todos a quem amava e idolatrava.. Decididamente, não.

Ele lia um livro, já desde o solo; o livro tinha interessante textura, capa dura e colorida. Ele se acostumara a ler desde pequeno, desde criança. Sua avó, primeiro e sua mãe, após algum tempo, percebera nele que havia vozes a quem ele devia dar corpo, na forma de histórias. Não foi sem fascinação que ele devorara livros de mitologia, histórias e fábulas. Ele mergulhava nas histórias e quando via, estava lendo há horas. O dom de escrever pulsava nele, encoberto pelas suas obrigações e pelo seu trabalho. À medida que foram passando os anos, desabrochara irresistível, sem nenhuma possibilidade de ser encoberto. Passava então noites e noites escrevendo furiosamente, aparando as arestas do texto, cortando palavras inúteis e deixando mais comedidas as falas de certos personagens que ele deixava fluírem por seus pensamentos. Finalmente, conseguira dar voz à algaravia que o habitava, dando vida aos seus fantasmas, colorindo suas dores que até então não sentira por anestesiado que estava pelas obrigações da vida. Então a moça o chamara e por inútil que fosse, ele olhara de lado, assim de relance e os olhos dela brilhavam de novo, como os seus já o faziam enquanto devorava ávido os espaços do ar que o habitava então.

 

"--Não sente falta de mim?

--Não; prometi esquecê-la. Quando eu quero, eu faço. E vou esquecer você."

 

Na última noite em que se viram, quando ele já sabia que seu destino era outro, ele a deixara no quarto dormindo e pusera as roupas silenciosamente. Precisava partir, precisava manter o seu plano de nova vida; precisava respirar o que ainda tinha, nem que fossem as golfadas de um moribundo. No vasto mundo que havia a explorar, sua mente vagueava em mil caleidoscópios, num delírio de noite mal dormida. Ela ronronava, a respiração calma e ritmada, após a noite de amor que ainda os retinha. Ele, roupa posta, chaves na mão, olhando a janela do apartamento dela, a neblina lá fora, o sorriso dela feito um vapor de boca condensado, as últimas gotas luminosas qual contas de vidro cheias de luz própria, luz de uma outra existência(a que fora dela, a que ele compartilhara e a que ambos seriam obrigados a suportar agora, apartados um do outro, sem mais amarras dolorosas e desnecessárias). Ela remexeu-se na cama, sob o cobertor (ela era muito agitada no sono) e ele temeu que despertasse antes da hora e percebesse sua ausência, o que faria aumentar seu sofrimento. Já com uma ponta da agulha no peito, ele ainda de relance pode ver que da janela, um rosto pálido o olhara, justo no instante em que ele ligava o carro e se punha em movimento, enquanto nascia um sol no céu frio e sem nuvens daqueles dias secos.

 

--Bebida, senhor?

--Uma água mineral, com gás.

--Água mineral?

Quem perguntara fora o pequeno homem ao lado, sempre de mãos crispadas.

--Sim, não bebo.

--Eu estou bebendo. Só assim!

 

A seguir, o assustado homenzinho disparou a falar de seus medos todos, de suas filhas que estavam lá embaixo, misturado a promessas confusas de que jamais viajaria de novo, que é que eles estavam pensando, qual o quê, poderiam bem ter mandado um outro, mas não: Era sempre ele que ia defender as cores de sua empresa. Nem se fosse dono ele teria tanta vontade de vestir as cores de seu time, ele dizia, com um estranho cacoete...Ele queria retomar a vida lá embaixo, queria ter viajado mais com suas filhas; queria ter tido tempo e oportunidade de dizer isto  a elas, à mãe delas, à sua mãe. Agora, nesta altura, impossível!

 

--Você tem filhos?

--Não.

--Pena! Mas ainda é jovem. Tenho duas, elas estão chegando aos doze e aos dez anos; sempre espertas, puxaram à mãe, são práticas, voluntariosas....E eu voando feito uma abelha perdida.

 

Veio-lhe à mente a imagem de uma abelha. Ele definitivamente não lembrava uma abelha; estava mais para um pequeno animal enervado e assustadiço do que para uma abelha. Não pode deixar de rir.

 

--Está rindo? Mas é verdade. Sou uma abelha que voa, voa. O tempo todo; há anos. Desconfio que eu vou ver minhas filhas crescendo à distância....

--Está sendo pessimista. Não creio.

--Mas olhe! A minha pequena até sonhou comigo outra noite.

 

“Ela disse que caminhava num campo cheio de lírios amarelos. Disse que seus pés tocavam o chão como se este fosse coberto de nuvens e à medida que andava, roçava nos lírios que se abriam;abelhas alvoroçadas voejavam atarefadas,ela sonhou assim mesmo e dizia que das várias abelhas sem rosto que viu subia um som, até que de um dos lírios brotei eu, sem sequer ter voltado meu rosto a ela, que se despediu de mim com um beijo”

 

O pequeno homem silenciou e ele respeitou o momento dele, voltando ao livro que o esperava impaciente, com suas colunas dóricas e suas paisagens fictícias. Não fora naquele dia mesmo que ele começara a aprender mais sobre si mesmo? Como faria para dominar aquelas palavras que desafiavam seu pensamento, usando as falas do escritor como escudo para defender suas ideias impossíveis?

 

“Noutro dia ela sonhou que estava envolta em luz. Que da barriga brotavam os sons de uma criança que nunca o fora, numa quimera do que pudesse ser, abandonada à sorte do que nunca seria. Ela o interpelou:

--Mas então? Que será de nossa via? Haverá então mais um sonho, onde eu poderia me gerar a mim mesma, rasgando a impermanência do que somos, para destilar a divina qualidade da fibra que antes nos unia?

--Não, querida, já não somos mais uníssonos, somos abismais e fantasmáticos. Temos a fímbria da aurora, que nos enleva a alma. Temos o ar dourado de prana e miríades de luzes que nos habitam sob a pele, como as contas de um rosário...”

 

--Eu às vezes penso em como seria se eu largasse tudo, para viver a minha vida.

--Conheço esta conversa...

--Você já fez isto?

--Isto o quê?

--Assim, dar um chute para o alto. Desprezar tudo, dar um tempo, se afogar na bebida, esquecer no ventre de outras o que não pode fazer em casa...

--Não, meu caro. Decidi fazer antes o que eu poderia ter feito há muito tempo.

--E então?

 

“Então carrego comigo o sonho; os papéis eu carrego no bolso, cheios de rascunhos de mim mesmo, os quais eu testarei um a um. Eliminarei aqueles que por tristonhos não desejo e serei para mim mesmo mais que a sombra do que eu já fui.”

 

--Parece frase de um livro!

--Estou escrevendo um; pretendo terminá-lo aonde vou pousar.

--Aonde vai pousar?

--Conheço umas pessoas em Belém. Chove muito lá, nesta época. No entanto, uma vez que estive lá, me encantei com as belezas da terra.

--Ah, namora uma moça lá!

--Não, separei-me recentemente.

--Sinto muito.

 

Desta vez, foi o homenzinho que respeitou o silêncio dele enquanto sorvia mais um gole do gin que dedilhava com gelo no copo.

 

“--Não sente falta de mim?

--Tanto quanto se pode sentir que se lhe arranquem um braço...Tanto quanto se pode sentir que lhe dilaceram o dorso, numa chaga que divindade alguma suportaria. Não tanto quanto se poderia suportar um raio vindo de algum recanto cósmico, numa chama instantânea e atroz a retorcer em segundos o que os séculos jamais moveram...

--Fica então! Fica. Terás então todo o mel de minha essência. Nada ofertarei às abelhas que adejarão sobre minhas pétalas. Todo o perfume tu o sorverás! Seremos então mais unos que a divindade; seremos então como duas metades completas de um fruto proibido e dourado. Seremos então como um pássaro primevo, a ressuscitar das chamas de seu próprio ventre...”

 

Novo solavanco. A bebida, antes tão comportada em seu copo, agora flutuava improvável entre as mãos do homúnculo e a camisa impecável que vestia. Uma espécie de bola líquida caiu, numa vertigem, banhando-o de gin e gelo e partículas luminosas que preenchiam o espaço que sobrava naquele momento improvável.

 

--Puta que o pariu!

--Molhou-se?

--Odeio essas máquinas.

 

As mãos se crisparam de novo, seus lábios finos emudeceram e tornou a tartamudear as orações inúteis quando soou o aviso dos cintos a serem atados. O serviço de bordo recolheu os copos e pratos às pressas, enquanto corria o carrinho entre as poltronas. Retomei meu livro. Olhei para o lado da janela que estava ocupado pela moça sorridente. Ela dormia a sono solto, leves movimentos imperceptíveis mostravam que ela sonhava, talvez com um menino à distância, talvez com uma fênix que renascia lá embaixo, talvez com as brumas que se adensavam à frente. Não, não dava para ler com tanta desarrumação. A criança chorou de novo, a mãe murmurou um “já passa”, um velho tossiu no escuro e eu desliguei a luz.

 

--Juro que se eu sair dessa, eu vou ficar mais com minhas filhas! 

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