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Contos-->Numa noite tão especial -- 03/04/2010 - 13:47 (Fabrício Sousa Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Numa noite tão especial

Fabrício Sousa Costa


Ele levantou assustado. De repente. Na noite vazia. Noite sem lua. O envolvimento emocional agigantava-se em seu ser. Um rio saia pelos poros. A coberta consumia parte da água. A outra parte dispensou-se pelo ralo da área de serviço. Seu quarto era próximo à área de serviço. Pisou o chão. Seus pés afogaram-se no tanto de líquido espalhado. Não poderia voltar a dormir. Não queria afogar-se. Vivenciou uma sensação distinta dos seus 40 anos de vida. Levantou-se para dar vazão a toda essa água. Parou. Pensou no motivo de tanta aflição. Lembrou-se do sonho. Estava em um cemitério. Agachado. Atento. Confuso. Mirando o próprio túmulo. Não era apenas seu. Desconhecia o companheiro de túmulo. Não conseguira compreender a grande metáfora da vida. Não aceitara ser amedrontado por um sonho. “Apenas um sonho”. Uma vida. “Uma morte”. Levantou. Tomou banho. Alimentou-se. O espírito. Sentiu um espírito no banheiro. Um vazio no seu ser. Raúl era uma pessoa recatada. Adorava a solidão. Pensar. Refletir a vida. A vida para Raúl era uma metáfora. Passou a existência quase inteira. Queria compreender a grande metáfora. Tinha certeza de que morreria nesse dia. A única missão. Desvendar a metáfora. Tinha um grande quadro do Romantismo. Mal-do-século na parede da sala. Como um quadro do Romantismo? Um quadro que para ele retratava o cume da Segunda Geração Romântica. Não era romântico, era Romântico. Adorava Lord Byron, Victor Hugor, Camilo Castelo Branco, Fagundes Varela, Junqueira Freire, Álvares de Azevedo. Sobretudo este último. Era na poesia de Álvares que encontrava uma pista. Queria desvendar a grande metáfora. “Brincar com a morte. A morte é um mistério”. Cria que, se descobrisse o mistério da morte, acharia a grande resposta da vida. A desafiadora metáfora. Morte e vida. Não a Severina. Também dicotômica.

O telefone espanta-se de horror. O toque era tênue. Apático. Febril. Exalava suor pelas teclas. O tom era triste. A tristeza. Raúl limpou o suor do telefone. Atendeu nervoso. Sentira que era importante. “Alô”. Não houve resposta. “Alô”. Um suspiro macabro soou. Um fungado também. “Alô”. “Raúl... Não trago boas notícias”. “O que houve?” “Sua esposa faleceu”. Ficou pálido ao telefone. Duvidou um segundo da notícia vomitada tristemente pela sogra. “Quando? Como?” “Venha pra cá”. Desligou. Raúl misturava os sentimentos. Estava excitado. Triste, alegre. Sentiu saudades. A relação não vinha bem há 4 meses. Não se divorciaram. Cada um respeitou a individualidade do outro. Viajou da vida conjugal. Amava a esposa. Não gostava da invasão da solidão. Ela defronte para o mistério. “Agora ela vai descobri-lo”. Quando casados, ela não dava importância a essa bobagem. Ele passara 32 anos e alguns meses nessa tentativa. “Porra, por que ela?” Pela primeira vez, sentiu inveja. A morte não lhe causava espanto. Tinha um pôster gigante dela em seu coração. A morte emoldurada. Presente em seu órgão vital. Amava a sensação de desafio. “Morte vagabunda, filha da puta. Covarde. Tem medo de mim?” Mantinha distância dele por imaginar um acontecimento tão trágico. “Como Ana conseguiu?” Pegou Álvares de Azevedo e saiu.

Raúl estava num trânsito ordinário. “W3 sul a esta hora é um merda”. Abriu o porta-luva. Escolheu Pink Floyd – The Hall. O som nostálgico invadiu intrometidamente as lembranças. A morte no pensamento. Ana. A morte. Recordou um desvio pelo parque da cidade. 710/910 Sul. Dirigia pensativo beirando o Instituto Médico Legal. Respirou profundamente. Ar consagrado. Vitorioso. Misteriosamente vencedor. “Escolheu a pessoa errada, morte vagabunda. Não poderia ser Ana”. Chorou. Parou. Pensou. Achou-se ridículo chorando naquele trânsito miserável. “Que porra é essa?” Estava intrigado por não distinguir os sentimentos. A alma. O que é a alma? A expressão psicológica. Era culpa dela. “Tenho de controlá-la”. Não poderia lutar contra. Iria facilmente se envolver. Haveria de aprender pacificamente a conviver com ela. Enxugou as lágrimas. Estacionou o carro. Octogonal. Apartamento 301. Subiu as escadas como se estivesse contando seus degraus. Terceiro andar. A porta estava aberta. Entrou devagar. Olhou a decoração da casa atentamente. Percebeu alguns objetos de Ana. Estavam decorando a casa da mãe. Os quadros, as esculturas, os LP’s. Tudo montava um ambiente de reflexão para Ana. Era muito romântica. Raúl era muito Romântico. Um pouco cético para o amor entre humanos. Dualidade gélida para os dois. Solidão. Raúl amava a solidão. Ana a temia. Amor. Ana dava sua vida por Raúl. Raúl era companheiro de Ana. Viveram 20 anos de um ralação camaradamente perfeita. Os últimos anos. Reafirmação. Era o momento. Reflexão necessária. Viam-se quase diariamente. Como namorados. Caminhavam pelo Píton Farias. Pedalavam no Lago Paranoá. Assistiam aos consertos clássicos às terças-feiras no Teatro Nacional. Cinema toda semana na UNB. Reviver o namoro. Refletiam um passo mais sério. O casamento. Faziam planos de se casarem novamente. Queriam fazer diferente. Descartar a possibilidade de ocorrer a mesma pressa da juventude. A intenção era aproveitar todas as fases até chegar ao matrimônio. Era seu plano. Raúl, em uma oportunidade na Feira do Livro, no Pátio Brasil, disse que apenas se casaria se Ana respeitasse o momento de solidão. Sagrado. Precisava dele. Sua missão: descobrir o mistério. Necessitava de tempo. Silêncio. Pensar. Era o ofício. O telefonema. Rompeu os planos. As vidas. Mudou completamente as vidas. Agora Ana havia morrido. Abandonou quase tudo. Raúl não a abandonaria. Ana seria seu elo. Ela ajudá-lo-ia. Trabalhariam unidos.

“Como aconteceu?” Ventava. Frio. O estado de Raúl perante à sogra. “Ela o amava demais. Nossa relação era a mais sólida possível. Dava-se bem no trabalho. Como pôde fazer isso?” “Fazer o quê?” Raúl via sangue por toda parte do quarto no qual Ana vivera nos últimos 4 meses. Parede. Chão. Escrivaninha. Cama. “Por que tanto sangue?” Pensou por um segundo e meio na hipótese de suicídio. Mas se negava a acreditar. “Ana não faria algo assim”. Não havia motivos para tanto descaso com a própria vida. “Ela cortou o pescoço com o livro Amor de Perdição”. Como Camilo Castelo Branco poderia fazer isso! “Cortar o pescoço com um livro? Do Romantismo? Carregado de características bayronianas. Ela não gostava!” Ficou perplexo com a notícia. Não possuía a compreensão lógica da notícia. Gostaria de compreender. “Será que se contagiou com o mal-do-século?” Ana estava morta. Raúl excitado. Caminhou pelo corredor. Parou enfrente ao quarto de Ana. Quis olhar cada detalhe. No chão. Na parede. No teto. Entrou. Parou. Olhou a cama. Uns livros sobre a cama. Os quadros na parede. Salvador Dali. Adorava o Surrealismo. Floyd, Marx, Sartre. Girou a cabeça para a esquerda. Visualizou a escrivaninha. Encontrou um Álvares De Azevedo. Noite na Taverna. “Ana lia Álvares?!” A perplexidade enchera seu rosto de uma luz forte. Como uma face celestial. Folheou Álvares. Pensou encontrar alguma anotação. Não encontrou. Havia apenas um bilhete. Endereçado a Raúl. Era de horas antes da morte de sua esposa. Abriu magicamente o envelope. Estirou a carta. Fechou os olhos e ouviu. A voz. Na carta. Parecia com a dela. Ana quis preparar uma surpresa para Raúl. Um presente sem volta. Era mais que uma peça. Era declarar seu amor a ele. Sabia que não adiantaria mais falar que o amava. Teria que provar a ele o inocente amor que sentia. Eternizar o amor. Torná-lo imaculado. Se a descoberta do mistério era a vida para Raúl, Ana sentiu a obrigação de ajudá-lo a se realizar. Não queria descobrir antes dele. Gostaria de juntos desvendá-lo. Achou genuinamente que ele iria orgulhar-se. Raúl orgulhou-se. Sentiu inveja. Mas adorou a idéia de trabalharem juntos. “Mas como?” Ele não acreditava em fantasmas. Tampouco em vida após a morte. Menos ainda em comunicação com mortos.

Cemitério. Velório. Enterro. Raúl cemitério. Raúl metafisicamente introspectivo. O ambiente mexia com o espírito. Abastecia-se de incertezas. As cruzes. As lápides. As tumbas. Revigoravam seu espírito. Mergulhara num ambiente íntimo. Desconhecido. A relação dialógica parecia não ser dialógica; parecia analógica. Para ele o tempo seria o início. Começaria pelo tempo. Gostaria de encontrar uma tumba meio aberta. Ficava analógico vendo pelas frestas das tumbas. Negro era o buraco. Seu terno também. Ele também. E Ana? Voltou para a capela. Bastantes pessoas na porta. Vários conhecidos. O choro. O choro era uma expressão de limpeza interior. Por meio das lágrimas, os sentimentos, as dores somáticas seriam limpas. Como tudo em exagero ou tudo desmedido é prejudicial, o choro em demasia destrói a alma e a razão. Estava consciente. Parecia frio. Insensível. Não. Estava sartrianamente consciente. Sabia que não poderia inverter a situação. 3 capas rasgam-se interiormente. O coração estava mais vulnerável. Com as mãos na jaqueta, adentrou calmamente à capela. Cumprimentou algumas pessoas. Não falou com a sogra. Nem o sogro. Caminhou na direção do caixão. Parou antes de ver o rosto. Admirou o caixão. Aquela visão agradara-lhe. Amava o ambiente. Estava excitado. Continuou a caminhada. Parou perto do rosto de Ana. Sentiu a temperatura negativa do corpo. Uma faixa envolvia seu pescoço cortado por Camilo Castelo Branco. Lembrou-se de Álvares. Fechou os olhos. Sentiu-se privilegiado por alguém lhe amar byronianamente. Teria que retribuir esse gesto. “Mas como?” Morrendo por ela. Não poderia morrer ainda. Precisava desvendar o mistério. Era a missão. Ana compreenderia. Os poetas do mal-do-século não compreenderiam. “E daí? Não tenho que ser boneco de imitar”. Metamorfose ambulante. Queria ser. O primeiro a desvendar em vida. Faltava tão pouco. Ana o ajudaria. “mas como?” Era uma incógnita. Deu-se início ao cortejo. Saíram caminhando em passos lentos. Longe do caixão. Contemplando as pessoas. Adorava analisar o comportamento humano. Alguns choravam. Alguns riam. Alguns conversavam indiferentemente ao que aconteceu. Outros apenas pensavam. Raúl pensava. Analisava. Refletia. “Ana não mereceria nada inferior a isto”. O caixão mergulhou para não mais voltar. Raúl percebeu que a saudade era uma lâmina. Cortou as arestas de seu coração. Nunca mais teria aquele corpo. Tantas vezes lhe deu prazer. Carinho. Agora o perdeu para a terra analógica. O cimento acabara de lhe dar a impressão de um soco no estõmago. Cortou os vínculos permanentemente com o corpo. O cimento dissera talvez. Quem sabe, ele tenha razão.

Raúl estava em seu apartamento pensando em Junqueira Freire. Amando Ana em seu inconsciente. Consciente. Pegou uma fotografia. Sentiu saudades. Analisou a possibilidade de visitá-la. Precisava despedir-se. Todas aquelas pessoas no velório atrapalharam. “Não tive a oportunidade de despedir da minha defunta”. Esperou anoitecer. Já eram 23 horas e 17 minutos. Desceu do apartamento. Conferiu o material no porta-malas. “Como Ana estará depois de 4 dias sem nos vermos?” A W3 Sul estava vazia. Pisou fundo no acelerador. Ligou Nazareth. Ouvia a música. Ela o contextualizou. Chegou ao cemitério. Havia marcado a tumba. Não demorou a encontrá-la. Parou o carro. Desceu devagar. Teria muito analógico pela frente. Sentou sobre a tumba. Mirou aquele ambiente. Olhou o analógico. Era meia-noite e meia. Puxou conversa com Ana. Não ouvia resposta. Insistiu. Nada. Pensou que ela não o perdoara por não ter se despedido. O Lago Paranoá era sua tristeza. Aparentava o sentimento. Enorme. Pensou. Decidiu retribuir o sacrifício. Queria demonstrar que a amava. Voltou ao carro. Abriu o porta-malas. Pegou o material. Primeiro quebrou o cimento, sem destruir a tampa. Retirou-a. Desceu ao buraco. Abriu o caixão. Bela. Bem vestida. Fingindo que estava dormindo. Sentiu o perfume de Ana. Era o mesmo perfume que o enlouquecia. Fahrenheit – Paris. Era a fragrância daquele momento. Era a fragrância de numerosos momentos. O coração bateu mais forte. Beijou-a amorosamente. Como fazia no auge do amor. Ela correspondia ao ardente beijo. Raúl a ouvia dizer que o perdoou. O coração bateu mais forte. Beijava tão loucamente que parecia que os lábios de Ana despedaçavam-se. Tirou a roupa dela vagarosamente. Acariciou-a como nunca havia feito. Queria sentir o cheiro-Fahrenheit por todo o corpo. Ana de olhos fechados. Sentindo-se amada. Deliciando-se com todo o amor. Amaram-se ali, sem inibição do tempo. Adormeceu ao lado dela. Necessitava protege-la. Necessitava sentir-se protegido. Ao lado de Ana. Byronianamente. Como Álvares de Azevedo sonhara.

Antes de o dia amanhecer. Acordou. Estava sentado na tampa da tumba. Acendeu um cachimbo. Contemplou analogicamente o céu estrelado de Brasília. A lua cheia. Como seu coração. Olhou ao redor de si. Contemplou toda aquela bela paisagem. Repleta de eucalipto. Olhou para Ana. A fumaça entalou em seu pulmão. Tossiu bastante. Os olhos estavam vermelhos. Não acreditou no que viu. Ana estava dormindo abraçada com ele mesmo. “Como poderia ser?!” Assustado. Era seu estado. O coração batia em disparado tentando achar uma explicação lógica. Parou. Pensou. Refletiu. Diante da revelação do mistério. Acabara de desvendá-lo. Não era mais mistério. Para ele. Percebeu que verdadeiramente Ana o ajudou. Levantou devagar. Não queria perturbá-los. Saiu admirado do sentimento único dos dois. Colocou mais fumo no cachimbo. Saiu fumando a contemplar o céu estrelado de Brasília.
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