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Erotico-->TONINHO DÁ UMAS DICAS -- 03/03/2005 - 04:32 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER













TONINHO DÁ UMAS DICAS










Grupo das Tentativas Válidas

Professor Epaminondas





















ÍNDICE


Introdução ..........................................
1. Retorno .............................................
2. Surra exemplar ......................................
3. Jardim sem flor .....................................
4. Obediência cega .....................................
5. Minha mãe ...........................................
6. Preciosas recomendações .............................
7. Castigo e recompensa ................................
8. Outro episódio carnal ...............................
9. Descuidos ...........................................
10. As desgraças ........................................
11. Capadócio ...........................................
12. Meu jaleco de enfermeiro ............................
13. Frente a frente com o facínora ......................
14. As alegrias .........................................
15. Uma coisa puxa outra ................................
16. A presença da morte em minha vida ...................
17. Processo catártico ..................................
18. Mal de Alzheimer ....................................
19. Persistência dos conflitos ..........................
20. O sofrimento alheio .................................
21. O medo das transformações ...........................
22. Ainda as transformações .............................
23. As ondas de amor ....................................
24. Convite para reencarnar .............................
25. A primeira fita .....................................
26. Especulações ........................................
27. A segunda fita ......................................
28. Uma questão delicada ................................
29. A terceira fita .....................................
30. O fenômeno da fixação ...............................
31. A quarta fita .......................................
32. Vasos comunicantes ..................................
33. A quinta fita .......................................
34. Com Maciel ..........................................
35. Com Epaminondas .....................................
36. O último encontro ...................................
37. Página final ........................................



INTRODUÇÃO

Arrependidos, os espíritos vagam pelas trevas do báratro. Buscam a luz. Têm a consciência pejada pelos crimes e loucuras que praticaram anteriormente. Não sabem conduzir-se pelas virtudes, mas conhecem os pontos críticos de seus procedimentos em descompasso com as leis.
Você, caro amigo, já caracterizou o seu coração, segundo os preceitos da caridade, da esperança e da fé? Você já se filiou a alguma agremiação religiosa de cunho espiritista, para usufruir o direito ao conhecimento básico da doutrina dos espíritos? Ou prefere divagar pelos rumos pretensamente científicos das teses que aproximam os estudos espíritas dos diversos ramos dos conhecimentos meramente materiais?
Nós estamos realizando a culminância de um curso por meio deste ditado medianímico. Temos a visão do amor segundo o prisma de Jesus, contudo, ainda não conseguimos inseri-lo no fundo dos corações. Se viéssemos dizer o contrário, encontraríamos os leitores dispostos a acreditar em que estejam perante seres de superior categoria espiritual?
O Grupo das Tentativas Válidas está de volta, após alguns anos de estudos aprofundados a respeito do socorrismo como meta primeira de quem aspira a deixar esta esfera evolutiva, para adentrar em outra mais adiantada, conforme o preceito evolucionista.
Nosso mestre atual é o Professor Epaminondas .
Valha-nos a boa vontade do médium e a inteligência do amigo leitor.
Deus nos abençoe a todos!



1. RETORNO

Enquanto aguardava a vez de comparecer ante o médium, repassei as lembranças dos tempos de encarnado. Não querendo realizar simples autobiografia, reuni alguns parentes e amigos para me fornecerem elementos que pudessem melhor caracterizar quem fui e o que fiz, já que os atos repercutem no mundo exterior sem que exerçamos controle.
Reavendo os episódios que me pareciam os mais expressivos, tive a maior das decepções, porque nada do que se passou comigo tinha valor de exemplo para a meditação dos leitores. Eram histórias comuns, piegas mesmo, sem graça e incapazes de edificar sobre a moralidade espírita.
Mas precisava justificar a escolha do mestre, pois era o primeiro a ser convocado e tinha por obrigação mínima de cumprir o compromisso de mensageiro. Sabia que o estímulo das palavras iniciais constitui o impulso para a realização do grupo, no entanto, isso não chegou a preocupar-me, uma vez que o círculo dos colegas não iria permitir que meus dizeres se constituíssem em pedra de tropeço.
Transformei a narrativa em dissertação com o fito de atenuar o impacto dos acontecimentos, no entanto, não concordaram comigo e me obrigaram a efetuar o relato de minha conturbada vida, ainda que correndo o risco de me ver interrompido e o texto apagado.
Antes de encerrar este mea culpa prévio, cumpro o dever de avisar que nem todos os termos cobrirão a rudeza das intenções ou a crueldade dos seres envolvidos nas tramas.

Senhor, pedimos-lhe que abençoe a nossa turma e possibilite que o trabalho chegue ao fim com alguma elevação de pensamentos. Receba, antecipadamente, o nosso mais profundo agradecimento pela existência atual, que representa verdadeira vitória sobre a miseranda condição em que estávamos há alguns poucos anos, do mesmo modo que são poucos todos os séculos de sofrimento, que desaparecem quando nos esquecemos, finalmente, de que venham obstar-nos os arremessos de incompreensão, oferecendo-nos os argumentos mais lógicos para o aconselhamento subjetivo. Por último, inspire-nos a humildade de quem reconhece inferior o trabalho que realiza, através da expectativa de que iremos aperfeiçoar as virtudes, sob a disciplina da transmissão mediúnica. Assim seja.



2. SURRA EXEMPLAR

Mágoa das antigas, começo minha recordações por episódio que, repetidamente, perpassou pela minha memória, provocando inúmeras reflexões.
Certo dia, meu pai me agarrou pelo braço e, com a outra mão, deu-me três fortes palmadas que me deixaram a pele vermelha, conforme pude constatar, enquanto deixava escorrer grossas lágrimas.
Achei, pela vida afora, que foi injustiça, que bem poderiam ter conversado comigo, que o fato de ter beliscado meu irmão no berço deveria ter sido compreendido como resultado do mais cândido sentimento de ciúme, que a força que empreguei não era para aplicação de tão severo corretivo...
Não quis, jamais, o depoimento de meus pais nem de meus irmãos. Socorri-me da opinião de meu tio, vinte e tantos anos mais velho que eu e que vivia conosco.
Recordei-me de que, naquele dia, ele estava em casa, salvando-me de apanhar bem mais. Mas não dera nenhuma palavra comigo. Sendo assim, quis saber o que dissera ao meu pai.
— Disse a ele que criança que sofre cria medo, principalmente se não tem como revidar. Torna-se covarde. Desforra nos mais fracos. E outras coisas assim.
Fiquei encucado com as explicações, principalmente porque me remeteram a observar o meu procedimento durante a vida toda.
Queria dizer que jamais estivera a pique de cometer nenhum daqueles atos sugeridos. Como a tese acabou parecendo-me verdadeira, desejei consultar os amigos do grupo e os mestres sobre se não seria mera desculpa atribuir à sombra do passado a debilidade de caráter patenteada.
Meu pai foi quem compareceu à invocação. Veio arrastando-se, escorrido em lágrimas. Pálido, revelou-se com o aspecto funéreo que lhe guardei do dia de seu enterro. Queria o meu perdão, que fora um desgraçado, que tudo que fizera na vida repercutira de forma rude e perversa.
Quando pensei em estender-lhe a mão, desapareceu, sem sorriso sarcástico, sem grito apavorante, sem imprecação contra Deus.
Fora um fantasma de minha infância, que se afastou de mim para sempre.
Perplexo com o fenômeno cristalizado e com a metamorfose íntima, submeti-me, eu mesmo, à experiência de rogar pelo indulto de meu mano, vítima da infantil profanação.
Desta feita, ninguém compareceu, mas me vi em condições de reconhecer um período anterior ao meu nascimento, quando, no etéreo, disputava com outro ser a benquerença de nossos pais.
Por último, não tendo como remediar sentimentos que já não existiam, sorri extremamente satisfeito por haver deixado naquele fraterno coração a suavidade de um amor que se estabeleceu através de inumeráveis provas que ele e eu nos proporcionamos, durante o transcurso de nossas vidas.



3. JARDIM SEM FLOR

Deram-me inteira liberdade de escolha dos eventos mais marcantes de minha vida, entretanto, devo afiançar que não irei menosprezar os que, de algum modo, tenham tido influência sobre o geral de meu comportamento.
Assim, preciso notificar os caríssimos leitores de que não plantei nem rosa nem cravo no pequeno jardim que cultivei. Deixei crescer algum mato, podando a grama regularmente.
Não houve donzela que me atraísse, nem rapagão que me incendiasse. Eis como fui em vida. Por isso, peço que não estranhem o fato de não comparecer nenhuma personagem com quem tenha envolvimento sentimental, em termos passionais.
E meus filhos?
Só os de outras encarnações, espalhados pela erraticidade ou perdidos em encarnações desconhecidas.
Quer dizer que vedei o coração para o amor?
Não foi o que eu disse. O sentido do amor humanitário, evangélico, foi preocupação minha durante todo o tempo. Contudo, não me atrevi a formar família, tendo por prisma do raciocínio a falsa concepção de que, não me apegando a outros seres humanos, não sofreria a dor da perda de ninguém, nem daria a ninguém esse mesmo sofrimento.
Quando parti para cá, porém, senti fortes empuxos para me manter vivo, já que, dado à caridade, houve quem se afeiçoasse a mim muito mais do que eu mesmo houvesse desejado.
Arrependi-me?
Não sei dizer se o sentido da frustração durante a estada na escuridão da consciência, após o desenlace, correspondeu exatamente a tal sentimento. Hoje, friamente, proponho-me a refazer os parcos contatos físicos da derradeira romagem terrestre, cônscio de que mantive o pensamento inócuo de que a falta de interesses no campo da afetividade material, vamos chamar assim, me fazia uma espécie de sacerdote espírita, com absoluto domínio sobre a libido. Era um celibatário convicto.
Fui casto?
Em absoluto. A noção de que Jesus pudesse ter tido alguma semelhança de personalidade não me cativou, porque, como acima referi, podava a grama, mantendo a área sempre limpa.
Depois de árduas discussões com o grupo de companheiros, resolvi concordar com eles, prometendo para a próxima encarnação procedimento mais natural quanto aos dispositivos do aparelho reprodutor.
Poderia, agora, extrair algumas conclusões sobre o meu caráter, mas vou deixar para acumular outras informações, já que não me vejo comprometido com nenhum ser com quem houvesse combinado uma vida em comum.
Pensei que o cadáver de meu pai viria atormentar-me de novo, já que a via que percorri tinha mão única. Mas a vetusta figura não me apareceu. Aliás, nenhum fantasma das milhares paternidades que tenho de reconhecer durante a existência. Do mesmo modo que meus antigos rebentos se esparramam para longe de meu círculo, também meus progenitores se perdem quase completamente de meu campo de visão, exceção para minha mãe, cuja presença será motivo de uma reflexão particular.



4. OBEDIÊNCIA CEGA

Prometi trazer à baila destas considerações a figura de minha mãe. Antes, porém, acho necessário esclarecer como é que cativei a simpatia de muita gente por meio de atenções e cuidados no campo do espiritismo prático.
Claro está que houve longo encadeamento de causas e efeitos, desde os ensinos que recebi da doce criatura até a dedicação integral aos trabalhos de certo centro espírita, no último quartel da vida.
Disciplinado, logrei lugar de destaque dentro de grupo de dirigentes espíritas, esforçando-me por cumprir rigorosamente todos os preceitos emanados da diretoria, indo um pouco além, já que não possuía descendente que aspirasse a herdar os bens que amealhei profissionalmente. Não era rico mas as rendas que obtinha dos doze imóveis, invariavelmente, escorriam para os modestos haveres da instituição.
Ali me empenhava em reconhecer a personalidade dos necessitados, emitindo pareceres quase sempre acatados pelos demais, destinando as verbas para a compra de alimentos e agasalhos. Não efetuava a distribuição, contudo, ligado ao departamento de assistência social, encarregava-me de atender diretamente as pessoas, ouvindo-lhes as histórias e acompanhando-as até as casas, sempre por sugestão delas mesmas induzidas pelo meu raciocinar, condoendo-me dos dramas e tragédias que testemunhava.
Estendo-me neste relato simples de fatos tão corriqueiros dentro da seara espiritista com o fito de demonstrar que tudo quanto se faz nesse campo, desde que com desprendimento, irá receber a compensação espiritual na forma de tranqüilidade de consciência.
Obedecia a impulsos íntimos cuja natureza não sabia caracterizar com precisão à época. Imaginava que era natural que o tempo disponível devesse ser aproveitado de modo produtivo, ainda que para a felicidade material de outras pessoas. Também me embaraçava a ignorância do zé-povinho, de forma que fazia questão de dar oportunidade para ouvir as propostas doutrinárias, forçando, muitas vezes, a responder com o sacrifício das manias e dos vícios.
Não insistia quando as pessoas demonstravam desinteresse pelo aprendizado e suspendia qualquer ajuda material em dinheiro, mantendo tão-só o fornecimento de alimentos e agasalhos aos menores. Corte total era raro, mas, às vezes, quando descobria que eram vendidos os produtos que lhes dava, acusava os responsáveis perante a organização policial e tentava restabelecer os vínculos de pureza e honestidade iniciais.
O rigor do acompanhamento feria, sem dúvida, o princípio evangélico contido na parábola da mão esquerda e da mão direita . As diretrizes que norteavam a caridade que praticávamos, no entanto, eram tidas como o fruto mais moderno e científico da assistência social. Também achávamos que, com Kardec, se acrescentavam ao fundamento cristão, a lógica e a coerência do melhor emprego dos recursos, tantos eram os carentes que nos solicitavam auxílio. Preferíamos correr o risco de praticar algum deslize a ocasionar oportunidade de fixação dos defeitos morais no espírito dos mal-intencionados. Por outro lado, refletíamos nas lições que nos passavam mediunicamente os orientadores espirituais, julgando que os sofredores do etéreo estavam sendo punidos por sua intemperança e ofensa às leis universais. Em última análise, eram deixados por nós à própria sorte, já que não nos acatavam os conselhos e recomendações.
Hoje, depois de permanecer na escuridão do Umbral por algum tempo, tendo compreendido que o bem que pratiquei sobrepujou os erros de interpretação que cometi, tenho outra visão do problema.
De fato, todas as restrições que fiz poderia tê-las feito sem conseqüências desagradáveis, caso não me tivesse deixado envolver por sentimentos de frustração e de malquerença.
Vivendo e aprendendo.



5. MINHA MÃE

Não posso deixar de homenagear a criatura querida que me deu a oportunidade da derradeira romagem terrena.
“Dona Maria, eu a amo com todas as forças de meu coração e declaro que estou eternamente endividado para com a senhora, pelo muito que fez em prol de meu despertar espiritual.”
Tive muitas mães durante toda a minha existência, mas a única de quem guardei a lembrança sem nenhum ressentimento foi esta. E ela não era nem é perfeita.
Dona Maria era mulher franzina e doce. Naquela tarde em que meu pai me cascou as palmadas, eu a surpreendi chorando e terna, com o caçula no colo, abraçada com minha irmã mais velha. Quando me aproximei, ela pôs a criança no berço, afastou a maninha e me abraçou como se eu fosse seu filho único.
Durante toda a vida, manteve essa preferência por mim, com certeza por admitir que a minha fragilidade era perigosa perante os desafios do mundo.
Quando desapareceu de minha vista, não aceitei a morte como separação, buscando mentalizá-la sempre que possível para canalizar-lhe as comunicações que, tinha a certeza, estaria enviando-me. Não posso dizer que alguma vez tenha tido inteira convicção das mensagens, mas jamais deixei de receber avisos a respeito de como proceder diante das situações em que me envolvia.
Quando aqui cheguei, confirmei a contínua presença dela ao meu lado, sempre solícita e carinhosa.
Hoje, está encarnada e feliz, conduzindo a vida com moralidade superior. Eu é que não lhe tenho acesso, já que, pertencendo a uma seita protestante, não tem a mente aberta para aceitar sequer a existência de espíritos.
Por todas as coisas que representam os acontecimentos de uma vida inteira, qualquer pessoa pode considerar as informações insuficientes. Como é possível um relacionamento de tão integral pureza? — hão de estar perguntando os que duvidam da integridade moral dos outros.
Tal desconfiança é justificável, todavia, não chegou a meu conhecimento nenhum deslize daquela meiga criatura, que tornou feliz a existência de meu pai, inclusive quando, entrevado em cadeira de rodas, exigiu dela total desprendimento e dedicação.
Uma santa?
Para mim, sim. E recomendo a todos que guardem na memória impolutas as figuras de seus pais, ingenuamente, se assim quiserem definir tal exaltação, mas com total afeição, relevando, quando for o caso, todos os defeitos que lhe tenham ficado retidos na lembrança quanto a episódios menos edificantes.
Pedem-me para referir-me aos sentimentos de Jesus relativamente à sua mãe. No entanto, quem será capaz de definir qualquer pequenino traço do caráter do homem que os espíritos definiram a Kardec como modelo de perfeição?
No mínimo, posso asseverar que sempre haverá festa de plena alegria nos encontros e reencontros das pessoas que se amam e se admiram.
Por último, quero desfazer a impressão de que me contradisse relativamente a anterior assertiva quanto a ter amado apenas no sentido preconizado por Jesus. Foi como caracterizei a minha existência, entretanto, nem por isso deixei de ter ao meu lado seres com quem simpatizei de preferência a muitíssimos outros. Todos se dispersaram e mesmo minha mãe está longe de mim no sentido material. Psiquicamente, porém, ela ainda está presente com seus conselhos e seus exemplos.
O que desejo deixar claro é o fato de que, para amar-se de verdade, não é preciso exigir do ser amado que corresponda ou se mantenha preso ao campo gravitacional da gente. Fazer o bem, antes e acima de tudo, é o que torna a existência apetecida.



6. PRECIOSAS RECOMENDAÇÕES

Deixaram-me à vontade para escrever o capítulo anterior. Somente depois de redigido é que me trouxeram as ponderações do grupo.
Em primeiro lugar, censuraram a extrema simplicidade das relações entre os seres que dei a entender. No que concerne ao entrelaçamento de afetos e à cristalização de ódios, preciso refazer a maneira de enxergar as coisas.
Ao dizer que devo resguardar minha mãe quanto às recordações menos felizes, estabeleci padrão de procedimento incompatível com a realidade no campo espiritual, uma vez que é de todo acertado que reconstituamos as más impressões, para buscar-lhes as causas e fazer cessar os efeitos.
Quando a ojeriza se apresenta a outras pessoas, sempre devemos perguntar o porquê da indisposição, se está em nós mesmos ou se é provocada por atitudes ou maneira de agir delas. Em ambas as situações, sempre haverá o que prevenir e corrigir. Esta a melhor maneira de se estimular a simpatia, a benquerença e o amor.
Também observaram que os sentimentos de afeição expandem o círculo das vibrações pessoais de boa qualidade, de sorte que sempre iremos aumentando as amizades, até o ponto de abranger um sem-número de entes queridos, formando nas fileiras que assomarão conosco às esferas mais adiantadas.
Eleger pessoas especiais, como no plano material, onde se montam as famílias, as congregações e as sociedades, é saudável e plausível, enquanto não se exige exclusividade, caso em que se configura obsessão. Como querer progredir espiritualmente se limitamos o poder do amor a uma única criatura? Eis a questão que tive de desenvolver, para evitar induzir algum leitor desprevenido de que possui a capacidade de amar porque se doa integralmente à contemplação da mulher eleita.
Outro aspecto que mereceu restrições da parte dos mestres foi a assertiva segundo a qual existirão festas de profunda alegria nos encontros e reencontros das pessoas que se amam e se admiram. O que não foi bem expresso foi a expressão encontros e reencontros. Na erraticidade, quando existe completa integração espiritual, os seres permanecem vinculados através de suas ondas de simpatia, não existindo a possibilidade de separação. Logo, não há encontros nem reencontros.
Quis dizer-lhes que talvez fosse bom deixar do jeito que escrevi, porque a leitura será dos encarnados, mas minha idéia foi rebatida com o maior dos fundamentos das lições mediúnicas: antes e acima de tudo, as mensagens devem conter a descrição mais próxima da verdade de que somos possuidores. Se temos conhecimento de algo que extrapola o campo de percepção dos encarnados, ainda assim temos de nos referir ao fato, sem concessões à ignorância ou incapacidade deles de assimilar a verdade.
Por outro lado, também tenho de evitar assertivas peremptórias, como se dominasse por inteiro todos os temas sobre que discorro. Havendo dito que existem mundos de maior perfeição, também tenho de registrar que a inteligência aumenta e, portanto, os conhecimentos se aprofundam.
Por último, sempre terei de manter-me cauteloso, já que afirmei que a prevenção pode constituir-se em empecilho para a felicidade, como no caso de haver mantido sentimentos de repúdio pelos seres que tentaram enganar-me e ao centro espírita.



7. CASTIGO E RECOMPENSA

Anteriormente demonstrei que me preocuparam os efeitos das ações praticadas durante a vida. Estabelecera como princípio que a cada boa ação correspondia uma recompensa e a cada ação ruim, um castigo. Não é mais ou menos assim que a maioria pensa?
Com as lições que aprendi a partir da doutrina espírita, ainda mais se acentuou esse pensamento, passando a suspeitar de que as conseqüências funestas ou agradáveis teriam o condão de caracterizar meu estado moral na erraticidade.
Cheguei ao ponto de imaginar que havia um peso específico para cada atitude, de forma que a consciência pudesse computar, numa espécie de placar, o resultado de todos os movimentos da alma. Seria como que um toma-lá-dá-cá estabelecido pelo Criador e impresso no âmago de todas as criaturas.
A partir dessa idéia, recusei-me a acreditar que houvesse seres que policiassem a aplicação das leis universais. Ouvi muitos espíritas afirmarem que os protetores impediam que tal ou qual fato se desse, ou tal ou qual desejo se realizasse, principalmente no âmbito da erraticidade.
Li nas obras de Kardec que muitos espíritos, em suas mensagens, diziam estar sendo impedidos de dizer isto ou aquilo, como se vigilantes atentos impedissem certas revelações que poderiam prejudicar outras pessoas. Mesmo em textos psicografados posteriormente, encontrei assertivas do tipo.
Nada disso batia com a minha teoria, teoria que me impediu de conjeturar que se pudessem estabelecer hierarquias dentro dos círculos ou colônias, de forma que os indivíduos, no meu conceito, se comportariam a partir apenas de seu livre-arbítrio, sendo únicos responsáveis por jogar, por exemplo, uns contra os outros ou por delatar acontecimentos que quedariam desconhecidos pela vontade de quem neles estivessem envolvidos.
O que me deixava mais desconfiado de que os bons impediam os maus de se manifestar era a impressão extraída do campo material, onde os homens cometem toda espécie de crimes.
No final da vida, eu mesmo pude colocar algumas dúvidas nessa forma de pensar, quando me surpreendi a efetuar a censura de certas manifestações de espíritos infelizes, corrigindo-lhes as expressões chulas ou eliminando totalmente as comunicações que não fossem a mais legítima expressão da virtude.
Sei que bem poucos espíritas mantêm este modo de conceber o mundo de além-túmulo. Eu mesmo encontrei apenas dois ou três que me seguiam os passos.
Está claro que, ao ser admitido nesta colônia, logo me vi diante de companheiros mais experientes, que me orientavam quanto ao que fazer na área dos estudos e dos trabalhos. Se, naquela ocasião, me houvessem dado a oportunidade que estou tendo hoje, provavelmente me atrapalharia deveras com os conceitos mais simples. Neste caso, ao ditar algo não totalmente correto, logo precisaria dizer que meus amigos estariam impedindo-me de prosseguir ou teria de esclarecer que o mestre me pedia para refazer o tópico.
Vejam como é que evoluí a partir da simples relação entre ato bom e recompensa, e ato mau e castigo. Hoje em dia, depois de pelejar contra muitos cacoetes morais e intelectuais, estou capacitado a afiançar que a cada ato bom ou mau corresponde uma reflexão, que pode imprimir na consciência um maior ou menor prazer ou desconforto.
É como se escrevesse uma frase carregada de falhas ortográficas e tivesse de corrigir, ou que se apresentasse de modo a exprimir o pensamento com propriedade e elegância e tivesse ensejo de alegrar-me com o resultado. A cada novo período, novos problemas a serem solucionados ou novas felizes conquistas.
É assim que resumo a lei do progresso. O que era castigo, passa a ser obrigação ou dever.; o que era recompensa, entra na categoria dos aprendizados. E a gente vai adiantando-se na escala dos espíritos, paulatinamente.
Finalmente, tendo requerido dos colegas e dos instrutores que comentassem esta mensagem, disseram-me, simplesmente, que não me preocupasse em extrair dela fatos para abono ou desabono de minha conduta. Ficassem os leitores com a tarefa de julgar dos méritos ou deméritos do texto, cada qual estabelecendo seus próprios parâmetros de compreensão. Não me abespinhasse com as opiniões contrárias ou me empavonasse com as expressões elogiosas.
Mais tarde, se tiver de escrever novamente sobre o mesmo tema, acrescentarei outros tópicos doutrinários ou outras fórmulas de redação que houver incorporado ao meu saber ativo e passivo.



8. OUTRO EPISÓDIO CARNAL

Desta feita, foi com minha irmã que me envolvi em brincadeiras cuja natureza libidinosa me impede de descrevê-las aqui.
Esse fato trouxe comigo durante a vida toda, sem saber direito como administrar alguma lição que poderia conter-se nele. Achava que a inocência de meus três anos não era suficiente desculpa para cair naquela pueril armadilha. Quando comecei a decifrar a teoria espírita da reencarnação, acreditei ver antigas tendências trazidas de outras vidas.
Bem mais tarde, depois de ler muita literatura espírita, simplifiquei o problema e dei-lhe conotação meramente carnal. Tratava-se do despertar para a sensualidade, através de pura imitação do que os mais velhos praticavam. Todavia, a sombra daquela situação esquerda acabou acompanhando-me até este outro lado do mistério.
A primeira investigação a que procedi relativamente às minhas relações anteriores com o espírito de minha irmã me levou a perplexidade sem limites: não só não se tratava de amizade ou inimizade anterior, como ainda as três encarnações anteriores daquele espírito se deram no sexo masculino.
Pus de lado qualquer fantasia relativamente às hipóteses que formulara em vida e passei a considerar a realidade bem cruamente: os eventos de caráter sexual na primeira infância se colocam como experiências que obrigam as pessoas ao amadurecimento.
No meu caso, o problema a ser resolvido foi o da inconsistência das reações perante o sentimento de culpa.
Objetivamente, considerei várias existências anteriores em que nada disso acontecera comigo, tendo constituído proles numerosas, e cheguei à conclusão de que estava adentrando campo novo da sensibilidade quanto ao respeito pelo direito do sexo oposto de obter conhecimento através da prática, ainda que de forma absolutamente ingênua.
Devo dizer que, por muito tempo, responsabilizei minha irmã pelo meu sentimento de culpa, aproveitando a deixa para passar-lhe também a responsabilidade pelo fato de não haver constituído família nem ter tido vida ativa no campo da sexualidade. Como já afirmei antes, terminei por sublimar a libido, dando-lhe vazão através de alguma incontinência, sem me considerar jamais um homem casto.
Dispus-me a refazer este tópico ou mesmo a suprimi-lo, porém, fui aconselhando a mantê-lo tal qual. Emendando com as observações da mensagem anterior, às vezes, precisamos penetrar através das muralhas dos preconceitos humanos. Caso o amigo encarnado for suficientemente adulto, irá refletir a respeito de sua vida ou da orientação que possa dar aos filhos. Caso ainda não tenha o vezo das interpretações sagazes, poderá avaliar o próprio histórico de vida para reconhecer alguma coisa semelhante ao tema que abordei.
Se não for assim, permitam-me perguntar, que sentido profundo haverá na revelação que não admite o desnudamento da verdade?



9. DESCUIDOS

Esforço-me para trazer informações que possam servir aos encarnados, no entanto, jamais irei deixar de lado, as lições que recebo nestas paragens. É claro que não tenho a mesma fé de todos os amigos da turma, por isso é que redijo os comentários que me fazem compreender o quanto devo.
Aspiro a conseguir melhor sucesso, porque as teses não me soam tão bem feitas quando lhes dedico apenas a minha atenção. Lastimo, sobretudo, não possuir discernimento suficiente para aprofundar os estudos psicanalíticos de minha alma.
Ouvi que devo imaginar-me dez anos mais velho ou, como diríamos aqui, mais sábio, de forma que os acontecimentos terão revelado sua consistência, perante as peculiaridades do meu caráter. Ou, por outra, poderei afastar-me da contextura da personalidade atual, projetando em mim as virtudes que admiro naqueles que considero mais adiantados.
Arrasto-me nesta página de hoje e sinto que não estou extravasando nenhum sentimento de solidariedade para com os meus caros leitores. É que estou com medo de atravessar o Rubicão dos meus defeitos contumazes.
Li e reli todas as mensagens anteriores e pude observar que a organização delas tende para o esmiuçar dos deslizes infantis, atribuindo-lhes a condição de causa de desvios da personalidade do adulto. Mesmo afirmando que não concordo com tal análise, ainda deixo registrados os enganos de interpretação.
No início, citei o fato de que transformei em dissertações o que deveria constituir-se em larga narrativa da minha vida e que fui aconselhado pelos companheiros a manter o plano original. Agora, desejo demonstrar que tinha razão, porque estou percebendo que me inibem os fatos de mais penosa recordação.
Entretanto, quero advertir para o sentido mais profundo dos episódios relatados, uma vez que o efeito didático que declarei existir é mera capa para esconder a feia composição moral deste mensageiro.
Um de meus descuidos foi omitir até este ponto o nome pelo qual fui conhecido na última peregrinação terrena. Talvez tenha rejeitado não o nome mas a própria pessoa que fui, muito embora nada tenha de estranho chamar-se alguém Antônio. Tonico, Totonho e Toninho foram formas afetivas em que se transformou, acompanhadas do indefectível “Seu” da corruptela de Senhor.
Dona Maria eu já apresentei. Faltou citar o nome de meu pai, Tomás, de meu irmão, Isaque, e de minha irmã, Sileide, do meu tio, Ricardo.
Logo introduzirei mais algumas personagens, pedindo permissão para dar-lhes alcunhas diferentes da verdadeira, já que algumas ainda são lembradas pelos familiares e amigos e eu não quero incidir na falha de provocar investigações cunhadas sobre mera curiosidade.
Eis que pego na unha o pião e termino a insólita mensagem, recomendando que ponham de lado este álbum de recordações, caso tenham em mira tão-só descobrir o que fiz de errado, para escandalizar-se ou usufruir o gozo mesquinho pelas desgraças alheias.
Não sei se a introdução deste tema foi sutil. O fato é que muitas de minhas leituras, conversas e entrevistas se deram com esse mesmo espírito frívolo e imprudente.



10. AS DESGRAÇAS

Não era capítulo que gostaria de escrever, no entanto, esta perspectiva histórica diminui os efeitos das tragédias, principalmente porque possibilita o estudo das causas e das conseqüências.
A renovação da tristeza que, por várias vezes, se abateu sobre minha alma é de rigor para me fazer compreender o quanto me distanciei dos aspectos funéreos das passagens, para extrair as lições de que deverei aproveitar-me nos próximos tempos, até que faça jus a ascender a círculo mais adiantado.
Quando me lembrava, já idoso, que perdera Sileide em acidente automobilístico, lágrimas abundantes escorriam-me pelas faces. Hoje, ao lado dela ou não, perpassa-me pela espinha imaginária do corpo espiritual arrepio próprio de quem está temeroso de sofrer de novo os mesmos açoites do destino.
Sei que deverei retornar à carne devido aos muitos débitos, e aí me assusta a idéia de me ver a dirigir o carro que irá chocar-se contra a parede, despedaçando a cabeça de minha irmã ao meu lado. Ou, então, vendo-me sair de acidente ferroviário todo queimado, tetraplégico, cego ou algo igualmente terrível.
O curioso disto tudo é que me vi muitas vezes consolando parentes de vítimas, enquanto mencionava as leis de Deus e a bondade de Jesus, objetivamente dispondo para a existência de além-túmulo a restauração integral dos órgãos atingidos. Não só isso. Foram muitas as pessoas com seqüelas de acidentes que atendi no centro espírita, encaminhando-as para atividades em que se sentiram confortadas e até felizes.
— Puerilidade doutrinária! — foi a expressão de Epaminondas, quando apresentei ao grupo o rascunho deste tópico. — Vocês precisam discutir a respeito de como se dá o princípio da justiça divina, considerando, particularmente, a estreita relação entre causa e efeito que noto na tese exposta, como se não fosse possível nenhuma intervenção dos protetores, como nos tribunais os advogados de defesa aventam as circunstâncias que atenuam a responsabilidade dos réus. Não se trata de somar os atos bons para achar a diferença entre eles e os atos perversos. Trata-se, sim, de um conjunto muito complexo de fatores, nada como se o nosso Toninho devesse reencarnar fazendo constar, em seu programa de vida, morte por meio de desastre.
Ficou-nos evidente que o mestre desejava encaminhar as discussões, de sorte que nos ativemos a respeitar-lhe os dizeres, buscando compreender o fato de muitos recém-nascidos apresentarem defeitos congênitos, sem que isso represente nem expiação nem provação devidas a acontecimentos trágicos das vidas anteriores.
Aplaudiu-nos Epaminondas a conclusão de que são as condições gerais deste planeta que favorecem a encarnação de indivíduos de determinada faixa de progresso espiritual. Qualquer um pode voltar coxo ou cego. O importante é o que vai conseguir aprender durante a vida. Talvez essa seja circunstância extrema de oportunidade para o progresso, como temos lido em Kardec.



11. CAPADÓCIO

Talvez o termo do título seja forte demais para caracterizar a impressão que mantive de mim durante bom tempo em que vaguei pelas trevas. Entretanto, era minha memória de vidas anteriores que me forçava a pensar de forma tão crítica.
Proponho este tema para poder revelar que nem todos os débitos se saldam numa única existência corpórea, como também não necessitam de uma nova vida no orbe para serem resgatados. Acontece que muito do que realizamos de forma injusta e imperfeita não temos como considerar prejudicial a terceiros por falta da consciência de que se constituam em falhas de caráter. Somente depois de crescermos em virtudes é que despertamos para os erros e vícios pregressos.
Para quem lê as obras de Kardec haverá de parecer estranha a minha opinião, já que ali se lê que a medida da responsabilidade dos indivíduos está intimamente relacionada ao poder de discernimento, tanto que os selvagens não são considerados tão culpados quanto os civilizados, quando praticam os mesmos crimes.
Mas, como conciliar a lei do progresso à percepção crescente dos valores morais, sem que a memória participe do processo? Sendo assim, não há fugir da lembrança dos males praticados em tempos imemoriais, para o resgate das dívidas, ainda que o ofendido nos perdoe de forma incondicional.
— Se você tomou consciência de que necessita aperfeiçoar-se espiritualmente, irá ter de desenvolver integral percepção de todos os seus atos, atribuindo-lhes toda a extensão de suas conseqüências.
Parece-me estar ouvindo a explicação de Epaminondas perante a turma.
De fato, na derradeira peregrinação terrena, pensava que sempre seria perdoado por cometer erros inconscientemente, como, por exemplo, o caso que relatei de estar na direção do carro quando do acidente que vitimou Sileide. No entanto, jamais esqueci, até o último alento, que fora culpado da morte dela. Se esse não é um castigo que nós mesmos nos infligimos, o que há de ser então?
Pois foi esse acontecimento trágico que desencadeou a minha análise das ocorrências muito mais graves das vidas anteriores. Não é verdade que posso dizer que há males que vêm para bem?
Dizem que quando sorrimos de nós mesmos é que estamos ultrapassando etapas de sofrimento, uma vez que nos vemos aptos ao perdão das próprias ofensas. Pois hoje, embora não sorria pelo fato de ter conquistado conhecimentos tão profundos, ao menos sinto-me aliviado por não mais me pesarem os desatinos que pratiquei outrora, incluindo aí o caso de minha irmã.
Além do mais, como estou absorvendo a tese de que existe um feixe de razões para cada fato isolado e que não é automática a reencarnação expiatória, vejo, no fim do túnel, brilhar uma luzinha de esperança de que consiga, com meus colegas, amigos e parentes, receber um convite para freqüentar o círculo evolutivo seguinte, não desprezando o fato de que ali irei começar sofrendo para entender muitos preceitos superiores das leis de Deus.
Penso que o título não mais se ajuste à minha personalidade, o que me propicia momento de extraordinário sossego.



12. MEU JALECO DE ENFERMEIRO

Era meu maior orgulho. Vestia aquele jaleco branco como se estivesse envergando a mais sublime vestimenta de quantos profissionais existem cujos trajes os destacam perante a sociedade.
Na verdade, era técnico em enfermagem, sabendo um pouco mais do que os antigos parceiros de segundo grau, mas exercia a profissão com muita nobreza de caráter.
Não me atemorizava com as doenças contagiosas e me oferecia sempre para a assistência aos que se isolavam. Não que confiasse em Deus de forma cega e absurda, como se tivesse ele a obrigação de velar por todos os imprevidentes de boa vontade. Ocorria que tomava todos os cuidados, alerta sempre para a possibilidade de contaminação.
Também tinha a palavra fácil e dava consolo aos que estavam cônscios da gravidade das enfermidades.
Quando entrava em serviço, era como se esquecesse de mim mesmo, aplicando-me com integridade absoluta aos pacientes, jamais discutindo ou adulterando as prescrições dos facultativos. Mantinha-me atento para os horários e tive a sorte de não precisar uma vez sequer atender a qualquer necessidade que me impedisse de dosar e ministrar os remédios.
Tanta dedicação transferi para os trabalhos voluntários no centro espírita, sem fazer valer os conhecimentos para não obscurecer a inteligência dos companheiros. Não quis cuidar da farmácia comunitária nem me propus a atender aos curativos particulares. No centro, dediquei-me o mais que pude à orientação doutrinária, muito mais do que à assistência de caráter físico.
Para o hospital, levava a palavra da pacificação da alma. Para o centro, contudo, evitava a tarefa de cunho profissional. Fazia-o consciente de que estava realizando o meu trabalho com denodo e proficiência e o meu voluntariado, com zelo e equilíbrio.
Pois bem, ao vagar pela escuridão do Hades, outra das preocupações que me atormentaram foi o corrosivo pensamento de que não agi em consonância com as diretrizes emanadas do evangelho de Jesus. Deixei-me carcomer pela sensação de que não deveria ter restringido a atenção aos que precisavam de cuidados terapêuticos no centro espírita. O pensamento de que havia a todos encaminhado aos prontos-socorros e ambulatórios apenas me dimensionou a vaidade de haver estabelecido parâmetros próprios para o exercício da beneficência.
Deveria, como terminei fazendo durante os tempos na erraticidade, ter vestido o jaleco fora do hospital, incorporando a nobre profissão que exerci aos procedimentos psicossociais.
Sei que este traço da personalidade não poderá servir de espelho em que todos os leitores venham a mirar-se, porém, suspeito de que sempre poderão refletir maduramente sobre a lição que aprendi.



13. FRENTE A FRENTE COM O FACÍNORA

Um dia, encostaram-me o cano de um revólver na cabeça. Era um garoto de não mais que dezoito anos. Eu estava ao volante. Ele entrou, acomodou-se atrás e me ordenou que dirigisse até um bairro distante, onde entramos num matagal.
Dei-lhe o que me pediu. Quis passar-lhe uns conselhos, mas me mandou fechar o bico.
Depois de conferir tudo, achou pouco. Então me levou para dentro do mato e disse que ia matar-me. Como eu estava com vários livros espíritas, me deu o direito a uma última prece. Quis que eu a dissesse em voz alta.
Pedi-lhe licença para orar por ele mas, antes que começasse, deu-me um tiro na coxa, dizendo que eu poderia rezar por ele toda vez que visse a ferida.
Fiquei esvaindo-me em sangue, contudo, apliquei-me um torniquete com o cinto, evitando que a hemorragia me matasse.
Pela madrugada, passaram uns trabalhadores que me socorreram.
Hesitei em dar queixa do assalto, mas, como desejava ter o carro de volta, fui obrigado a fazer o competente Boletim de Ocorrência. Logo descobriram o veículo espatifado contra um poste e, assim, pude reaver boa parte do que poderia ter perdido.
Estava com mais de quarenta anos, de forma que havia amadurecido dentro da estrutura doutrinária do espiritismo para saber que não cabia a mim perdoar o malfeitor. Tinha a certeza de que voltaria a encontrar-me com ele na erraticidade e, durante o resto da vida, realizei exatamente o que o marginal me havia sugerido: orei por ele todas as vezes que me recordei daquela noite terrível.
Entretanto, não pude deixar de fantasiar a respeito do encontro, passando por várias teses plausíveis, até imaginar que deveria tratar-se de antigo antagonista não colocado no meu caminho por acaso. Adquiri a certeza de que, após o desenlace, logo iria procurá-lo para demonstrar-lhe que não lhe havia guardado mágoa alguma.
Aqui, por mais estranho que pareça, aquela figura me desapareceu completamente da memória até um dia em que, estando sob os cuidados dos amigos desta instituição, fui despertado para o adversário de ocasião, quando soube que meu interlocutor havia sido assassinado.
Quase mecanicamente, repeti a prece a que me habituara em vida, suspeitando de que iria desvendar definitivamente a identidade misteriosa do bandido. Nada ocorreu e até agora não me interessei por saber do seu paradeiro. De vez em quando, recordo-me dele e volto a orar por sua salvação.
Quando contei a história aos colegas, muitos manifestaram admiração por minha fleuma, como se houvesse aplicado a lei do perdão com proficiência.
Tanto bastou para me levar a considerações paralelas, verdadeiro exame aleatório do que poderia ter acontecido, caso o tiro houvesse causado sofrimento a outras pessoas, como teria ocorrido com minha mãe, se eu tivesse sido assassinado. Prestei atenção às íntimas reações, procurando tornar as suposições o mais realistas possível, com o intuito de medir a intensidade dos sentimentos em descompasso com o equilíbrio que mantivera em relação ao caso.
Posso afiançar que não senti estremecimento algum, todavia, não pude deixar de representar outras cenas em que o mesmo indivíduo assaltava e feria outras vítimas, atingindo pais de família com responsabilidades que eu não tinha. Foi assim que pude estabelecer padrão muitíssimo desagradável em relação ao facínora, porque emiti claras vibrações de incompreensão e desagrado, já que não fui capaz de levantar uma única justificativa para a violência.
Tenho voltado constantemente ao tema, agora com a idéia de que, no mínimo, o acontecimento quase trágico está servindo-me como reforço para a impregnação no espírito da lei do perdão. Penso em Kardec e logo me vem à lembrança o que o mestre falava a respeito dos padres que dos púlpitos repudiavam a doutrina espírita, ou seja, que as acusações tinham o condão de despertar as pessoas para o espiritismo, já que lhes provocavam a curiosidade das leituras e estudos.



14. AS ALEGRIAS

Não fui jamais o que se poderia chamar de otimista, na mais lídima expressão do termo, isto porque não me dava aos prazeres comuns da juventude, como, por exemplo, a ida aos estádios de futebol.
Entretanto, desde cedo, assim que me vi exercendo a profissão, adquiri o vezo das brincadeiras pueris, ajudando na recuperação dos pacientes. Era o que me divertia de verdade.
Quando passei pelo desespero do acidente com minha irmã, era bem jovem. Isso fez que me tornasse bem mais arredio quanto aos encontros sociais, ainda que tenha comparecido a todas as festas familiares produzidas por ocasião dos dias de gala da religião, como casamentos, batizados, reuniões natalinas etc.
Não estava bêbado ao dirigir o carro na noite do fatídico acidente, mas havia ingerido dois copos de cerveja. Esse fato provocou tal revolta íntima que nunca mais sequer experimentei qualquer bebida alcoólica, ainda que brindasse à felicidade alheia.
Não sei se faço bem em lembrar, mas houve uma ocasião em que desconfiei de estarem os amigos preparando-me uma armadilha, já que desejaram homenagear-me quando da minha aposentadoria. Na hora, pensei que tivessem a intenção de me embebedar ou de me desmentir quando afirmava que não bebia. É que trouxeram para a mesa de salgados e doces várias garrafas de champanha.
Não provei, ou melhor, fingi que aceitava um cálice sem que mais de umas gotas me desciam pela garganta. Era a minha técnica para não desafiar as pessoas. Naquele dia, precisei recalcitrar, correndo o risco de ofender os colegas. Entretanto, não foram contumazes e se abstiveram de me forçar a beber.
Somente há bem pouco tempo é que percebi que a festa que me ofereceram mais não era do que oportunidade de ouro para eles mesmos colherem as alegrias da reunião, através dos comes e bebes. Precisei reavivar a memória, fazendo passar por mim a fisionomia de cada um, a ver se sentia quais emoções a minha despedida provocava. Não fui capaz de tal proeza.
Quando insisti junto ao grupo e aos professores para que me ajudassem naquele exercício, fui orientado no sentido de especular previamente qual o valor de semelhante descoberta para o meu benefício.
Juro que não percebi de imediato que não havia nenhum ganho real no desvendar dos reais sentimentos que os colegas nutriam por mim. Somente depois de imaginar como se comportava cada um deles é que atinei que não fazia diferença se estavam sendo mais ou menos sinceros e honestos.
Outra conseqüência dessa análise foi a descoberta de que eu me constituíra em verdadeiro estraga-prazer nessas situações de mera diversão. Isto me remeteu para todos os momentos alegres da vida, percebendo que só me sentia à vontade quando em situação de trabalho.
Positivamente, eu era o que se poderia chamar de um homem sério.
Mudei muito depois do exame a que aludi, contudo, não sou eu quem estimula o riso junto aos companheiros. Eu apenas me esforço para compreender como é que existem criaturas abençoadas, sempre prontas a desfechar observações oportunas para criar clima de satisfação e felicidade.



15. UMA COISA PUXA OUTRA

Na crônica anterior, estabeleci ser impossível para mim elaborar julgamento cabal das intenções das pessoas. Quero afirmar, preliminarmente, que não fui adiante na interpretação, como se viu, dado que ponderado me foi não ser de modo algum útil decifrar as personalidades dos amigos do hospital.
Quando vivo, não era o que pensava. Vou contar caso ilustrativo de como me preocupava com a pureza dos trabalhos no centro, a ponto de ofuscar-me a vista com a falsa luz que julgava emanar da doutrina espírita.
Certa ocasião, compareceu perante a diretoria da casa um candidato à vereança, dizendo-se filiado ao espiritismo, dispondo-se a defender a causa do movimento junto às autoridades constituídas.
Lá estava eu, na qualidade de diretor de eventos doutrinários, prevenido quanto ao uso do bem comum para proveito dos oportunistas.
Lembro-me bem de que, enquanto se davam as apreciações por parte dos membros da diretoria, eu me encasulei dentro dos preconceitos criados a partir da necessidade da defesa intransigente dos ideais kardequianos, arquitetando os argumentos com que iria indeferir a petição. Não admitia a hipótese de que espiritismo e política pudessem dar as mãos em prol da iniciativa pleiteada. Não aceitava que a tribuna do evangelho pudesse constituir-se em pedestal da infâmia. Em suma, não me passava pela idéia que, um dia, sobrepondo-se a doutrina espírita sobre todos os princípios religiosos, uma vez que a verdade está conosco, terá forçosamente de gerar, dentro de seus quadros, legisladores e governantes.
Fui peremptório pelo indeferimento do pedido. Candente nas palavras, coloquei meu cargo à disposição, caso aprovassem sequer o anúncio da candidatura. Terminei dizendo que o discurso dos palestrantes da casa sempre elegera o bem, a temperança, o amor e o trabalho pelos necessitados como as principais metas a serem alcançadas.
Timidamente, alguém me lembrou que a agremiação recebia verbas oficiais, com dotação suficiente para mantermos aqueles serviços a que aludira.
Concentrei o meu vigor lingüístico na refutação do contra-argumento, oferecendo completa resistência ao fato de que estaríamos dependendo de algum poder político para o exercício da caridade. Simplesmente, estávamos realizando algo muito positivo com aqueles recursos, que, doados a outras instituições, iriam ser malbaratados. Encerrei lembrando ao camarada que nós éramos o terreno fértil em que caíam as boas sementes. E tal citação evangélica me satisfez plenamente.
Preciso dizer que, independentemente do parecer, procurei votar em pessoa de confiança do movimento, escolhendo quem portava a carteirinha da federação espírita?
No final da vida, perpassou-me pela mente a situação esdrúxula criada pela contradição entre o verbo e o ato. Julguei-me desprezível, não por haver contribuído para que o centro não se transformasse em palanque político, mas por não ter considerado com justiça a personalidade do requerente, o qual, conforme verifiquei, não logrou ser eleito. Aliás, nenhum dos candidatos favorecidos com meu voto jamais obteve vitória nas urnas.
Como que para compensar a frustração, sempre avaliava os resultados gerais das eleições no país em função das pessoas ligadas ao movimento espírita, admirando-me de encontrar três ou quatro políticos pertencentes a algum dos nossos quadros. Não conheci nenhum pessoalmente nem me aprofundei no estudo de suas contribuições para o bem da sociedade. Bastava-me saber que iriam, caso não correspondessem aos anseios dos eleitores, ter de responder à consciência, aliás, como qualquer ser humano.
Os colegas e o mestre insistiram comigo para que mantivesse a redação acima, já que, após refletir, julguei extremamente perigoso incluir tal polêmica entre os textos. O argumento que me convenceu, finalmente, foi o fato deste tema constituir, como acima aludi, grave preconceito ainda hoje fomentado por pessoas influentes no meio espírita. Que as minhas considerações sirvam para o amadurecimento das pessoas ou, ao menos, para o exercício consciente da cidadania, valor mais elevado quando se trata de avaliar os indivíduos como seres integrantes de uma comunidade.
Chego a esta conclusão temeroso de que vá precisar desenvolver mais um pouco os conceitos expressos no parágrafo anterior.



16. A PRESENÇA DA MORTE EM MINHA VIDA

Vou deixar para mais tarde, se for o caso, a apreciação que merece o comentário com que encerrei a página anterior. Agora tenho de tratar de assunto que me empolgou totalmente a atenção nas últimas horas.
Estive presente a inúmeros trespasses de pacientes, havendo lutado inutilmente para preservar a vida de alguns. Essa constância de minha vida é que me impediu de criar família.
Sei que, normalmente, como espírita, deveria considerar natural o término da existência terrena. No entanto, havendo sofrido percalço pessoal, a contemplação da morte me pôs de sobreaviso para situações ainda mais penosas, à vista do desespero dos pais, maridos e filhos que testemunhava.
Jamais admiti ser emotivo ou sentimental. Também não achava minha sensibilidade fora do comum. Ao ouvir as descrições realizadas pelos espíritos nas sessões mediúnicas, sempre me mantive com o pé atrás quanto a aceitar todas as manifestações de sofrimento ou de saudade, de arrependimento ou de remorso.
A pergunta que me fazia voltava-se para a necessidade de tais demonstrações, às vezes em prantos convulsos, pelos médiuns que não conseguiam controlar-se. Pensava que, visto a orientação superior dar-se no sentido da evolução permanente, era fácil de concluir que, ao tomar consciência dos defeitos morais, as entidades adquiriam o bom senso de prever que, dali por diante, somente haveriam de progredir, superando os traumas da vida.
Fique bem claro que modifiquei bastante aquele antigo ponto de vista, mantendo-me, contudo, firme na concepção do bem e do mal como frutos dos procedimentos mais ou menos evangelizados. Aceito agora que muitos infelizes que foram levados a dar comunicação através dos médiuns melhoram consideravelmente, quando não pelo aconselhamento que recebem, pelo menos quanto a serem levados a ponderar sobre sua triste condição de inferioridade.
No que concerne aos médiuns que se deixam envolver pelas vibrações mais dramáticas, refiz o meu julgamento no sentido de criticar os dirigentes da casa a que serviam, que não se preocupavam em discutir francamente, com O Livro dos Médiuns aberto, os procedimentos que terminavam por tornar-se mero espetáculo dentro do círculo restrito da mesa de desobsessão.
Se via morrerem muitos no hospital e se ouvia as narrativas do além-túmulo, tudo isto compunha o quadro moral que me forçava a refletir em que a existência terrena é de luta permanente e de fracasso inevitável.
Quando as mensagens mediúnicas eram produzidas pelos protetores esclarecidos, invariavelmente, propunham aos encarnados que mantivessem o espírito atento para a boa vontade do trabalho de auxílio aos irmãos carentes, aconselhando, quase exigindo, que incorporássemos ao comportamento todas as virtudes, as quais nunca se cansaram de citar.
Estou referindo-me a estes problemas em relação às influências que sobre mim exerceram os acontecimentos funéreos para tornar clara a minha tendência à supremacia da vida intelectual sobre a sentimental, o que ainda agora vejo prevalecer em minha mente.
Acho que deverei voltar ao tema.



17. PROCESSO CATÁRTICO

Estas comunicações têm constituído para mim verdadeiro processo de aperfeiçoamento espiritual. Tenho elaborado os rascunhos e realizado a redação definitiva, sem a ajuda dos companheiros. Eles só comparecem depois que o trabalho está pronto, para as sugestões e comentários. Mesmo assim, não vejo despertada a atenção para todas as minudências da escrita de forma tão completa quanto após o ditado mediúnico.
São frases que contêm um ou outro termo cujo significado não domino inteiramente e que realço quando estabeleço a crítica do texto definitivo. Vejam bem, não desejo alterar nada. Somente se desencadeia certo mecanismo mais apurado de reflexão, levando-me a considerar outros aspectos dos problemas tratados.
Dizem-me os amigos que este é o sentido mais profundo a que visam os conselhos dos que nos sugerem trabalhar sobre a linguagem escrita, ou seja, uma abertura maior para a extensão real dos dramas instalados no inconsciente.
Um exemplo que posso dar em relação aos temas pessoais reside na dificuldade que tenho encontrado ao expor de forma concatenada, organizada, sistematizada, uma vez que minha tendência é a de apresentar os episódios quase desconectados da realidade psíquica, sem, todavia, seguir roteiro a que chamaria de científico, lógico ou racional.
O parágrafo acima constitui a ilustração do que afirmo, como se há de facilmente observar no aparatoso ritual de sua apresentação frásica, onde o conteúdo cede a vez ao preciosismo artificial do vocabulário e das construções vernáculas.
Desmentem-me as anteriores dissertações. Posso, contudo, assegurar que me dou bem melhor nas partes narrativas, quando fluem os quadros quase cinematicamente. Este fato me levou a meditar a respeito do significado moral de cada forma de redação, atribuindo à estrutura narrativa certo descompromisso com as conclusões, deixando ao encargo dos leitores a tarefa das apreciações de valor ou de conteúdo doutrinário.
No entanto, não me considero totalmente ineficaz na extração dos pontos positivos e negativos dos procedimentos expostos. Apenas e tão-somente desejo reafirmar que tenho de caminhar aos trancos e barrancos, sem dar a devida unidade ao texto que se está compondo como obra de maior fôlego. Esta é parte cuja responsabilidade venho atribuindo aos mentores e colegas, confiando no discernimento deles.
Em suma, para terminar sem enfado, tenho de concordar com os que me incentivam a prosseguir, já que venho revelando-me a mim mesmo, o que, de todo modo, não deixa de ser meritório para esta psicografia. Perdoem-me os que esperavam por mais.



18. MAL DE ALZHEIMER

— Tio, sou eu, o Júnior!
E eu, no final de meus dias, não tinha como entender o que me dizia o amado Isaque, filho de meu irmão, a quem me coube explicar, desde pequeno, a doutrina espírita.
Fui tido, durante sete anos, como demente, porém, na verdade, o meu cérebro foi corroído por voraz esclerose, que ia derrubando um a um os bastiães da intelectualidade.
Não quero descrever os sintomas materiais. Resumo dizendo que, se o cérebro sentisse dor, com certeza eu teria sofrido como um condenado.
Quando arribei deste lado, não trazia lembrança alguma dos derradeiros tempos de vida. Bem depois, com a ajuda dos parceiros desta classe, é que consegui restabelecer, mais ou menos, o quadro de penúria física e moral de que me vi vítima.
Concentrei meu interesse em caracterizar os efeitos morais da doença degenerativa, porque não via como me poderia ter ajudado um sofrimento que não repercutia na alma. De fato, cheguei a acreditar terem sido sete anos totalmente perdidos, não fora a idéia maquiavélica de que o peso em que me constituí para os outros era para que cumprissem obrigações cármicas.
Também desconfiei de que estaria havendo uma espécie de compensação quanto a ter desempenhado profissionalmente a assistência aos enfermos. Pensei em que, se não fosse isso, iria voltar para cá com excessivo orgulho das tarefas que reputava como atos de contínua caridade. Por isso, precisava ficar devendo a seres bondosos sua dedicação à minha pessoa, ainda mais porque meus sobrinho e esposa não tinham realmente a obrigação de fazê-lo, nem tinham conhecimentos que os tornassem pessoas especializadas. Supriram a falta pelo amor que tinham por mim.
Ultimamente, venho mudando de perspectiva quanto a considerar a necessidade minha ou alheia. Estou tendendo a acreditar em que tudo na vida não passa de motivos para viver. Se o sujeito age com naturalidade, sem segundas intenções, vai acumulando pontos para o cômputo da benemerência, os quais lhe darão a grata recordação das ações fundamentadas nas virtudes. E isso o livrará mais cedo das trevas da consciência, se não o remeter diretamente para regiões mais felizes.
A bem da verdade, passou-me pela imaginação que o Júnior me auxiliara com vistas a conquistar méritos para sua ascensão espiritual. Também afastei temeroso a idéia que me surgiu certa ocasião de que estaria interessado na pequena herança que lhe deixei, por meio de testamento assinado quando a doença ainda me permitia rabiscar meu nome. Mas tais alucinações somente ocorreram quando vagava pela erraticidade. Não passavam de comprovação de minha própria miséria moral.
Caso tenha acontecido qualquer dos fatos a que minha imaginação deu margem, haverá o meu querido sobrinho de saber que não irei perdoá-lo, já que não o acuso de nada, nem a ele, nem à esposa.
Finalmente, devo assinalar que me levaram a conhecer espíritos que sofreram do mesmo mal, sem que nenhum apresentasse as mesmas questões por mim levantadas, como se o mal atingisse aleatoriamente os seres vivos. Seriam azares do arcabouço genético das pessoas, arcabouço escolhido durante o planejamento da encarnação?
Não gosto de encerrar os textos com perguntas sem respostas, entretanto, desta feita, posso afiançar que a inquirição é quase uma assertiva. Preciso ler mais um pouco as obras de Kardec.



19. PERSISTÊNCIA DOS CONFLITOS

Tendo realizado levantamento completo de todas as mudanças de comportamento que levei a cabo durante a existência, concluí que bem poucas se deram sem certo período de transição, onde alguma resistência psíquica se opunha ao esclarecimento da necessidade. De fato, as alterações mais pacíficas se deram quando das transformações orgânicas. Mesmo assim, muitas exigiram certo cuidado com a assunção da nova identidade física e psicológica.
Lembro-me das diversas fases da vida para facilitar o raciocínio que pretendo aplicar aos conhecimentos adquiridos no plano da espiritualidade. Ocorre que, não sendo ninguém perfeito (no sentido da perfeição de Jesus), todos temos de aprender ou assimilar ou incorporar, com os novos conhecimentos, os procedimentos mais condizentes com os projetos que se estabelecem para os próximos passos evolutivos.
Está claro que, no momento final da captação da verdade perseguida, existe completo sentimento de realização transformado em paz de espírito, como ainda, íntima alegria pelas conquistas. Mas, passada a euforia da entrada no novo estado, aos poucos vão sendo criadas novas perspectivas de melhoria, o que incide no reconhecimento das falhas de caráter. Esse é o novo conflito a ser superado.
Projetando a tese para campos mais adiantados, onde os espíritos deixaram para trás os tormentos dos vícios e dos defeitos morais, podemos imaginar que sempre haverá novas aprendizagens e novos aperfeiçoamentos, a exigir correções de caráter, talvez não tão conflituosas, mas certamente voltadas para futuros ganhos e trabalhos na área da benemerência universal.
Como visamos ao bem, ao belo, ao útil e ao proveitoso, temos de admitir processo de crescimento espiritual constante, até atingirmos a perfeição. Ora, a perfeição absoluta se coloca como alvo final. As conquistas parciais devem ser consideradas também perfeitas, enquanto vitórias sobre o mal, o feio, o inútil e o improfícuo, ou não terá sentido a sensação de felicidade nesses momentos de glória.
É o que sucede quando terminamos os ditados e ficamos contentes por termos logrado concluir o serviço. Sentimos um como que alívio da pressão anterior, por causa da ansiedade natural de quem desconhece o que poderá ocorrer no instante da psicografia. Depois, passamos a analisar o texto resultante e logo nos detemos nos aspectos que poderiam ter sido melhor expressos ou desenvolvidos. Quem fica plenamente satisfeito com seus escritos, não conhece as angústias das repercussões nas mentes dos leitores, que nos enviam pensamentos e vibrações muitas vezes satisfatórias mas quase nunca sem restrições.
Fique a advertência, porque nos parece claríssimo, pelo que se lê nos textos da doutrina espírita, que todas as criaturas terão que passar pelas portas estreitas das virtudes.
Não seria altamente instrutivo que algum ser das altas esferas demonstrasse como é que se dão suas lutas pelo conhecimento?
Respondem-me os colegas que devo contentar-me com o fato de estar merecendo a distinção destas exposições, mesmo porque o básico do procedimento perfeito se acha registrado nas obras da codificação espírita, entre outras. Por outro lado, lembram-me, como não gosto de encerrar através de pergunta, que talvez não tenha encanto algum um texto que não se feche sobre si mesmo. Finalmente, avisam-me que tolos seríamos se pretendêssemos compreender os fenômenos de causa e efeito que se realizam no âmbito das superiores premissas desconhecidas, já que somos incapazes de intuir como se estabelecessem tais conflitos.



20. O SOFRIMENTO ALHEIO

Não quero referir-me a encarnações minhas menos felizes e proveitosas. No entanto, é preciso que diga que a vocação de enfermeiro me foi ditada pela sensação muitíssimo desagradável de que jamais me havia importado com os problemas dos outros.
Quando me sugeriram a profissão, senti que estava cumprindo desígnio estabelecido antes de encarnar-me.
Para o comum dos mortais, pode parecer que a intuição se deu a posteriori, ou seja, depois de me inserir no contexto do hospital e de ter exercido durante algum tempo o mister é que me senti totalmente à vontade.
Não foi o que ocorreu.
Existe outro dado capaz de explicar melhor o fato: eu era espírita quando pensei em formar-me técnico em enfermagem, o que significa que tinha conhecimento de que os indivíduos trazem programas de vida bastante bem definidos. Seria como que uma tendência atávica registrada nos códigos genéticos.
Minha experiência no hospital se diversificou em relação à maioria dos colegas de trabalho, uma vez que presenciei a transformação deles no sentido de se tornarem cada vez menos sensíveis à dor dos pacientes. No início, até que não me importava muito com os problemas dos internados. Com o passar do tempo, fui observando como é que progrediam ou refluíam as moléstias, correlacionando o efeito a uma causa que ganhou vulto em minhas cogitações: a aceitação ou não da condição de enfermo de cada um.
Aqueles que permaneciam calmos e que tendiam a curar-se não me impressionavam mais do que os que, aceitando a sua sorte, não viam melhora em seu estado de saúde. A estes, sempre que podia, ajudava a considerar a vida como meio de progredir espiritualmente, e a morte, como mera passagem de um estado existencial a outro.
Os que me causavam mais fortes emoções e a sensação de que precisavam mais de mim eram os que se rebelavam, muitos acusando diretamente a Deus. Empenhava-me, então, tudo realizando para amenizar-lhes a dor, o mal-estar, a preocupação, porque adquiria a certeza de que estariam muito mais propensos ao sofrimento após o desenlace.
Não foram poucas as vezes que, junto à mesa mediúnica, orei pelos que tinham partido sem se conformar, insistindo para que fossem chamados para se comunicar, na ânsia de fazê-los compreender, ainda que em condições infelizes, que precisavam melhorar seu procedimento, acatando as informações evangélicas que conseguíssemos traduzir-lhes.
Eu mesmo estive oferecendo meus préstimos ao grupo espírita, permitindo que me inquirissem a respeito do estado atual da existência. Infelizmente, pouco pude acrescentar ao que se esperava de trabalhador dedicado, ou seja, todos queriam ouvir que estava bem, que readquirira o uso normal do intelecto, que me fora proveitoso o fato de ter participado tão ativamente das atividades do centro.
Ainda que tivesse mais tempo para transmitir considerações do tipo que venho desenvolvendo aqui, com certeza não teriam atribuído à lucidez e sim à demência qualquer crítica que viesse a fazer.
Sobre isto preciso debruçar-me com mais empenho, principalmente no que tange a comprovar pelos fatos, indo conferir o que sucede na alma dos encarnados quando se vêem feridos em suas expectativas de salvação. Por enquanto, deixo a anotação para que os interessados em pôr em pratos limpos todas as sugestões possam adiantar-se nos estudos do comportamento humano.
Muito embora não tenha colocado ponto de interrogação ao final da frase anterior, não é verdade que se trata de pergunta? E esta não passa de afirmação.
Em suma, para que não fique a impressão de que estou divagando, participo que estou empenhadíssimo em evitar-lhes qualquer sofrimento moral para quando do regresso à erraticidade, ainda que sua preocupação seja tão-só de enviar-me boas vibrações, como se a alegria de certa frase de efeito pudesse refletir intuito inferior e malévolo. Apesar de todos os males e sofrimentos humanos, sempre haverá de sobrar um tempinho para sorrirmos. Graças a Deus!



21. O MEDO DAS TRANSFORMAÇÕES

Não são só os encarnados que temem perder regalias ao se oferecerem de coração limpo para serviços novos no campo da benemerência. Também cá na erraticidade, muitos de nós achamos prematuras as mudanças de atitude, temerosos de que o estágio de calma e tranqüilidade possa ser afetado por preocupações desconhecidas.
Quando na Terra, resisti muito considerar que seria conveniente preparar-me para enfrentar, de peito aberto, os trabalhos voluntários no centro espírita. Lembro-me perfeitamente de que exigia uma comunicação de minha irmã, foco central de meu interesse. Somente depois de perceber que precisaria fazer por merecer tal regalia é que me atrevi a aceitar participar das tarefas da seara do bem.
Enquanto isso, dava-me ao trabalho de ler as obras da codificação, fazendo como a maioria, ou seja, saltando trechos que julgava evidentes demais para constituir-se em novidade. Por isso, quando me convidaram para estudar em conjunto O Livro dos Espíritos, fiquei com a pulga atrás da orelha, desconfiado de que iria fazer um papelão, por causa de não saber citar trecho algum, de acordo com o tema em discussão.
Foi muito agradável quando me surpreendi debatendo com entusiasmo as idéias que apresentavam os colegas, muitos deles provocando a reação dos demais ao arriscar serem mal interpretados, quando manifestavam opiniões em desacordo com os textos. Buscavam amenizar a secura dos temas ou a excessiva seriedade dos conhecimentos filosóficos e doutrinários, evidentemente.
Mesmo após vários anos reunido aos grupos que se sucediam, não pude considerar-me suficientemente preparado para subir ao pódio dos palestrantes. Contudo, atribuíram-me aquele encargo de entrevistar os recém-chegados, função que busquei honrar pela importância da boa recepção aos neófitos.
As primeiras experiências, se não foram de todo desastradas, pelo menos deixaram-me apreensivo quanto à minha capacidade de divulgador da doutrina. Aos poucos, porém, fui adquirindo firmeza, tendo descoberto que se concentravam em estreita faixa de interesses, a maior parte deles sob a influência dramática e estressante de perdas de familiares ou de amigos.
Escorreguei pela digressão mas não me perdi quanto ao conteúdo, uma vez que, posso antecipar, muito leitor deverá estranhar que me preocupe agora com fatos tão antigos e ultrapassados. Acontece que estou sendo incentivado a transformar em narrações os textos que teriam estrutura dissertativa, por força da preferência já denunciada. Não é verdade que tudo leva a crer que estou temendo as mudanças, inclusive pela aceitação desta frase interrogativa?
Quero esclarecer que o medo da morte jamais me empolgou, tantas vezes presenciei passamentos no hospital. Neste caso, a minha doença mental me poupou inclusive da consciência do momento do desenlace. Se esta não foi uma bênção, então estarei simplesmente sendo mal agradecido.



22. AINDA AS TRANSFORMAÇÕES

Hesitei em trazer estes aspectos novos que dizem respeito às mudanças entre as vidas. Assim que o indivíduo chega aqui, procura estabelecer o maior número possível de reações “orgânicas” a que estava habituado na carne. Mas tudo depende, naturalmente, de seu grau evolutivo, pois existem aqueles que não aceitam sentir sede, por exemplo, enquanto outros fazem questão de fabricar água e comida com que saciar a sede e a fome que criam a partir da exigência de manter o mesmo padrão de felicidade.
Quando encarnado, não admitia duas hipóteses, especialmente em relação a mim mesmo: a de chegar à erraticidade esperando encontrar ambiente ao qual me ligasse pelos mesmos sentidos, que julgava demasiado grosseiros, pela experiência das leituras de Kardec.; e a de me ver apenas como feixe de vibrações ou conjunto de fluidos, não porque não soubesse que a matéria que estava deixando se constitui de energia agrupada ou corporizada, mas porque não achava que me transformaria num daqueles fantasmas que aparecem e desaparecem para assustar as pessoas.
A minha gratidão à doutrina espírita é profunda, pois me deu condições de preparar-me convenientemente para aceitar as mudanças operadas no organismo perispirítico, a partir do instante em que compreendi que passei boa parte da vida na erraticidade, durante o sono, chegando a caracterizar com certa precisão como se relacionam os espíritos, reconhecendo-se e amando-se ou desprezando-se.
O mais agradável, no meu caso, foi o rápido domínio da capacidade de apreensão intelectual e física, percebendo que, no que tange ao intelecto, muito devi à recordação das passagens anteriores entre as vidas pela erraticidade, e, no que toca ao físico, à construção ou estruturação de garras com que pegar as coisas, dando-lhes a aparência de mãos, no final de membros ligados a corpo também estruturado a partir da aparência que possuía em vida.
Em breve, porém, passei a aprender as lições dos mentores com muito maior facilidade, porque descobri cedo que aquele corpo espiritual não exigia de mim muito tempo, já que não me obrigava aos cuidados de manutenção, a não ser pela necessidade de estabelecer padrão de procedimento fundamentado nos ditames da moral evangélica.
Pedem-me para não ser muito simplista, para não passar idéias errôneas a respeito da riqueza de minha personalidade, como se fosse espírito de luz. Nada disso. Meu desejo é pôr os amigos leitores a par da possibilidade de chegarem aqui desprendidos da matéria, envoltos por carinhosos desvelos dos protetores. Para tanto, basta que saibam considerar a hipótese do progresso, pelo bem praticado.
A transformação a que mais resisti, neste aspecto, foi admitir que era um pouco melhor do que me considerava, já que, como venho demonstrando, a opinião que trouxe de mim mesmo era de forte pessimismo. Até aceitar que havia auxiliado muita gente, muito mais do que prejudicado, precisei ficar uma boa temporada nas trevas da consciência.
Agradeço muito a meu protetor familiar o esclarecimento de que tal modo de pensar tinha um aspecto positivo, qual seja, o de que havia desestimulado o orgulho, a vaidade, a prepotência, o egoísmo, ao mesmo tempo que incentivara as virtudes da caridade. Pecava contra a esperança e a fé, mas isso facilmente se resolveu.
Pode parecer que esteja acreditando na possibilidade de estabelecer verdadeiro roteiro de vida superior. Longe de mim. Tenho de modo bem concreto na cabeça a idéia de que cada um possui roteiro de personalidade próprio, sendo poucos os que são flexíveis a ponto de reformular os parâmetros da vida espiritual através de simples depoimento mediúnico. Se toda a literatura espírita, a partir dos textos da codificação, forem incapazes de influir decisivamente sobre a vontade dos mortais, a minha percepção do valor destas minhas comunicações é bastante realista para me permitir aceitar tão-só que, talvez, se acenda a curiosidade dos leitores por textos mais completos e mais profundos.



23. AS ONDAS DE AMOR

Em vida, julgava extremamente feliz a idéia de considerar as vibrações coletivas como recurso do plano superior para levar a humanidade a estado de equilíbrio e felicidade contemplativa.
Mas esse conceito se deteriorou quando percebi que, mercê dos meios de comunicação de massa, o povo também vibrava em uníssono no sentido inverso, ou seja, transmitindo ondas de ódio e desejo de vingança, como no caso das guerras.
Estabeleci, então, um limite bastante raso para a interferência das hostes e falanges do etéreo, porque não admitia que a Divindade pudesse haver concebido tal meio de atingir criaturas inocentes, já que as vibrações envolviam pessoas trabalhadoras e honestas, boas e compreensivas.
Essa conclusão extraí de minhas próprias reações, porque me surpreendi muitas vezes pensando de forma equivocada a respeito de pessoas e de acontecimentos, contagiado, evidentemente, pelas informações que recebia através da mídia.
No final da vida, antes de contrair a doença que me arruinou o cérebro, estava considerando as vibrações como mero fruto da imaginação dos espiritualistas em geral e dos espíritas em particular. O que li em Kardec favoreceu-me tal pensamento, porque o mestre desenvolveu a capacidade de raciocinar a respeito de todos os fatos, jamais expressando opinião que não tivesse sido exaustivamente meditada, ou seja, não se deixava empolgar por emoções coletivas, como nos casos em que se espalhava que se havia dado um milagre qualquer.
Expus três aspectos diferentes de meu modo de pensar a fim de poder estabelecer o fator dos desenvolvimentos intelectuais provindos dos eventos impossíveis de comprovação científica no campo da matéria. A tese das vibrações coletivas ou dos fluidos que se espalham a partir de certo foco espiritual somente iria poder atestar na erraticidade.
Se me tivesse dedicado com maior rigor a analisar os escritos de Kardec, teria estabelecido correlação entre diversas informações contidas nas mensagens mediúnicas reproduzidas em suas obras, onde se esclarecia que os espíritos se reúnem no etéreo por faixas ou categorias, segundo seus graus de adiantamento. Ora, tais reuniões não podem ocorrer aleatoriamente, senão através de algum tipo de sintonia. Mas sintonizar o quê? As vibrações por meio do reconhecimento de sua extensão, conforme o poder de percepção dos indivíduos. Sendo assim, o nível de simpatia, para utilizar um termo caríssimo a Kardec, se dá dentro de determinado espectro, respeitando o máximo e o mínimo de que são capazes os espíritos.
É fácil de explicar.
Consideremos que Jesus nos visite e nos permita perceber sua presença. Se não partir dele tal conhecimento, ficaremos sem saber que estamos sob a influência de sua capacidade de amar, já que nossa recepção não consegue sintonizar ondas muito puras de sentimentos. Consideremos também, sempre estabelecendo o plano da erraticidade como o local da experiência, que se aproxime um ser muito infeliz, ainda sob a tortura dos crimes praticados. Como ultrapassamos a condição de sofrimento desse indivíduo, vamos ficar sem pressentir sua presença.
Aonde desejamos chegar, eu e meu grupo?
Queremos assinalar que Deus “vibra” em ondas de amor, enquanto nós não aproveitamos tais bênçãos por absoluta inadequação dos sentimentos de que somos capazes.
É admirável que muitos encarnados, dependendo de suas religiões, tenham o pressentimento dessa presença, agindo em consonância com os preceitos de sua fé. Quando voltarem para cá, bastar-lhes-á que adquiram consciência de que as vibrações tendem a ser cada vez mais “fortes” ou melhor percebidas, conforme forem evoluindo, já que o progresso depende das obras de cada um, seja no campo das relações, seja no âmbito mental.



24. CONVITE PARA REENCARNAR

Foi inesperado. De repente, o administrador geral da colônia me chamou e disse:
— Antônio, sabemos que você tem pensado a respeito de voltar à Terra. Se quiser efetivar a idéia, temos algumas possibilidades que podem parecer-lhe lucrativas, quanto a um bom aproveitamento espiritual. Quer ouvi-las?
Na verdade, havia discutido com os colegas a respeito das perspectivas novas que se abriam para mim, caso viesse a reencarnar, dado que as meditações e estudos que venho levando a efeito me estão possibilitando ampliar os horizontes quanto a desempenhar com maior eficácia os princípios evangélicos. Contudo, de chofre, não soube o que responder.
Tendo percebido a hesitação, o mestre acrescentou:
— Claro está que você não será forçado a nada. Estamos oferecendo-lhe oportunidade de pôr em prática os conhecimentos cármicos que você vem assimilando. Para isso, vamos abrir-lhe um leque de opções possíveis, em que cada encarnação lhe trará desafios diferentes, muito embora em todas se preservarão suas qualidades intelectuais. Queremos que você saiba administrar melhor as emoções. Posso passar-lhe os perfis das personalidades terrenas que lhe reservamos?
— Esteja à vontade, senhor.
— Pois aqui estão cinco gravações em vídeo das famílias ou pessoas que poderão constituir o ambiente em que você será inserido. Veja todas com muita atenção e depois me forneça uma resposta definitiva.
— Posso amparar-me nos conselhos dos colegas e professores?
— Pode discutir com eles tudo quanto julgar necessário, mas só aceite meu convite caso se sinta absolutamente cônscio da luta que deverá empreender. Volte dentro de uma semana.
Devo confessar que me bambearam as pernas. Uma coisa é imaginar-se de volta à carne, fundamentado nas experiências da derradeira romagem. Outra bem diferente é estudar o ambiente a que deverei integrar-me, sem saber exatamente quais as perspectivas de sucesso, em corpo diferente, com inteligência delimitada geneticamente, sem saber quais as histórias existenciais dos seres que me acolherão.
Deixei de lado por dois dias as fitas, dedicando-me a examinar as reações emocionais pela recordação dos fatos físicos e morais que me causaram constrangimento, angústia ou dor. Insistiam em comparecer os prazeres, para os quais atribuí sentido bastante pejorativo, como se fossem pecaminosos. Também não me agradou a idéia de ser recebido em lar miserável, onde conheceria os sofrimentos provocados pela penúria.
Lembrei-me das dores de barriga dos bebês, dos problemas causados pela primeira dentição, dos sustos naturais das pequenas quedas e machucaduras, indo por esse diapasão até bater de frente com os que me deram os primeiros socos e pontapés. Cheguei a ver-me sob as palmadas de meu pai, não achando justo passar de novo pelas desagradáveis sessões de castigos corpóreos e morais.
Considero-me bastante positivo e cheio de iniciativas, mas, perante deliberação tão séria, senti-me meio perdido.
Conversei com a classe reunida e recebi incentivo para examinar com todos as gravações. Se o fizesse uma por dia, terminaria justamente dentro do prazo estabelecido pelo mentor.



25. A PRIMEIRA FITA

Antes de iniciar o estudo do primeiro casal, fiquei a perscrutar-me a intimidade da alma para descobrir quais seriam as qualidades ideais das pessoas que irão agasalhar-me, o que me levou a considerar as minhas pretensões demasiado elevadas.
O mínimo que exigi das pessoas foi que tivessem por mim amor de tal dimensão que me evitassem qualquer desamparo emocional.
Uma idéia levando a outra, cheguei à conclusão de que, na verdade, estava pleiteando transferir-me para mundo de melhor categoria, algo como o que li em Kardec, onde os melhores se encarnavam em Júpiter. Aceitava integrar-me em nova família, desde que me oferecessem condições de superior atividade intelectual.
Reunida a classe, constatou-se que o casal em vista se constituía de dois virtuoses, pertencentes ambos à mesma orquestra sinfônica, com extensa e selecionada clientela de alunos.
De repente me vi completamente alheado dos problemas que levantara. Na Terra e não em Júpiter, localizavam-me um lar capacitado a propiciar-me educação e conforto.
Havia uma descrição das personalidades em linhas gerais. Mostrava-se que ambos possuíam pendores artísticos que floresceram em encarnações anteriores. Eram dedicados à profissão e mantinham discreta fé dentro da aura religiosa emanada da Igreja Católica.
De imediato, surgiu-me a dúvida:
— Mestre, se eu aceitar tornar-me filho de músicos, não terei de contribuir, ao menos, com algum saber inato? A falta de traquejo artístico não irá constituir-se em excessivo peso para os pais carregarem?
Ao invés de responder-me, Epaminondas preferiu levar o problema para ser discutido pela classe.
Perplexidade geral. Ninguém arriscou um palpite até que eu mesmo me obriguei a estimular o debate:
— Bem sei que o filho irá herdar as características genéticas dos pais, entretanto, desconfio que, neste caso, isso será insuficiente. Lembro-me dos gênios precoces e julgo que, dificilmente, sua habilidade tenha origem apenas na linhagem familiar. Com certeza, Mozart, por exemplo, além de ter nascido numa família onde a música estava no sangue, deve ser a reencarnação de espírito dotado de excepcional sentido musical.
A classe irrompeu em provas e contraprovas, uns defendendo a possibilidade de criar-se o gosto por imposição atávica unida ao hábito dos exercícios.; outros justificando a inclusão na família de alguém que obrigasse os pais a meditar mais seriamente a respeito da verdade existencial, já que teriam de aceitar um filho bronco e desprovido de inatos sentimentos. Estes últimos lembraram as minhas experiências espíritas, acrescentando o forte argumento de que eu serviria para realizar aquele plano de conversão ao espiritismo.
Agradeci muitíssimo o interesse dos colegas, afirmando-lhes que iria sopesar gravemente as diversas manifestações, e solicitei permissão para definir-me somente após tomar conhecimento das demais fitas.
Em particular, considerei a hipótese anterior muito distante de minha realidade espiritual, efetuando mudança radical na forma de encarar a nova existência corpórea. O vídeo teve o condão de me despertar para perspectivas de vida superior, dentro da faixa de vibrações em que estou inserido. A idéia de reencarnar-me cresceu no sentido de admitir, ainda uma vez, a sensação de sofrimento físico e moral.



26. ESPECULAÇÕES

Havia cerca de dezoito anos que Sileide havia reencarnado. Nunca tive a curiosidade de ir visitá-la nem dela recebi nenhum chamado. De quando em quando, sentia-lhe doce vibração de afeto, como se ela se lembrasse de mim nas orações.
Pois bem, naquela noite após as discussões na classe, surgiu-me a idéia de que poderiam os mentores haver preparado a gentil surpresa de relacioná-la entre as minhas possíveis mães.
Tanto bastou para me ver de pé atrás, já que, como sabem, dei causa à molesta morte sua , na derradeira peregrinação terrena. Não temi um carma de compensação de débitos, porque isto seria até injusto para quem dedicou o restante da vida a defender os interesses espirituais alheios. Entretanto, desconfiei de mim mesmo, pensando argutamente que dos desígnios superiores do Pai inscritos em suas leis eu pouco conhecia.
Desencadeou-se, então, na memória, a tremenda necessidade de descobrir, dentre os antigos parentes de quem me afastara por indiferença, se não havia algum que me acusava de descaso, de menosprezo ou de qualquer tipo de despique. Nesse caso, encarnar-me em sua família seria até um meio de escusar-me do mal que lhes causara, um modo de reaproximar-me com o intuito de prodigalizarmo-nos carinhosa restauração dos vínculos afetivos rompidos.
A perspectiva não me agradou, deveras. Contudo, forcei-me a considerar tal hipótese e a necessidade de passar pela expiação ou provação o quanto antes, se me estivesse movendo interesse verdadeiro por progredir moralmente.
Passei praticamente a noite em claro, vasculhando os quadros das lembranças das vidas passadas, sem encontrar um único elemento familiar que pudesse pleitear existência terrena inteira de ajustamentos psíquicos. A bem da verdade, devo dizer que encontrei alguns antigos querelantes, cujas demandas acreditei estarem arquivadas em definitivo.
Ao chegar junto à turma, antes de iniciarmos a exibição da segunda fita, fiz questão de levantar os problemas relativos à parentela, para elucidar de vez o caso da realização da justiça cármica.
— Você está absolutamente certo, afiançou-me Epaminondas. — Ninguém deve ter certeza de nada em se tratando de relacionamentos frustrados. Muitos de seus companheiros poderão narrar episódios de suas existências em que, de repente, se viram às voltas com espíritos considerados amigos que se revelaram desafetos. Isso ocorre com todos nós, uma vez que muitos acontecimentos quedam na memória como plenamente decifrados, até que, com o desenvolvimento das noções morais, percebemos que estávamos iludidos, que de devedores passamos a credores, ou o contrário, sendo levados a posicionar-nos diferentemente em relação aos seres envolvidos. Dependendo do nosso nível evolutivo, ou seja, se formos capazes de perdoar ou de aguardar que o outro adquira a mesma lucidez, aí não seremos afetados pela descoberta. Para indivíduos ainda não despertos para as leis do amor, da justiça e do perdão, tais revelações podem ser dolorosas, provocando reações de maior ou menor virulência, o que nos poderá envolver no processo de catarse que se instalará.
Muitos colegas, com a anuência de todos os demais, contaram casos para comprovação das assertivas do mestre, fazendo-me acreditar não estar inteiramente a salvo de futuros ajustes de contas. Precisei fazer grande esforço para concentrar-me no ato de examinar a próxima fita, objetivo da sessão de estudos.



27. A SEGUNDA FITA

Na tela, as figuras rústicas de dois anões, pessoas de pequenas dimensões físicas e morais, pelo histórico das existências anteriores.
Estranhamente, não sofri nenhum repelão da alma, como costumava sentir quando vivo. Tendo sido reavivada outra encarnação, apareceram guapas criaturas, de beleza incomum. No entanto, alguns episódios nos revelaram espíritos maldosos.
Interessamo-nos por ouvir um dos protetores, que explicava que houve consenso no sentido de diminuir a capacidade intelectual e o desempenho físico do casal, para propiciar oportunidade de compenetração de que nem tudo na vida cai do céu como beneplácito do Pai.
A perspectiva do futuro filho era de seguir os ditames morfológicos dos cromossomas, segundo a organização casual da união do esperma com o óvulo, podendo ou não a dimensão dele manter a dos pais.
O casal se adaptava muito bem ao ambiente circense, aceitando vida de pesadas descaídas financeiras. Mas trabalhavam com muito prazer e alegria, ainda jovens, configurando o crescimento da família através de dois ou três rebentos.
— Mestre e colegas, qual o meu real papel nesse mundo totalmente diverso de quantos já freqüentei? Terei a condição de evoluir por meio de luta, aparentemente, tão-só no campo dos valores materiais? Poderei apresentar rendimento moral que me eleve no seio da comunidade, constituindo-me defensor dos direitos dos companheiros? Ou serei apenas mais uma figura inexpressiva, sem realce artístico, julgando-me excelente no trapézio ou no picadeiro, como tantos que aplaudi em criança?
O interrogatório causou rebuliço na classe, no entanto, ninguém desejou assumir a palavra perante o auditório, até que Epaminondas, sempre ele, esclareceu:
— Na condição de enfermeiro e de espírita, você pôde usufruir certo bem-estar material, membro da baixa classe média, sem, contudo, ter passado qualquer necessidade durante toda a vida. Evidentemente, você outrora viveu em condições miseráveis, muito inferiores às que lhe estão sendo oferecidas agora. Qual a diferença? Ocorre que tais vicissitudes jamais se constituíram em verdadeiras provações, no sentido da aquiescência de sua parte e no conformismo com a sorte, revoltado todas as vezes, desconsiderando as oportunidades para absorção dos valores morais impregnados nas almas dos que superaram o sofrimento com vigor espiritual. Não é verdade que seus regressos do orbe terráqueo sempre foram de extrema penúria, caindo nas trevas mais profundas, increpando a Divindade de injusta e cruel? Responda sinceramente: você está vendo nessa reencarnação um passo atrás na escala evolutiva?
Cônscio de que ninguém retrograda, respondi como mero estudioso da doutrina:
— Não creio em retrocessos espirituais. As condições menos cômodas da oferta dos anões não representam diminuição de meu poder intelectual ou sentimental. Também não estou envolvido emocionalmente em relação à turbulência mental que terei de enfrentar, dado que os elementos doutrinários que possuo acabarão por quedar no fundo da memória perispiritual. O que pode preocupar-me é o fato de não vir a ser útil aos semelhantes.
Epaminondas foi contundente:
— Talvez, se me coubesse encarnar em tais condições, achasse que a sua resposta serviria para mim. Entretanto, levaria em consideração outro aspecto fundamental, o de que a importância do auxílio não é diretamente proporcional ao conhecimento das teses espíritas. Examinaria com cuidado em que sentido a experiência poderia servir-me para desenvolver os recursos mecânicos ou automáticos da atuação moral superior, principalmente na atuação junto aos semelhantes, para oferecer-lhes elementos para meditação a respeito da existência. Proporcionar momentos de êxtase no trapézio ou de contentamento inocente no picadeiro pode eqüivaler, quando existe boa-fé e otimismo, a uma boa sessão de passes magnéticos no centro espírita ou a uma vibrante palestra a respeito da vida de Allan Kardec.
Fez-se profundo silêncio na classe, até que um engraçadinho gritou:
— Aí, Batuta!
Foi um riso de alívio e de emoção, pelo exemplo bem humorado do nosso palhaço de ocasião.



28. UMA QUESTÃO DELICADA

Passei a noite atormentado pelo fato de não ter ao lado nenhum dos filhos das anteriores encarnações. O caso era que estava sendo requisitado para dar alegrias a progenitores desconhecidos, quando as minhas alegrias passadas se perderam no enevoado de meus péssimos sentimentos.
Assaltou-me a preocupação de não ter propiciado guarida a nenhum espírito na derradeira jornada, não me tranqüilizando nem quando me lembrei de que nem Jesus nem Kardec tiveram prole. Associei os pensamentos à vida mediunicamente fertilíssima de Francisco Cândido Xavier, que contornou a falta de filhos biológicos com a adoção e a manutenção de inúmeras instituições que cuidam de órfãos e de necessitados de todo tipo.
Pesou-me sobremodo o fato de não ter sido casto, porque era a comprovação inequívoca de egoísmo, já que não permiti ao destino qualquer desorganização eventual de minha paz na matéria.
Quando me reuni aos colegas, logo após lhes expor os pensamentos da noite, estabeleci a questão que me perturbava,:
— Que devo esperar da vida, senão a expiação dos males através de sacrifícios ou de doação integral à família que terei que constituir? Terá Kardec tido a necessidade de reencarnar com o objetivo de ser pai? Não se esqueçam de que ele, em certa passagem, diz que teria de voltar ao plano físico ainda muitas vezes. Quanto a Jesus, não ouso levantar o problema, já que sua vida foi cortada cedo demais, além das implicações inerentes a ser ele espírito elevadíssimo. Penso que não lhe faria falta cuidar da saúde e das alegrias de alguns petizes, dar orientação aos jovens, assistir aos filhos formados com o socorro de sua experiência e presenciar o nascimento e o crescimento dos netos. Sinto falta dessas fortes emoções, ainda que corriqueiras, porque não me parece completa a vida que se isenta delas. Não é verdade que estou tendendo a conceber que todos os espíritos haverão de alguma vez, numa ou noutra encarnação, ter de passar por semelhantes experiências?
A turma novamente não se organizou para estudar o ponto que levantei. Alguns se manifestaram com certo aborrecimento, já que lhes impedia de assistir ao terceiro vídeo. Consideraram a manifestação inoportuna, uma vez que remetia para estudo sério dos padrões universais exigidos para que os indivíduos alcancem progredir para mundo mais adiantado.
Tais observações foram extraídas da preleção de Epaminondas, que intimou os alunos a responderem ao questionamento.
— Não acho relevante, afirmou um deles, o fato de procriar na próxima encarnação. Suspeito de que esteja o nosso companheiro por demais sequioso de avançar na senda evolutiva, impedindo-se de ver que, como ele mesmo lembrou quanto a Kardec, todos iremos ter de encarnar entre os humanos muitas vezes ainda. Para que não veja nas minhas palavras nenhuma recriminação...
Interrompi-o:
— Se você estiver revelando seu pensamento verdadeiro, sem nenhum envolvimento de caráter emocional, não tem razão para interpretar dessa forma as suas palavras.
Prosseguiu ele:
— É claro que me envolvo emocionalmente, ou não terá minha participação o sentido que lhe quero imprimir da afeição e da admiração pelo colega. Mas, se formos encaminhar o debate para esta via, não chegaremos a resultado algum quanto a atender à solicitação do mestre. Por isso, quero encerrar dizendo que você deve escolher uma oferta qualquer, sem se deixar estimular por nenhum motivo particular, dado que, segundo creio, quando regressar para cá, as outras quatro configurações existenciais estarão esperando por você.
A classe manifestou-se favoravelmente aos dizeres ponderados do amigo, ansiando por ouvir de Epaminondas que estava na hora de vermos a terceira fita. E assim se deu, não sem antes aguardarem pelo refazimento de minha lucidez, já que fiquei muitíssimo abalado com os argumentos mais do que justos que ouvi e que precisei engolir com algumas lágrimas.



29. A TERCEIRA FITA

Assim que principiaram as informações concernentes ao próximo casal em vias de concepção de mais um filho, pus-me de orelha em pé, com justo motivo. Tratava-se de ardorosos membros da comunidade espírita, ele com cinqüenta anos passados.; ela com pouco mais de trinta. Havia uma fieira de filhos, sendo o próximo o sétimo.
No meu cérebro, intenso rebuliço, pois me vinham em avalancha as experiências que tive com centenas de casais, trabalhadores das casas espíritas do bairro. O que mais me atemorizava era ter de repassar todos os elementos básicos da doutrina, sob estreita vigilância.
Avançando o vídeo, apareceram diversos episódios envolvendo pais e filhos, os mais velhos displicentes e pouco aplicados aos estudos tão caros aos progenitores. Os mais novos, ainda em idade pré-escolar, eram conduzidos para as reuniões públicas, onde se viam obrigados a passar algumas horas em absoluto tédio.
— Que irei eu fazer nesse ambiente totalmente voltado para a prática da caridade cristã? — foi a pergunta que registrei no caderno, antes de se abrirem as discussões.
Pesava-me a perspectiva de realizar as mesmas ações da última encarnação, ainda mais sobrecarregado com o compromisso que me parecia claro de ter de convencer os irmãos dissidentes a aceitar os postulados de Kardec.
O vídeo avançou mais um pouco, demonstrando que os pais tiveram vidas anteriores dedicadas a religiões diversas, enquanto os filhos só foram integrados à família por desejo explícito e acordado entre todos, porque provinham de vidas absurdamente materialistas. Queriam agora alguém com experiência no âmbito do movimento espiritista.
Desejei escrever outra questão, esta relativa às faculdades intelectuais de que estaria provido, contudo, fiquei sem coragem de escrevê-la, já que não punha muita fé em minha capacidade atual ou em minha paciência futura.
Assim que terminou a exibição, Epaminondas abriu os debates:
— Antes de Antônio manifestar-se, gostaria que os que estiveram debaixo das mesmas condições revelem se estariam dispostos a reencarnar nessa família.
Declarou-se contrária uma colega que estivera em lar favorecido pela respeitabilidade dos ensinos espíritas:
— Não seria tarefa das mais fáceis reunir tais pessoas em torno dos ideais dos progenitores. Tenho a certeza de que tal missão é bem inexpressiva, pelo retrospecto de vida do nosso irmão. Iria ele dar murros em ponta de faca, acabando por sentir-se completamente frustrado. Ainda que obtivesse algum sucesso, este não representaria mais do que um empenho tacanho diante de tudo quanto os pais podem extrair dos textos da codificação.
O segundo contrariou a opinião da colega:
— Não vejo problema algum em freqüentar a companhia de pessoas interessadas na prática da caridade. Pelo que entendi, não haverá obstáculos materiais, já que financeiramente estão bem, sem qualquer perspectiva de perderem o que possuem. Quanto a obter ou não sucesso, é o de menos, considerando que cada um responde pelos próprios atos, ainda mais porque todos se ofereceram para a provação. Tudo vai depender do denodo do colega no sentido de pautar com sobriedade os procedimentos, recriando a vida anterior, sem os problemas que lhe afetaram os sentimentos.
Ainda havia outros dois, mas limitaram-se a votar, cada um de acordo com um dos pareceres.
Vi-me compelido a expender meus sentimentos:
— Agradeço muito estarem todos preocupados em me indicar o melhor caminho. Acharia a proposta tentadora se me fosse dado escolher a faculdade que iria aplicar junto à mesa mediúnica, uma vez que gostaria muito de participar da vida do centro na qualidade de médium, de preferência escrevente, podendo aceitar ainda a mediunidade de cura. Era o que mais admirava nos companheiros, já que minha participação, como sabem, era muito mais administrativa. Em todo caso, peço para não considerarem definitiva esta decisão, fruto do envolvimento emocional causado pelas recordações da última jornada. Apenas gostaria de enfatizar o aspecto do nível socioeconômico lembrado pelo colega, para dizer que um dos objetivos de encarnação desse naipe deveria fundar-se em aprofundado planejamento para captação para o movimento espírita de pessoas mais humildes, como tenho visto ocorrer no seio de muitos cultos e igrejas. Peço licença para refletir um pouco mais sobre o assunto, enquanto vamos assistindo aos outros vídeos.
Epaminondas foi sucinto em sua observação final:
— Desde que as pessoas adquiram pela razão o que estão adquirindo pela emotividade nas outras religiões, ou seja, a fé que conduz à verdadeira doutrina, um desforço nesse sentido haverá de ter muitos méritos.



30. O FENÔMENO DA FIXAÇÃO

Não pude deixar de refletir a respeito dos últimos tempos em que vivi consciente de mim e de meus atributos, antes do mal que me corroeu o cérebro.
Revi a figura amorável de meu sobrinho Isaque, voltando a desconfiar de que algo o movera para efetuar o auxílio que me prestou durante todo o período em que estive doente até morrer.
Várias vezes interrompi a meditação, crendo estar errando muito em levantar suspeitas, como se o amor que sentia pelo rapaz e por sua esposa não significasse grande coisa no rol das minhas afeições. No entanto, talvez venha a ser a única criatura que virá procurar-me assim que desencarnar.
Precisei orar como que compelido pelo remorso, assumindo postura moral que me pareceu falsa e ostensiva. Foi quando me ocorreu que estava sob o jugo do fenômeno da fixação, conhecido entre as pessoas com quem convivi como teimosia ou obstinação.
Devo dizer que, para me desviar da sensação desagradável, tentei interpretar cientificamente a doença que me atacou, imaginando se não seria alguma enzima criada a partir de elementos contidos em meu código genético e desenvolvida por força de necessidades cármicas. De pensamento em pensamento, configurei a velha frustração de não ter encontrado em mim recursos intelectuais para ingressar na Faculdade de Medicina, vestibular que não tentei diretamente, limitando-me a responder às questões em particular, avaliando os resultados como por demais negativos para pleitear uma vaga a sério.
Ainda uma vez descobri que todas as reflexões se repetiam tais quais, não avançando um passo na descoberta de outros fatores de quaisquer tipos para esclarecimento dos problemas. Julguei que aquelas deficiências assinaladas um dia estavam demarcando os limites de minha capacidade ainda agora.
Tomei do lápis e escrevi na caderneta de anotações:
“Que importância tiveram os conhecimentos hauridos após o desenlace junto aos mestres e colegas, se não me servem para ajuizar com mais propriedade a respeito das reações psíquicas de toda a existência?”
Fechei as aspas com respeitosa deferência por haver aplicado o verbo haurir, contente comigo mesmo, suspeitando de que, pelo menos no sentido da expressão lingüística, havia progredido um pouco. Puxei pela memória e não achei página alguma que houvesse escrito até então com algum sentido literário, admirando-me do fato de estar a fabricar texto que, apesar de curto, exprimia com lógica e espontaneidade o pensamento, dando a conotar que o sentimento de frustração estava impresso nas entrelinhas.
Adentrei pelas leituras espíritas efetuadas e consignei-lhes a influência que recebera sem perceber, já que o objetivo era o de aprender espiritismo.; não o de aprender a redigir. Fui um pouco além e estabeleci forte correlação entre elas e minha maneira de pensar, principalmente depois de me sentir no etéreo.
Concluí que o fenômeno da fixação não tinha apenas seu lado negativo, pois me favorecera sobremaneira na compreensão das explicações que vinha recebendo em aula. Temi estar sendo por demais prolixo e voltei a pensar em meu sobrinho, agora bem menos azedo e prevenido.
Finalmente, despertei para a sensação de temor que se instalara durante a projeção da terceira fita, definindo toda a extensão dos problemas que se transferiram das minhas preocupações comigo mesmo para a figura bondosa do Júnior, concluindo que as cinco reencarnações propostas não seriam suficientes para me conduzir à próxima esfera.
Consegui dormir e descansar, levantando na manhã seguinte ávido por receber as lições que se conteriam na próxima oferta de volver ao plano material em boas condições físicas e mentais.



31. A QUARTA FITA

Iniciada a apresentação do vídeo, apareceu a imagem de um dos mentores da administração superior da colônia, o qual expôs que não se daria identificação aos progenitores. Disse que seriam passadas cenas de arquivo, onde pessoas com as fisionomias devidamente veladas estariam sofrendo violência de vários tipos.
De fato, logo nos deparamos com episódios da vida real, verdadeiro roteiro jornalístico em que presenciamos estupros, incestos, abortos, falta de assistência pré-natal, partos dificultosos, consumo de drogas, em ambientes miseráveis, sempre envolvendo mocinhas de, no máximo, quinze anos de idade.
Voltou o instrutor para explicar que a concepção não poderia ser planejada nem o roteiro de vida assegurado, podendo ocorrer com o espírito encarnante qualquer destino, conforme o desenrolar dos acontecimentos e o poder de intervenção dos protetores. E encerrou a curta exibição.
Epaminondas avaliou o espanto dos discípulos pelo silêncio que se fez na sala:
— Não se preocupem por nosso irmão Antônio, que não deve ter ficado emocionado com a crueza do que nos foi mostrado, já que exerceu a profissão de enfermeiro, tendo acudido centenas de mulheres com os mesmos males.
Fiz um gesto para uma observação, mas o mestre me pediu que esperasse, prosseguindo:
— Sei que a condição de quem presta assistência difere totalmente da de quem possui a convicção de que haverá terríveis transtornos físicos e emocionais a vencer, em encarnação de alto risco. Contudo, para não discorrer ex cathedra, vou passar a palavra ao interessado, para que nos forneça alguma pista de como sentiu a proposta.
— A proposta, devo confessar, não me atraiu, como também não deve ter acendido o desejo de reencarnar de nenhum dos presentes. O que preciso dizer-lhes é que, esta noite, estive meditando a respeito dos casais que me foram indicados como pais, extraindo, tolamente, como observo agora, a conclusão de que mereceria voltar a freqüentar a classe média, com toda a segurança da instituição do matrimônio, além da benquerença familiar. A oferta de hoje foge do padrão, o que me obriga a reformular todo o meu conhecimento sobre os planejamentos de vida, uma vez que vinha acreditando que, havendo os indivíduos progredido no sentido da absorção dos valores morais absolutos, não mais seriam requisitados para encarnações de tão graves e profundas provações. O que não entendo, de princípio, é como poderei ajudar com minha experiência a pessoas que se deixam submergir em flagelos sociais causados pela ignorância. Por outro lado, também não atino com o ganho espiritual que terá quem se submeter a semelhantes condições de inferioridade social, psíquica, moral, física, em suma, humana.
A classe manteve-se silenciosa, como que aguardando a resposta do professor. Este, entretanto, passou-nos tal responsabilidade:
— Vocês poderão expor quaisquer dúvidas ou sentimentos de temor quanto a terem desrespeitados os direitos que adquiriram pelos sacrifícios que fizeram. De fato, a condição de vida apresentada é trágica, mas devem recordar-se de que o vídeo nos deu a testemunhar acontecimentos da realidade do orbe. Logo, inquiram de seus corações se não é melhor que criaturas em boas condições espirituais aceitem participar dos tristes eventos, com o objetivo de poupar certos seres infelizes de regresso cheio de ira e de incompreensão.
Uma das companheiras ousou interpretar um dos aspectos envolvidos pelo tema:
— Temo que a orientação geral das fitas vise a atender a pessoa de histórico masculino. Se não fosse assim, não se restringiria a apresentar episódios em que as moças se encontram perante acontecimentos trágicos, fatídicos, desumanos. No caso que estou supondo, o autor da projeção iria dar continuidade, acrescentando à película algumas histórias relativas a essas mães, apresentando-as em luta contra a adversidade, podendo, inclusive, haver o caso de algumas vencerem, criando filhos saudáveis, com amor e carinho. Neste caso, estou respondendo ao nosso Antônio quanto à perquirição de como poderia ser ajudado, porquanto os laços afetivos se estreitarão e ele adquirirá mais alguém com quem partilhar a existência. Por outro lado, é justo esperar que, sobrevivendo a criança e estando diante de pessoas carentes no aspecto espiritual, encontre meios de revelar a verdade, desde que sua intelectualidade seja preservada, caminhando livremente pela senda do bem, deixando-se atrair por algum centro espírita, desenvolvendo a mediunidade, alcançando o que tanto deseja, isto é, tornar-se médium escrevente ou curador.
Falou-se, em seguida, a respeito de pessimismo e de otimismo, de confiança e de fé na misericórdia divina, mas permaneci alheado, reproduzindo os argumentos da colega, buscando analisar todos os fatores psíquicos que me levavam a fracionar as idéias e as intenções, haja vista que ainda não me convencera de que aquela era oferta para ser posta em prática. Tudo aquilo se me configurava como mero exercício escolar. Mal ouvi a prece de encerramento, acordando para a realidade da hora quando os colegas me abraçaram, encorajando-me a enfrentar qualquer destino material que me fosse traçado.



32. VASOS COMUNICANTES

Quase não dormi. Fiquei revirando as palavras da colega que advertira para o fato de estarmos preparando-nos para uma encarnação masculina. O primeiro assalto emocional que sofri foi a constatação de que minhas recordações das vidas passadas não incluíam nenhuma na qualidade de mulher. No entanto, isto mais me parecia falha da memória.
De fato, verifiquei que havia diversas lacunas no tempo computado pela cronologia humana. Eram como que vazios na linha da existência. Logo imaginei que a psique ligada à derradeira encarnação é que me prejudicara uma integral tomada de consciência da personalidade.
Roguei silenciosamente que meus amigos me proporcionassem, ao menos, a revelação da última encarnação feminina, sabendo que poderia perder a compostura perante as acusações frementes que empreendi contra as mulheres, caso as aplicasse a mim mesmo.
Despertei para a dolorosa lembrança da morte que sofri em leito hospitalar, abandonada prostituta, vitimada por doença venérea não tratada. Caminhei para trás, passando pelas várias etapas, sem me deter nos detalhes, porém, caracterizando os dramas pessoais de relacionamento, vendo-me sempre impedida de dar solução adequadamente moral aos episódios que exigiam decisão.
Não busquei imprimir aos fatos meus valores atuais. Tentei compreender-me à luz das situações em que me vi envolvida, contudo, não pude deixar de lastimar profundamente haver abandonado os filhos ainda crianças, bem como vim a descobrir que o fizera também ao lar paterno.
Situei a encarnação de modo correto, percebendo que ocorrera antes das três últimas. Está claro que me concentrei nas conseqüências quanto às compleições física e psicológica da vida seguinte.
Antes não atinara direito por que razão agira contra as mulheres com tamanha fúria, tanto que, misógino na derradeira vida, não dei oportunidade a que nenhuma mulher se oferecesse para constituir família. Por outro lado, percebi, meio ressabiado, que me instalara com muita facilidade entre as prostitutas, lembrança talvez da necessidade de sublimar a passagem oculta. Explicava-se o fato de não me considerar casto.
Evidentemente, todas as reflexões se deram ao calor das flutuações emocionais. A revelação me perturbou a ponto de determinar-me a solicitar que me encarnasse proximamente como mulher.
Estranhamente, imaginei-me matrona a cuidar de extensa prole, vestida, todavia, como camponesa medieval. Foi a maneira que meu intelecto encontrou de me desvendar outra vida feminina, esta absolutamente inócua para qualquer estremecimento de caráter moral. Assim que me dei conta de que se tratava de simples recordação, fiz questão de percorrer todos os mínimos pensamentos e intenções, sem sentir-me arrebatado por nenhum acontecimento menos digno. Era como se houvesse suplantado todas as barreiras que me haviam inspirado as ações tidas como deletérias, inclusive todos os arrebatamentos supersticiosos e todos os êxtases provocados pela religiosidade absorvida diretamente nas fantasias dos sacerdotes e seus acólitos.
O restante da noite, até dormir já quase ao alvorecer, fiquei a planejar uma vida proveitosa para muitos seres que daria à luz e a quem ensinaria as diretrizes da doutrina espírita.



33. A QUINTA FITA

Muitos companheiros se interessaram deveras pelas reflexões e lembranças que lhes relatei, a partir da experiência noturna. Todavia, Epaminondas não nos permitiu aprofundar os temas, explicando que demandariam um curso inteiro e não apenas aqueles minutos que antecediam a projeção do novo vídeo.
De fato, a exposição que se seguiu durou todo o tempo da aula, já que a proposta de encarnação se deu após longo estudo do Islamismo, havendo vasta descrição da região do Oriente Médio em que deverei habitar, caso aceite o convite.
Para não tornar demasiado técnico este capítulo, devo resumir o conteúdo histórico e geográfico, referindo-me apenas às condições precárias do povo que me agasalharia. Entre outros tormentos, a população está vivendo pressionada pelas invasões constantes do território por parte de seu milenar inimigo, os israelitas.
O tempo todo me vi questionando o fato de não haver brecha possível para utilizar-me dos conhecimentos espíritas, ainda mais porque oferecida me foi a condição feminina.
De acordo com a hipótese noturna, iria ter todas as possibilidades de formar extensa prole, dedicando-me aos filhos com prioridade, sendo responsável por educá-los sob a luz do Alcorão. No entanto, pela revelação do entendimento social e político corrente no seio dos maometanos da região, dificilmente conseguiria dar-lhes o sentido do perdão, podendo perdê-los para o sacrifício da própria vida, por honra do patriotismo exacerbado.
Não me atraíram os progenitores nem suas pungentes providências para manterem a filha sadia e trabalhadora. Concentrei-me nas dificuldades da maternidade em meio tão diferente daqueles a me habituara nas derradeiras encarnações no Brasil.
Devo dizer que ninguém entendeu a razão de semelhante oportunidade de renascimento. Ao final da projeção, o silêncio da turma demonstrava certa ansiedade pelas explicações do professor.
Epaminondas não se fez de rogado e estendeu-se de maneira até bastante confusa para os emocionados alunos:
— Meus caros, sinto-lhes a vontade de saber como poderá um indivíduo educado no espiritismo atuar com proveito para outros seres e também para o próprio desenvolvimento espiritual, transferindo-se para sociedade em que as prerrogativas do sacerdócio incluem a dominação total da psique dos indivíduos. Poderia responder-lhes, de novo, afiançando que, melhor do que fanáticos dessa fé, pessoas de índole propensa ao perdão e à liberdade de pensamento atuarão de forma a não perpetuar o sentimento de vingança. Mas não creio que seja esse o objetivo dos protetores. De preferência, eles devem estar planejando algo mais contundente do que meras referências às virtudes cristãs provindas de apagado membro da sociedade. Penso que nosso Toninho irá ser de maior utilidade após desencarnar, quando, à vista de seus sentimentos e de seu trabalho em prol das criaturas que regressarão ao etéreo sob a ilusão das promessas do profeta dos muçulmanos, poderá ganhar ascendência sobre muitos espíritos pelo respeito aos conhecimentos que irá demonstrar relativamente à erraticidade e às virtudes a serem desenvolvidas para a ascensão ao reino do Senhor. Sei que me objetarão com o fato de existirem protetores muito evoluídos que zelam pela orientação eficaz no sentido da revelação da verdade do além-túmulo. Ocorre que tais espíritos de luz necessitam de trabalhadores na seara, para semeadura e colheita dos bens espirituais, como todos estão a constatar diuturnamente no âmbito desta colônia, como ainda junto aos encarnados. Não se tratará pois de retrocesso, mas de considerável avanço, se entendermos que Toninho desempenhará funções de mestre e de pioneiro. Pensem sempre que Deus escreve certo até por linhas tortas e que sua misericórdia é infinita.
A pautar a opinião dos demais pela minha, preciso dizer que ninguém se deixou convencer inteiramente pelo arrazoado do mestre, especialmente porque não nos parecia que se expressara com inteira convicção. Teríamos de escrutar nossos sentimentos, para podermos configurar o alcance daquelas considerações.



34. COM MACIEL

Para quem não sabe, Maciel é o administrador mais importante da colônia. Foi com ele que conversei a respeito da oportunidade de reencarnação.
Analisada a quinta fita, estava na hora de voltarmos a conversar, para definirmos qual peregrinação me favoreceria mais.
Rapidamente, revi as ofertas, a principiar pelo casal de músicos, passando pelos anões, pelos espíritas, pelos miseráveis, chegando aos muçulmanos.
Quando fui admitido à presença de Maciel, tive a impressão de que todas as vibrações do meu inconsciente, mesmo as mais sutis, haviam sido captadas pelo orientador, tanto que ele observou:
— Queridíssimo Antônio, percebo que você ainda não se determinou a reencarnar. Pelo visto, as ofertas lhe causaram muito desconforto psíquico, a ponto de você vir muito temeroso para esta simples conversa. Reconheço que, para quem dedicou uma vida inteira aos trabalhos de assistência gratuita em algumas casas espíritas, apesar das limitações que impôs e que analisa como tais, as existências carnais de sentido sacrificial não têm atrativos.
Fiz menção de exprimir minha admiração por tão profundo conhecimento de minha personalidade, entretanto, Maciel fez-me um gesto e prosseguiu, sem solução de continuidade.
— Não se esqueça de que existe uma aura perispiritual onde se inscrevem os sentimentos. Seus colegas não conseguem decifrar-lhe os códigos, de sorte que ainda mantêm o mesmo ritmo de comunicação aprendidos no orbe terrestre. Nós da administração estamos habituados a tais leituras e o fazemos sempre para economia de tempo. Está claro que não nos interessam os aspectos menos educados, vamos dizer assim, de sorte que a gama das virtudes não há de produzir constrangimentos. No seu caso, o que mais o perturba é a incerteza de que produzirá um trabalho proveitoso. Sendo assim, enviei a Epaminondas uma ordem de serviço para introduzir no currículo da classe alguns tópicos para reflexão e deliberação. Estou atento para suas interrogações íntimas relativas a cada encarnação proposta. Pois posso revelar-lhe que, se você viesse a ser filho do casal de músicos, iria constituir-se em sério empecilho para... Complete, por favor.
— Iria perturbar-lhes a certeza de que a vida lhes favorecera com a habilidade de que são possuidores. Por certo, teriam de enfrentar questões íntimas relacionadas com as heranças genéticas e com a necessidade de dar oportunidades outras ao filho que não as de virtuose.
— Isto lhe parece bom ou mau?
— Pelo histórico de vida de ambos, quer parecer-me que deverão sofrer algum percalço dessa espécie, o que me faz acreditar que o espírito que receberão na família lhes provocará as mesmas reações.
— Algo mais?
— Penso que os protetores de ambos terão de concordar com a provação e que eles mesmos deverão ser consultados em estado sonambúlico. Afinal de contas, de que vale o instituto do livre-arbítrio, se as pessoas de bom nível moral se vêem impedidas de aplicá-lo?
— Essa é a idéia que eu gostaria que você ouvisse da própria boca. Não seria esse o resumo de todas as formulações de vida contidas nas demais fitas?
Sem precipitar-me, dada a serena disposição de espírito que o mestre irradiava, revi-me na condição de inferioridade das demais encarnações e respondi:
— Pelo que conheço da maiêutica socrática, posso afiançar-lhe que o senhor conseguiu extrair de mim um conceito geral do objeto em exame. Verdadeiramente, preciso admitir que me acho em condições de oferecer auxílio espiritual a grupos mais numerosos do que os das famílias que me apresentaram. Mesmo quanto aos muçulmanos, que me situariam, pela explicação de Epaminondas, como futura professora ou mentora, faço restrição quanto à demora significativa até colocar-me naquela posição, se alcançar tal proeza. Parece-me que estou apto a oferecer ajuda mais rapidamente, pelo menos no sentido do despertar para as teses espíritas apoiadas na obra de Kardec.
Maciel me deu um forte abraço e um conselho:
— Preste bastante atenção às palavras de seu professor e amigo Epaminondas. Ele lhe traçará, como assim à classe toda, um roteiro diferente, propício para satisfazer a todos. Fique com Deus!
Saí da entrevista completamente feliz. Foi só então que medi a aflição íntima a que me levaram as propostas.



35. COM EPAMINONDAS

Apesar de estar ciente de que as recomendações de Maciel se referiam à programação do curso, ainda assim procurei Epaminondas para obter dele uma prévia das observações que faria em aula.
Recebeu-me com alegria e me pôs à vontade para perguntar-lhe o que quisesse.
Iniciei pela dúvida que me assaltara quanto a Maciel já estar a par dos meus sentimentos relativos à reencarnação.
Respondeu-me:
— Maciel não possui as qualidades da onisciência, da onipotência ou da onipresença. Para ele é mais fácil ler os relatórios que os instrutores registram relativamente às aulas e aos discípulos.
— Quer dizer que o meu querido professor insere na minha pasta tudo quanto manifesto em aula?
— Nem preciso. Quando disse que os instrutores registram, entenda que se trata de processo meramente mecânico, já que as salas estão dotadas de aparelhos de medição da sensibilidade de todos, além, é claro, de captar, através de vídeo e de áudio, tudo o que ali se dê.
— Eis aí a mais completa invasão de privacidade...
— Quem realiza a matrícula, se você está lembrado, aceita na íntegra todos os procedimentos aprovados pela instituição e que constam do regimento interno. Não há nada de novo nisso.
— E quanto à leitura de minha aura, é certo que só se interessam os instrutores pelas demonstrações de caráter positivo, quedando os nossos defeitos, vícios e males escondidos?
— É verdade mas são relativamente poucos os companheiros com tal habilidade. Eu mesmo consigo enxergar somente vibrações muito fortes, como as que são estimuladas por ocorrências de certa gravidade.
— Como está a minha aura agora?
— Normal. Vejo que você está muito tranqüilo, desejoso muito mais de aprender do que de questionar as atitudes dos mestres. Se estiver enganado, avise-me, pois preciso aperfeiçoar-me nesse sentido.
— Está certíssimo. Saí da entrevista com Maciel nas nuvens, ciente de que nenhuma transformação curricular poderia causar-me rebuliços emocionais. E eu, estou certo?
— Quer que lhe antecipe as novidades?
— Se não for nenhum incômodo...
— E se lhe passasse tal ponto como se fosse um exercício, dando-lhe azo a reflexionar a respeito do que pode estar aguardando por você e por seus colegas?...
— Pode ser.
— Qual seria a medida mais esperada relativamente a uma turma que já ditou um texto para os mortais?
— Que escrevêssemos outra obra, dando conta das discussões e conclusões objetivas ou não, mas sempre demonstrando aos encarnados quais são as preocupações dos espíritos em vias de adquirir novos conhecimentos em todos os campos do saber.
— A minha questão segue nesse mesmo rumo: se vocês fossem escrever um texto a ser mediunizado, a quais tópicos dariam relevância em função do proveito deles. E se fosse você a restaurar todo o processo de captura dos valores estabelecidos nas derradeiras peregrinações terrenas, que tratamento daria à narrativa? Será que preferiria descrever suas reações psíquicas? Daria prioridade aos desenvolvimentos dissertativos? Não se esqueça de que tais inquirições serão feitas a todos os seus colegas.
Não sei se cometi algum ato de indelicadeza, mas a verdade é que me surpreendi sozinho no meu aposento, sem lembrança alguma do que ocorreu após as observações de Epaminondas.



36. O ÚLTIMO ENCONTRO

A notícia que correu quando a classe se reuniu foi a de que cinco dos colegas haviam aceitado reencarnar-se nas condições propostas, tendo já partido para as providências necessárias.
Se ficara aliviado com saber que não iriam insistir comigo, intrigou-me o fato de que todos os colegas estavam sendo alvo do mesmo oferecimento. Tomara como extremamente pessoais as ofertas e agora descobria que não era o único a ser consultado. A pergunta que me assaltou se constituiu em verdadeiro martírio, dado que a resposta dependeria de explicação do professor:
— Tenho registrado um roteiro para formar obra a ser encaminhada aos encarnados. Professor Epaminondas, o senhor poderia esclarecer a turma quanto às atividades de todos no mesmo sentido?
Não fui eu quem levantou a lebre, contudo a questão pareceu-me conter a resposta que desejava.
De qualquer forma, Epaminondas observou:
— Esse era o objetivo formal do currículo desta classe. Se vocês não atinaram antes com ele, é porque estavam concentrados em si mesmos e na responsabilidade que sentiam quanto a anunciar novidades aos amigos do orbe. Tínhamos em vista levar o grupo todo a repensar as possibilidades de rearranjar os tópicos espíritas à luz dos elementos evangélicos envolvidos na aquisição das virtudes. Não queríamos favorecer ideais de escritores mas a sólida determinação de aplicação das lições em favor da humanidade, tanto que não nos ativemos aos aspectos meramente literários de suas produções. Maciel agora nos adverte para a possibilidade de imprimirmos veracidade aos textos individuais, executando algumas reformulações e estimulando o desejo de auxiliar os humanos a partir da experiência de todos, quer por meio de ditado psicográfico, quer através de informações de cunho intuitivo, principalmente nas manifestações mediúnicas psicofônicas. Certamente, todos serão consultados quanto a terem seus trabalhos divulgados, entretanto, é preciso saber que apenas dois ou três merecerão o privilégio, tendo em vista serem semelhantes, já que os temas são os mesmos. Vou deixá-los à vontade, até que, após tomarem conhecimento de todas as composições, escolham as que julgarem as mais representativas dos trabalhos da classe. Depois disso, passarão a formar em outras turmas, cada qual aplicando seu livre-arbítrio na determinação dos cursos. Este será seu derradeiro encontro como grupo de alunos. Não é verdade que há vários anos estão juntos? Voltarei para referendar as escolhas, quando estabelecerei quais os elementos irão constituir os grupos que irão ou ditar o texto ou produzir as mensagens “ao vivo”.
A turma se deixou seduzir pela facécia e também pela perspectiva de novos amigos e colegas. Em breve, tínhamos ouvido e estudado todos os trabalhos individuais, tendo o meu recebido a unanimidade dos votos. Fiz questão de ressaltar as falhas que sentia nas minhas composições e os méritos alheios, mas precisei ceder à evidência de que a publicação de meu texto era o que mais me parecia apropriado para cumprir o que requerera a Maciel, ou seja, a possibilidade de não agir a varejo mas por atacado.
Quando Epaminondas voltou, expressou-se assim:
— Quem nos garante que uma obra escrita alcançará cumprir os objetivos de divulgação da teoria e da prática espíritas entre os mortais, melhor do que a cansativa repetição para as poucas pessoas que comparecem às reuniões mediúnicas? Só vamos cobrir esse aspecto porque está entre os objetivos da turma. Estou parecendo pessimista? Pois não se iludam com o proveito que se possa extrair de uma obra menor, bem longe daquelas cujas assinaturas repercutem nas mentes dos humanos como modelos de coerência e de sabedoria. No mínimo, a que selecionamos vai obrigar a exercícios de meditação a que nem todos estão afeiçoados. Vou encerrar sem despedidas, uma vez que todos ficaremos por aqui e teremos oportunidades diárias de encontros de estudos ou de recreação. Boa sorte em suas novas iniciativas! Deus nos ajude e nos ampare com suas bênçãos de amor!



37. PÁGINA FINAL

Esta mensagem não tem outro objetivo senão o de revelar que o nosso Toninho não esperou sequer terminar o processo de transposição de seu texto para o médium. Deixou tudo preparado, passado a limpo e anotado, tendo partido para novas aventuras em campo gravitacional superior ao nosso.
A convite de Maciel, preencheu os requisitos de harmonia e paz interior, superou as dificuldades relativas aos antigos desafetos, criados mais por ele do que existentes na realidade, sublimou todos os males que lhe pareciam insanáveis sem nova encarnação na Terra e despachou-se de mala e cuia para paragens por nós desconhecidas.
Deixou saudade? Muito pouca. Era pessoa de forte atividade mas de pouquíssimas palavras, resultado talvez dos derradeiros anos sob influência do mal que lhe atacou o cérebro.
Levou consigo, contudo, a certeza de que irá auxiliar a muitos encarnados através do roteiro de comunicações que serão lidas e analisadas com atenção, dado que contêm reflexões muito sagazes e honestas.
Por outro lado, passados alguns dias de sua partida, remeteu-nos vibrações de muita alegria, havendo reencontrado velhos parceiros de existência, os quais se outorgaram os títulos de protetores e iniciadores no traquejo de seu novo corpo espiritual, bem como no domínio dos conhecimentos necessários para bem se haver no campo energético em que se instalou.
Revelou-nos que passou por algumas ligeiras crises de consciência antes de se adaptar ao novo ambiente, nada que significasse sofrimento. Disse-nos que se sentiu espicaçado a suplantar as dificuldades, para o que obteve dos companheiros total apoio.
Achamos natural que nos tenha informado a respeito de sua condição, tendo em vista que poderíamos deixar um vácuo no texto que nos legou. Valha-nos sua inteligência e seu incomparável discernimento.
Para encerrar, apenas uma observação antecipada da conclusão dos amáveis leitores: nós também temos a impressão de que todos os seres que se despedem se tornam bons, impolutos e santos, principalmente se se elevaram aos píncaros das virtudes através da sabedoria doutrinária espírita.
Fiquem com Deus!

Corpo de redatores do Grupo das Tentativas Válidas.


FIM


Indaiatuba, de 8 de novembro de 2001 a 9 de janeiro de 2002.
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