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Cartas-->Aos anônimos remetentes -- 12/10/2001 - 00:11 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aos anônimos remetentes de certas mensagens que, em todo caso, e apesar de tudo, pela porção de humanidade que, em sua incompetência atávica, não conseguem disfarçar, ainda me comovem.

_______________________________


O meu carteiro traz no passo ligeiro e no semblante confiante a mesma promessa de eficiência de um sedex. Verdade se diga, se algo funciona neste país, é o serviço de correios. Inatacável. Pode-se objetar que seja caro, mas não negar-lhe a excelência. Funciona.

Pois "o meu carteiro" parece ter incorporado o personagem, o protagonista dessa história de sucesso junto ao grande público. Depois de dizer o seu nome completo, um aposto: "o seu carteiro". E é o que me autoriza a escrever, a usar sem pejo "o meu carteiro", como se se tratasse de uma relação pessoal, afetiva até.

Depois desse aposto, com um gesto perfeitamente consciente e elegante, coisa de quem se sabe bem no papel que desempenha, ele completa: "... movido a ..."

(deixa a frase no ar, espaço para a participação do cliente, agora um seu espectador, como faz todo bom entertainer, para só então conclui-la)

"... maus tratos!"

No momento em que esse prodigioso número se realiza, esse lapso de tempo por mim colocado entre parênteses é de suspense absoluto. É fundamental o gestual empregado, o braço esquerdo estendido como quem descreve no ar a duração da fala, mas também os seus silêncios, enquanto a cabeça, inclinada, perfaz uma vênia marota, antes da entrega, com a mão direita, da correspondência tão ansiada. O olhar, de soslaio, analisa as reações do agora espectador boquiaberto.

É assim que o meu carteiro se apresenta, e assim ele percorre o mundo, a sua pequena porção de mundo, com graça e leveza, e com a eficiência de um sedex. Quando se ausenta, segue adiante, fica no ar o impacto daquela sua construção de personagem do nosso dia a dia, mas para além dele, para sempre.

Certa vez, tendo sido chamado a compor as letras de um disco brasileiro do chansonnier Georges Moustaqui, em Paris, a minha preferida tinha um problema insolúvel: o tema para nós inusitado e improvável. "Le facteur", é esse o título da canção: "O carteiro". Pode? Sim, é claro que conhecia aquela da Isaurinha Garcia:

"Quando o carteiro chegou
e meu nome gritou,
com uma carta na mão,
ante tristeza tão rude,
não sei como pude
prestar atenção."

Na minha infância houve canções incríveis de incomensurável sucesso. Hoje são outros os parâmetros. Um sucesso dura quinze minutos, se tanto. Uma canção de que me lembro, por tê-la decorado com gosto, se chamava "O tintureiro":

Segunda-feira
logo de manhã cedinho,
vai lá em casa um baixinho
e eu me ponho a atender.
Eu abro a porta
e ele todo prazenteiro
com um sorriso vai dizer:
Tintureiro, tem roupa pra lavar?
(Não, não senhor...)
Camisa pra engomar?
(Não, não senhor...)


A canção de Georges Moustaqui começa com "Et maintenant le facteur est mort" [E agora o carteiro está morto]. Um dia eu disse ao compositor que, no Brasil, era difícil imaginar um carteiro, ou a morte de um carteiro como tema para uma canção popular. Mesmo porque, hoje sei, não é todo mundo que tem a sorte desta intimidade que eu tenho, a ponto de dizer, como no início deste texto: "o meu carteiro". Não temos todos uma relação assim pessoal. Se um carteiro morrer, começa a vir um outro, e assim por diante. Entre nós, tudo tende à desconsideração, ao desmazelo. Como tantos outros prestadores de serviços à coletividade, um carteiro não costuma ser visto ou notado. Quando muito, sofrerá maus tratos por alguma coisa que venha a dar errado. Por isso, mais ainda admiro a forma como "o meu carteiro" sabe se fazer notar, a ponto de se transformar em assunto para mais uma crônica de um obscuro autor num site que se pretende literário. Hoje, obra dele, talvez não me fosse mais tão difícil imaginar, em português, uma letra para a canção de Georges Moustaki, de que tanto gostava.

Chego a pensar que as boas letras de música popular, como toda a grande poesia verdadeiramente representativa do idioma em que se produz, seriam intraduzíveis. Mesmo porque o autor da versão dificilmente poderá transportar para o outro universo poético e musical, os aspectos não verbais da criação, alguns deles fundamentais para a recepção das obras. De Georges Moustaqui, seria preciso dizer que teve sucesso, comparável nos anos 60 ao de um Chico Buarque entre nós, porque dominou, sem ser francês, o dialeto parisiense, seus estilemas. Caiu no gosto do público. Quando o conheci, já não era mais atual, mas mantinha um público médio de três mil pessoas por espetáculo. E ele me deu a oportunidade de ter para mim esse público, por alguns instantes, pela duração de três músicas, nas vezes em que me apresentou como parte do seu show, cantando a versão da sua música de maior sucesso nos anos pós-68, "Bahia", que tem música de Mário Lima, um ex-colega meu de adolescência:

"Bahia da ladeira pro mar
Bahia de sangue, sonho e suor
Bahia seus ventos de inventar
Bahia de São Salvador."

O paraíso é feito de grandes coisas pequenas,
pé, povo, capoeira, pó e pau,
em sangue, em luta, em morte, morenas,
o côco na barriga, berimbau."

Sobre Georges Moustaqui, diria tratar-se de um universo que absolutamente não se deixa transpor, sem traumas, para o nosso cenário. Muito do nosso cancioneiro tem diretamente a ver com a tradição da chanson francesa. Mas o fato é que, hoje, é a chanson francesa a buscar na nossa expressão musical popular as suas próprias raízes. Aqui elas se fincaram e produziram frutos de futuro. São as mesmas raízes que, lá, já não mais conseguem se manter presas ao solo que um dia foi tão fértil, e nem produzir mais frutos tão saborosos.

Antes de mim, a cantora Nara Leão e o cineasta Cacá Diegues fizeram suas tentativas, que só não foi inteiramente inglória porque a canção "José", gravada por Rita Lee, se transformou em hit ao longo de hoje impensáveis meses a fio:

"Olha que foi
meu bom José
se apaixonar
pela donzela,
dentre todas
a mais bela,
de toda a sua
Galiléia."

Essa canção foi composta, originalmente, para a interpretação da musa existencialista Juliette Greco. A revelação me foi feita pelo compositor: a musa não queria correr o risco de, com tal gravação, afrontar a igreja católica, a tradição católica francesa. Pode? A canção fazia o que tantos depois fizeram, que é imaginar José e Maria, a sagrada família do Menino Jesus, como sendo uma família como outra qualquer, com os nossos mesmos humanos dilemas:

"Por que será, meu bom José,
que esse teu pobre filho, um dia,
andou com estranhas idéias
que fizeram chorar Maria."

Um compacto duplo reuniu os magros resultados da dupla famosa que assina a versão. A própria Nara Leão deixou registrada a sua interpretação, num compacto duplo que trazia o maior sucesso do compositor e cantor em todo o mundo, "Le Metèque", que aqui não virou nada:

"Com minha cara de estrangeiro,
judeu errante e aventureiro..."

O LP brasileiro do compositor, que ficou sendo o meu sonho de grandeza por alguns meses, acabou não acontecendo. Hoje posso admitir, distante daquela minha sufocante temporada parisiense, que ele não tinha mesmo nenhum futuro, que não podia ser. Certa vez, num dos meus piores momentos na Cidade Luz, liguei para o compositor, querendo dar um jeito em tudo, um rolê, uma guinada.

Eu havia concluído duas letras, duas versões, e queria que ele as ouvisse. Respondeu que tinha sido bom eu ter ligado, pois no dia seguinte estariam em sua casa Jorge Amado e Zélia Gattai, que almoçaríamos juntos. Quem sabe eu não poderia mostrar para todos eles o que havia conseguido. E assim foi. E foram extremamente elogiosas as palavras do escritor baiano, que, de imediato, comparou aqueles meus dois magros resultados ao que havia de melhor na nossa música popular.

Hoje, à distância, posso ter a certeza de ter conhecido um homem generoso. Sei que aquelas duas letras não estavam, nunca ficaram prontas. Relê-las, hoje, é também um ato de humildade, sendo ao mesmo tempo um lampejo de esperança. É como se a mim mesmo eu declarasse que ainda não está bom, mas que sei disso e posso seguir tranqüilo, conscientemente adiante, pois o caminho é meu, de ninguém mais. Quem sabe um dia...

Mas Jorge Amado gostou muito mesmo de um poema que lhe mostrei medrosamente, num momento em que os outros circunstantes se encontravam desatentos naquele espaço. Os meus versos diziam:

"O nosso amor foi espanto,
cavalos soltos e chão,
ruas cruzadas na noite,
por entre rimas em ão."

É quase inverossímil pensar hoje que aquele meu ilustre leitor tenha ficado realmente entusiasmado com a simplicidade desses versos. E não foi algo para a pequena e prestigiosa platéia ali presente, que ninguém estava olhando. E nem foi algo para mim, para que eu ficasse contente, ou para que, no futuro, disso me lembrasse. Foi uma reação inteiramente pessoal, de si para consigo, que é como suponho que se diga, que se possa dizer.

E já que estamos em plena Île Saint Louis, atrás de Nôtre Dame, no coração de Paris, e nesse apartamento amplo de cobertura em que vivi depois alguns meses como poeta convidado, a compor letras para um disco brasileiro do seu proprietário, e já que os circunstantes eram pessoas da mais alta estima, não seria inconfidente lembrar que, naquela tarde, também houve lágrimas sentidas.

Foi um momento de grande comoção para este que escreve, e que naquele tempo era cantor na noite do Quartier Latin, no bar brasileiro Le Discophage. Foram tocantes as lágrimas de Zélia Gattai, na época para mim apenas a esposa do escritor famoso. Enquanto eu cantava, vi que ela estava chorando, e por pouco a voz não se me embargava. Ao nos despedirmos, Zélia me agradeçou por tê-la feito ficar emocionada. Da mesma forma como eu agora revelo aqui a minha gratidão para com "o meu carteiro, movido a... maus tratos".

Vejo que, depois daquela cena cheia de comoção, eu também precisei seguir adiante, em meio ao inverno rigoroso daquele ano de 1979, sapateando a neve numa Paris em que brasileiros disputavam o mercado da música quase no tapa, e eu ali apenas por acaso, de passagem, indo.

Logo mais, à noite, eu teria de tentar, no palco do Le Discophage, fazer o mesmo, comover cantando. Mas para lá me dirigi com a quase certeza de que isso não haveria. Eu seria apenas mais um entre tantos brasileiros cantando. À minha fretne, um bar repleto e enfumaçado, cada pequeno grupo ao redor de uma mesa, sem ouvidos de ouvir, incapazes de qualquer sensibilidade. Às vezes, como era inevitável, um grito estridente, o pedido de música de algum brasileiro, quase sempre famoso. Os pratos eram feijoada, xinxim de galinha, vatapá. A bebida era a caipirinha, é claro. Como comover nessas circuntâncias, eu pergunto. Cantar na noite é sobretudo heróico.

Fiz isso durante alguns anos. Hoje lamento a sorte dos meus amigos que cantam na noite araraquarense. Tive platéias as mais diversas, gentes de todos os quadrantes do mundo. Cantei nos piores moquifos, inferninhos de Lisboa, buracos, ruas de aldeias turcas, boites em Genebra, restaurantes iugoslavos, locais alemães ou latinoamericanos em Munique. Já compus programas com números de fado e strip-tease. Até umbigada já dancei com uma carioca, de Niquite, digo, Nictheroy, Marilza, que também era cantora e viajante, e que não sei mais por onde andará. Não foi bolinho.

Paris, o mundo não é somente uma festa. Pois foi preciso que houvesse aquela tarde improvável na Île Saint-Louis, chez Georges Moustaqui, à côté de chez Monsieur Piazolla, na vizinhança de alguns de meus ídolos, como Françoise Hardy, para que eu me soubesse emocionante, patético talvez, nesse meu percurso inglório como tantos outros percusos humanos. Cenas como essa, de que muito bem me recordo, não são hoje quadros na parede, e nem dóem. São a minha certeza interior de ter vivido, de ter me emocionado tanto tantas vezes. São também a minha certeza maior de que ainda estou pronto para as emoções que virão, de que não estou, como não poderia estar, completo.

Como "o meu carteiro", sigo adiante. Na casa adiante, alguém ainda me espera com alguma mensagem de esperança, alguém espera que eu cumpra a minha tarefa. Mas no fundo, de mim para comigo mesmo, sei que estou no cumprimento da minha missão pessoal e intransferível, e torço por encontrar no caminho, um belo dia, algum cliente que também saiba se deixar transformar em espectador generoso para o meu número improvável, e que se comova, e que me ajude a transformar esse meu percurso diário num espetáculo vibrante e inesquecível.

Quem assina este texto é um escritor como milhares de outros, sem qualquer garantia de que terá um dia compensação ou reconhecimento. Quem assina este texto é um escrevinhador qualquer, um quixotezinho interiorado como outro qualquer. Movido a maus tratos. Como o seu carteiro.

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