Cultura Popular
Enéas Athanázio
Não sei o que não esteja em crise neste país. Crise inicial, intermediária ou terminal, mas sempre crise. Na área da cultura, nem é bom falar. Acabo de saber agora que aa chamada literatura de cordel, uma das mais antigas manifestações da cultura popular brasileira, e que nos foi trazida pelas naus portuguesas, corre o risco de desaparecer. Vários fatores contribuem para isso, em especial a invasão de produtos culturais estrangeiros, principalmente norte-americanos, na maioria das vezes puro lixo rotulado de cultura.
Quem relata os estertores da literatura de cordel é Maria do Socorro Cardoso Xavier no excelente livro ‘Tesouro Redescoberto”, publicado pela Editora Universitária da UFPB (João Pessoa – 2002). Professora emérita, historiadora, autora de inúmeras obras, ela desenvolveu uma longa pesquisa sobre o tema, procurando mostrar a riqueza do folheto em verso. Com esse objetivo investigou o assunto através de visitas; viagens, entrevistas e incansáveis leituras de obras especializadas. Abre o livro com um ensaio introdutório, mostrando que as elites costumam ser hostis às formas populares de cultura, embora estas tenham raízes tão sólidas, ou mesmo mais sólida, que a dita cultura erudita. Isso porque, a cultura popular tem sido até um veículo de hostilidade aos cânones preestabelecidos da sociedade; “é a tradição do povo brincando e dizendo verdades”. Dizia Câmara Cascudo que as características da cultura popular são a antiguidade, o anonimato, a divulgação e a persistência. Vamos esperar que, apesar de tudo, essa persistência salve do desaparecimento esse riquíssimo veio da sabedoria e arte do povo.
O livro reproduz, em seguida, longa entrevista de Paulo Nunes Batista, poeta erudito e popular, considerado hoje o maior cordelista nacional autor de mais de 120 trabalhos do gênero, sem contar a copiosa produção em outras áreas, tanto em prosa como em verso. Morou em umas vinte cidades brasileiras e durante quatro anos viveu exclusivamente da venda de seus folhetos nas praças e feiras. “Fui poeta profissional, camelô da poesia, o homem da cobra da poesia. Eu não tinha outra atividade. Com isso comprei uma casa...”Assim dedicado, tornou-se autoridade no assunto, na teoria e na prática. Mostra como o cordel sempre foi olhado com descaso pela elite intelectual brasileira, embora escritores famosos tenham revelado simpatia por ele, entendendo que não existe limite entre poesia popular e erudita; lá e cá existem grandes talentos.
Mas o livro contém muito mais: cantorias entre repentistas famosos, biografias resumidas de poetas populares, falecidos, vivos e da nova geração, mulheres e crianças na poesia popular, glossário, bibliografia, álbum fotográfico e outros assuntos relacionados. É um rico manancial de informações sobre uma arte cuja riqueza a autora procura redescobrir e mostrar. O livro é um brado em defesa dessa forma tradicional de manifestação do povo, aplaudindo ou criticando, mas revelando sempre o sentimento das camadas mais humildes de nossa gente. “O cordel á a linguagem do povo” – afirmou com razão o grande Paulo Nunes Batista.
Enéas Athanázio é grande escritor brasileiro e crítico literário. É natural de Santa Catarina. Autor de inúmeras obras de ficção e outras estórias reais.
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