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Cronicas-->A PATINADORA -- 04/09/2006 - 15:26 (Délcio Vieira Salomon) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A PATINADORA

Délcio Vieira Salomon


Em redor da praça da Assembléia homens e mulheres, velhos e jovens fazem sua caminhada habitual de todas as manhãs. Muitos, inclusive, acompanhados de seus cachorrinhos de estimação. Alguns mais modernos estão correndo e dizem estar fazendo cooper. De todos é o matinal esforço muscular para perder peso e barriga. Programa imposto por amor à estética e, para os mais velhos, à longevidade.

A maioria é de classe média e viver para eles se reduz a tão pouco. Resignação e vida já se fundiram há muito tempo. O mistério desse apego à maior e, ao mesmo tempo, à não menos efêmera de nossas posses, esconde-se atrás da esperança sempre alimentada de ilusões e conscientes disfarces. Vive-se. Mas é preciso justificá-lo com o desejo do prolongamento do processo.

Para todos a vida é apenas continuação do dia anterior. A verdade é que todo mundo, sem exceção, quer sempre a existência de um dia anterior, seguido de outro para virar também novo dia anterior e assim registrar no tempo a garantia do dia seguinte de olho na continuidade ininterrupta da esperança de viver. Não é por acaso que batizaram, por unanimidade, de porvir à meta desta expectativa. O dia que estará por vir.

Na quina do pátio defronte à igreja, jaz, sentado no chão, um senhor de cabelo grisalho. Aparenta mais de sessenta anos. Quase setenta. Todos os dias, faça sol ou chuva, brisa ou vento, chega àquele sítio impreterivelmente às sete horas da manhã. Como faziam os habitantes de Königsberg, ao verem Kant - o filósofo - passar em direção à Universidade, podemos também acertar o relógio com o horário de sua chegada.

A seu lado, os mesmos sacos de plástico a guardar roupa e comida. Cabelo penteado, camisa e calça ensebados. Fácil identificar a gordura pelo brilho do tecido aos raios do sol. Lá está ele sempre de meia e sapato. É mendigo, mas não é maltrapilho. Vez ou outra lava a roupa no chafariz atrás do templo, perto da Assembléia Legislativa. Da rua oposta é que ele surge para começar a jornada.

Estático, distante do mundo que o rodeia, imagina tirar canções de velha e enferrujada gaita. Quando se passa a seu lado, só se ouve grunhido metálico, ao ritmo da aspiração e da emissão do ar pelo pulmão. O mesmo som que faria qualquer criança de três anos ao soprar idêntico instrumento.

Mas ele está compenetrado. Alheio a todos e a tudo, vive embutido em outro universo. Dentro de si mesmo, vê imagens e ouve vozes. E projeta seu mundo nas palhetas movidas pelo ar de seus pulmões.

Será um esquizofrênico, autista que frequentemente entra em êxtase catatónico? Que importància tem, se seu semblante traduz a felicidade que inunda todo seu mundo interior?

Do lado oposto, no gramado rodeado de paineiras, deitada sobre a relva, mulher de tez morena puxada à azeitona, carregando nas costas a probabilidade de ter mais de cinquenta anos, faz exercícios de alongamento.

Parece ser bastante conhecida dos frequentadores da praça. Sobretudo dos ociosos, sentados nos bancos do jardim. Certa vez, o cochicho de um casal, que me precedia na mesma rota da caminhada, ao comentar seu modo estranho de andar com pernas e braços esticados indo e vindo, para frente e para trás, em ritmo germano- militar, a ganhar mais força no movimento, apelidou-a de A Patinadora.

Ouvi e mentalmente registrei. Há quase dois anos está gravado na memória. Para todos os efeitos passou a ser para mim e, acredito, para seleto grupo de caminhantes: A Patinadora da Praça da Assembléia.
Mas hoje ela não está patinando. Está semideitada na relva, em ginástica de musculação. Há mais de vinte minutos se concentra nos exercícios abdominais, das pernas, braços e tronco.

Eis que de repente começa a espernear e a todos assusta com alto e alucinante grito: - Socorro! Ai! Ai! Ai! Um bicho está me picando. Ai .Ai! Ai! Socorro, gente! É um bicho me mordendo. Socorro!

Seu olhar se divide entre o terror e o implorar de clemência a quem a vê. Ora se fixa na polpa da coxa onde deve estar o terrível inseto, ora, em pànico, se volta para os transeuntes como a pedir ajuda.

Entretanto, não toma nenhuma iniciativa para escorraçar o terrível hexápode predador. Horrendo e minúsculo monstro deve estar a atacá-la com garras e pontiagudos ferrões. Será um escorpião, uma migalomorfa caranguejeira, uma aranhuçu? Ou quem sabe uma taturana ou cabeludo mandruvá, com seu pelo-de-fogo capaz de queimar a pele e instantaneamente provocar dor aguda, febre, íngua?

Instantaneamente surge jovem de porte atlético e corre para socorrê-la. Com a habilidade de prestigitador tira-lhe da parte externa da bermuda, nada mais do que linda lagarta esverdeada, que lhe caíra ao colo, precipitada de uma das paineiras. E ri do próprio gesto. Ou do desespero da mulher?

Naquele momento já estão a postos vários curiosos e entre eles um bando de adolescentes uniformizados. Todos ostentam sobre a jaqueta o emblema do colégio municipal, vizinho à praça. Certamente estavam a gazear aula. Curiosos e alarmados pela gritaria correram para junto ao gramado.

Ao verem o resultado da operação de resgate, passam do susto à gargalhada e começam a debochar, em coro, da escandalosa patinadora, repetindo seu grito alucinante: - Ai! Ai! Ai! socorro gente, um bicho venenoso está me picando?!

Envergonhada a mulher se levanta e sai correndo em direção a sua casa.

Mas no dia seguinte novamente estará no mesmo local, a cumprir o ritual que a consagrou como A Patinadora da Praça da Assembléia. A partir de hoje terá acrescentado a seus títulos e sinais de identificação o de A histérica da lagarta esverdeada.
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