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Erotico-->A RECONSTRUÇÃO -- 21/02/2005 - 01:53 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER

A RECONSTRUÇÃO



Grupo dos Jovens Itinerantes

Professor Armando


Edição da CASA DO MÉDIUM

Rua Cinco de Julho, 1184
Indaiatuba — SP



ÍNDICE

Abrindo a porta ..........................................
1. A reunião ................................................
2. A tempestade .............................................
3. Reflexões ................................................
4. Do outro lado da cidade ..................................
5. Agonia e morte ...........................................
6. Retomando a vida .........................................
7. Flashes de um dia triste .................................
8. A tragédia de Dario ......................................
9. Decisões em família ......................................
10. Agitação no etéreo .......................................
11. Confissões de Verônica ...................................
12. O derredor errático ......................................
13. Adolfo mobiliza-se .......................................
14. Arlete assume o comando ..................................
15. Vigilância conturbada ....................................
16. Verônica reage ...........................................
17. Uma noite cheia ..........................................
18. Atos reflexos ............................................
19. Terra de ninguém .........................................
20. Um encontro de almas .....................................
21. Caminhos que se afastam ..................................
22. Caminhos que se unem .....................................
23. Os campos se vestem de cores .............................
24. O grupo se reúne de novo .................................
Fechando a porta .........................................



ABRINDO A PORTA

Sustentamos a tese de que os trabalhos mediúnicos são o auge do relacionamento entre as esferas contíguas em que demoram os vivos e os espíritos errantes. Claro está que existem seres, nos dois ambientes, de todos os graus evolutivos, de forma que nem sempre estes contatos constituem a pura expressão da verdade moral, ou seja, os leitores muitíssimas vezes têm de considerar a hipótese de aplicar seu intelecto e seus conhecimentos para deslindar o nível de honestidade da informação, caso contrário, correrá sérios riscos de ser ludibriado. Mesmo assim, contudo, até quando a pobreza das mensagens transmitidas for flagrante, os encarnados poderão tirar proveito das comunicações, analisando como se dá a transformação da verdade em mentira e o que tal fato acarreta, em termos de sacrifício e de desgosto, para o espírito desejoso de mistificar.
Este preâmbulo, por exemplo, poderia ter sido levado aos irmãos na Terra com o intuito de disfarçar as intenções de se encherem muitas páginas com informações dadas na qualidade de revelações pessoais, científicas, sociais, históricas, de todo tipo, enfim, mas elaboradas em plena maldade de coração, com o intuito de reverter os processos de aquisição dos valores espíritas consignados na doutrina codificada por Kardec.
Quem teria o descaramento de efetuar um apanhado de maravilhosas acusações de sutilezas intelectuais, para, em seguida, arreliar todos os princípios que se subentendem no arcabouço dos dizeres? Qualquer espírito malfazejo que tivesse à mão um médium despreparado, afoito, orgulhoso, cheio de si pela possibilidade de escrevinhar fórmulas lingüísticas segundo padrões de cultura superior, mas que não se desse ao trabalho de esquadrinhar os pensamentos, a ver se afloram evidências de ínclito saber ou de rútilas manipulações de efeito meramente pirotécnico.
Eis que apontamos, realizando um parágrafo adequado, como é que agem em consonância os espíritos infelizes que têm à mão instrumental de primeira, sem vigilância e sem oração.
Trouxemos à baila agora conceitos expressivos na área dos conhecimentos práticos do espiritismo mais corriqueiro entre os que freqüentam os centros espíritas. Haveria a possibilidade de espíritos sagazes se apropriarem dos conhecimentos específicos dos médiuns estudiosos e aplicados, transformando-os em armas subliminares para incrustar, aqui e ali, suas prerrogativas de espíritos que se comunicam, inserindo no próprio universo moral e doutrinário do encarnado uma série de falcatruas destinadas a apanharem os desprecavidos e também os que estimam as lantejoulas em detrimento da função essencial de agasalhar da vestimenta?
Pelo desenvolvimento deste escorço inicial, parece que deixamos evidente que todos os males, que todas as malícias, que todos os engodos são possíveis de acontecer neste relacionamento entre as esferas. Em outras palavras: vale sempre a advertência de Kardec de que tudo o que provém das fontes mediúnicas deve ser filtrado antes de ser sorvido.; mais ainda, quando o efeito parece conformar-se mui precisamente com os textos que se registam nas obras básicas, com ligeiros adendos consignados como informações úteis a serem acrescidas ao cabedal de conhecimentos ali arquivados.
Por exemplo, se dissermos que até certas anotações do codificador merecem revisão, como reagirá o leitor que conseguiu deslindar os nossos argumentos até aqui? Irá, simplesmente, rejeitar a assertiva, fechando o livro? Irá aguardar que desenvolvamos as nossas idéias e sugestões, trazendo razões que possam estabelecer uma convicção a favor de nossa tese? Irá fazer uma lista de pontos com os quais não vem concordando em seus estudos, para verificar se se constituem nos mesmos tópicos que iremos apontar? Que atitude seria a mais racional e a mais francamente padronizada pelas recomendações do bom senso, conforme seu alcance, dentro de sua perspectiva cultural e de sua característica de personalidade?
Eis que abrimos a porta para adentrar o sagrado recinto da consciência espírita, nós deste grupo formado entre os alunos de primeiras letras da Escolinha de Evangelização, grupo que resolveu atribuir-se o nome de Jovens Itinerantes, porque pretendemos caminhar pelas sendas escabrosas dos elementos que aspiram a um progresso rápido demais, sem o ônus do trabalho e da reparação.
Nosso orientador, o Professor Armando, deseja que sejamos felizes mas nos avisa que, antes de encerrarmos a transferência para o mundo dos viventes de nossos projetos literários (ele utiliza esta palavra com extremo cuidado, ressaltando que precisaremos preocupar-nos menos com o efeito e muito mais com a sedimentação dos conhecimentos), teremos de agir com prudência e moderação, com paciência e descortino relativo à capacidade média do leitor das obras mediúnicas.
A nossa introdução peca ainda pela intempestiva necessidade de firmar os preceitos básicos de nosso ditado. Mas garantimos que, a partir da próxima reunião, as coisas tenderão a andar de maneira bem mais suave e acessível a todas as inteligências.
“Senhor, que esta breve oração tenha o condão de abrir a porta dos sentimentos de nossos irmãos, a ponto de lhes dar consistência para começarem a prestar atenção nos mensageiros que se dirigem ao Criador, a Jesus e aos espíritos superiores, rogando por luz e por amor, crentes de que, ao menos, seremos auxiliados para a compreensão de que a modéstia e a humildade são as virtudes principais dos que pretendem influenciar nas decisões dos que não se firmam ainda nos preceitos evangélicos.”



1. A REUNIÃO

— Que é Deus? Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.
Reinaldo leu a pergunta e a resposta sem fazer nenhum comentário: queria ver se os alunos do curso inicial de filosofia espiritualista seriam capazes de deglutir a excelsa questão da humanidade.
Estavam reunidas oito pessoas, além do preceptor. Vinham pela primeira vez estudar juntos, após terem sido selecionadas através de uma entrevista em que se media, mais ou menos, o despertar intelectual e o interesse, que o pessoal do centro espírita não desejava perder tempo com alunos situados fora da classe mais adequada para cada um.
Reinaldo não precisou espicaçar a vontade deles, pois logo foi sendo abalroado pela investida de Adolfo:
— Disseram, na palestra preparatória, que devemos procurar entender os pontos de estudo e que a gente tem de perguntar sempre que surge uma dúvida. Pois bem, professor, a pergunta que Kardec fez e a resposta dos espíritos me parecem muito difíceis. Será que Deus é só uma inteligência? Como pode uma inteligência ser causa de alguma coisa?
Reinaldo levou a questão à turma:
— Alguém quer arriscar uma resposta?
Edna, uma senhora bem arrumada mas discretamente maquilada, levantou a mão. A um gesto do coordenador, arriscou:
— Eu acho...
Imediatamente, Adolfo, de modo atabalhoado, levantou o braço, desejoso de intervir.
A senhora cedeu-lhe a vez com bom humor:
— Mas eu mal abri a boca!
— Acontece, disse o beligerante colega, que a expressão “eu acho” me causa ojeriza. Tem-se a impressão de que a pessoa está falando para preencher o tempo. Quem tem certeza das coisas, vai logo afirmando.
Reinaldo concordou com ele:
— O achismo, como a gente está acostumado a dizer, é uma praga mental. No entanto, eu vejo nessa expressão também um modo de introduzir um tema com o devido cuidado para não ofender a convicção firmada de nenhuma pessoa presente. Na verdade, o nosso tempo está medido e seria bom que todos se manifestassem de modo positivo, porque o estudo integral de O Livro dos Espíritos constitui um primeiro passo muitíssimo importante para quem deseja entender a doutrina espírita. No entanto, é preciso avançar com segurança, com a certeza de que cada conceito está sendo entendido e assimilado. Podem estar certos de que o exame final se dará no âmbito da consciência de cada um e que só não irá para a turma mais adiantada quem se sentir inseguro e pedir para estudar mais uma vez a mesma obra.
Lá estava Adolfo de novo solicitando a palavra:
— Não pensem, prezados amigos, que eu irei insistir sobre tópicos alheios ao nosso objetivo. Mas, como eu estou vendo que começamos pelas perguntas e respostas, deixando a introdução para trás, preciso saber se iremos, mais adiante, voltar ao início da obra, ou se essa parte, por não ser tão importante, será deixada como lição de casa.
Reinaldo foi lacônico:
— A critério da turma, na hora certa, eu levantarei o problema e vocês decidirão. Enquanto isso, todos são livres de preparar os tópicos do programa em casa, incluindo pesquisa completa de vocabulário, caso tenham tempo para isso.
Adolfo fez sinal que estava satisfeito e todos voltaram-se para Edna, que principiou:
— Eu já não estou achando mais nada. De acordo com meus conhecimentos, a palavra inteligência aplicada ao conceito de Deus é um subterfúgio da mente humana para valorizar ao máximo o que existe de mais característico no homem comparado a todos os outros seres conhecidos da criação. É através da inteligência que a humanidade tem progredido, adaptando-se a todas as situações e circunstâncias que vão constituindo-se em desafios à criatividade. Eu aprendi, nas aulas de catecismo, que Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra. Os espíritos que responderam a Kardec, evidentemente, fugiram do problema de conceituar Deus através de um termo que se aplicava a eles. Criados que fossem à imagem e semelhança de Deus, seria por demais ousado e, talvez (como direi?) ofensivo, atribuir uma propriedade da criatura ao Criador. Dizendo que Deus é a inteligência suprema, a inteligência soberana, mantiveram o vínculo primitivo da origem, vínculo decorrente da vontade do Pai e não do desejo, ainda que absolutamente honesto, dos filhos. Existe ainda o fato de se atribuir a especificidade de causa primária, inicial, primacial, primeira, enfim, ao conceito de Deus, em absoluto paralelo com a noção de criador do céu e da terra, que assinalei quando falei do catecismo, e que se deve, presumivelmente, atribuir à necessidade de estabelecer o vínculo entre o ser que existe em quem pergunta e o sentido, impregnado nesse mesmo ser, de sua personalidade ansiosa por consignar a importância de sua pessoa, perante a máxima grandeza que transcende a todos os paradigmas de caráter material, dado que, em confronto com o todo universal, a figura humana, e de qualquer outra espécie com o poder de individualidade, se reduz a uma coisa tão diminuta, no tempo e no espaço, que geraria, para quem não se sente uma criatura de Deus, um desespero que redundaria no nihil mais pernicioso para a estabilidade emocional, com danosas conseqüências para a sociedade humana.
Fez-se profundo silêncio na pequena sala sem adereços. Nem os dedos batiam sobre a mesa, onde repousavam os livros de cada estudante. Todos os olhares estavam voltados para a amiga que se manifestara e que mantinha a fisionomia absolutamente serena, retribuindo com simpatia a todas as expressões de admiração.
Adolfo mexeu-se na cadeira, finalmente, indicando que talvez pudesse efetivar alguma observação. Reinaldo percebeu e cedeu-lhe a vez:
— Há algo que o nosso confrade gostaria de esclarecer?
— Certamente. Eu preciso perguntar à Edna, se me permite a intimidade...
— Claro, Adolfo, vá em frente.
— Então me diga se, depois de tantas considerações judiciosas, você concorda ou discorda da definição aceita por Kardec, tanto que ele registrou essa e não outra qualquer. Apenas um ligeiro comentário: eu achei que sua exposição se voltou para uma aceitação pacífica mas não passiva, ou seja, você deu abertura para a possibilidade de uma outra formulação para o conceito de Deus. Ou estarei enganado?
— Não está, não. Quando eu disse que é do interesse dos homens entender, na medida de sua capacidade, o que é ou quem é, conforme a postura que se deseje adotar, aquele ser, aquele espírito ou aquela inteligência suprema que lhe deu origem, que as palavras aqui eu as estou jogando meio aleatoriamente, também me referia à perspectiva cultural de quem está estabelecendo os padrões para a referida definição. Sabemos que os indígenas, só para dar um exemplo, enquanto não decifraram cientificamente todo o processo material das trovoadas, adotaram como ser superior, vamos dizer assim, um totem a que precisavam honrar, respeitar, homenagear e adorar, às vezes oferecendo sacrifícios incruentos e outras, cruentos. Mas vamos supor que esteja certo João, o Evangelista, quando afirmava que Deus é amor. Ora, a razão está para o amor, assim como a inteligência está para a sensibilidade. Então, se os espíritos tivessem respondido a Kardec que Deus é a sensibilidade suprema, causa primária de todas as coisas, nós teríamos uma outra definição plausível, se considerarmos que dessa sensibilidade absoluta nasceram todos os sentimentos e emoções da maior pureza, que é como temos a possibilidade de encarar tudo quanto existe na natureza ou no universo, não buscando compreender, mas buscando exaurir as nossas emoções superiores na contemplação mística dos poetas inspirados. Fiz questão de estabelecer um paralelo entre razão e emoção, entre intelectualidade e sentimento, porque são as duas correntes do pensamento que, século a século, historicamente, vem impondo-se à humanidade, como reflexo de sua postura perante o mundo. Terei respondido à sua questão?
— Não totalmente. Do modo que dirigiu os seus raciocínios, dá a entender que, provindo dos espíritos e sendo o produto de superior elaboração filosófica, qualquer coisa que dissessem, tão taxativamente quanto a que consignou o Codificador, seria do mesmo modo acatada, respeitada e desenvolvida. Por exemplo, a resposta poderia eleger as duas posições citadas por você: Deus é a inteligência e a sensibilidade supremas, causa primária de todas as coisas. Em termos modernos, Deus seria plural, sendo uno e apresentando todos os atributos que lhe reconhecemos. Então, eu pergunto diretamente: você adotou o conceito de Deus aqui registrado?
E Adolfo apontava para a página aberta do livro.
Reinaldo estava meio boquiaberto com o rumo das considerações, mas não perdeu a oportunidade do suspense, para solicitar aos demais:
— Vocês todos devem estar perguntando-se se cabe levantar uma hipótese qualquer que substitua a definição dada a Kardec. Então, de si para consigo mesmos, respondam à pergunta de Adolfo como se dirigida tivesse sido a cada um. Depois eu vou pedir que se manifestem. Vamos ouvir agora a nossa Edna.
Edna respirou profundamente, como a rogar inspiração espiritual, e respondeu:
— Eu estou adotando esta definição e continuarei adotando-a, enquanto me mantiver neste patamar terreno. Como eu sei que meu espírito se desprenderá da matéria e como eu não sei do que é ele capaz intelectualmente no etéreo ou na erraticidade, ou no umbral, ou no círculo ou esfera de luz ou de sombra em que serei recebida após a morte, não posso afirmar agora se meu entendimento se alargará ou se restringirá...
Falou e se arrependeu. Mas emendou a tempo:
— Eu sei que não existe retrocesso espiritual. Quando digo que meu entendimento pode restringir-se, eu não estou referindo-me ao meu espírito, mas às condições em que emergirei no ambiente desconhecido, que sempre poderá haver uma surpresa agradável ou desagradável, que o meu histórico de vida pode recomendar uma permanência mais ou menos longa nas plagas do sofrimento, até que tiver purgado os meus erros e outras maldades conscientes e inconscientes que tenho praticado. Para satisfazer ao meu amigo inquisidor, devo dizer que, dependendo do nível de compreensão dos seres, todos os conceitos e não apenas o relativo ao Pai terão obrigatoriamente de passar por reformulações. Por falar em Pai, qual é a definição de Deus oferecida por Jesus?
Reinaldo, contudo, atento para o fato de que os dois estavam açambarcando a sessão de estudos, fez questão de ouvir os demais em relação ao conceito de Deus:
— Fale você, Dario: o que pensa a respeito da definição de Deus dada pelos espíritos?
O senhor, mais velho de todos mas ainda com a mente atilada, limitou-se a atalhar:
— Eu vou seguindo os raciocínios da Edna. Sei que é difícil chegar a conclusões definitivas a respeito do que está acima e muito acima de nossa pequenez. Mas, por todo lugar por onde tenho andado, as pessoas não estão nem aí em conceituar o Senhor. Mesmo nas aulas de catecismo, tudo é dado para a garotada decorar e depois passa-se adiante, como uma lição aprendida. O padre e o pastor dão de barato que todo o mundo acredita na existência de Deus e, enquanto um exalta o sentido do perdão aos pecados, em caso de arrependimento, o outro ameaça com as chamas do inferno. E a vida vai sendo levada. Mas eu gostei das observações da nossa amiga e posso dizer que vou pensar a respeito, principalmente no sentido de captar a noção primordial de que Deus é único, o que estava impregnado no ensino de Jesus, porque era judeu. É o chamado monoteísmo judaico que se opunha às concepções vigentes naqueles tempos, nas outras raças, onde pululavam muitos deuses, inclusive entre os romanos, que, na época de Jesus, dominavam toda a Judéia e mantinham o povo hebreu mais ou menos sob seu tacão administrativo, econômico etc. Então, Jesus, respondendo à questão de Edna, segundo meu parecer, para não dizer eu acho, que aqui é proibido, Jesus não expressou categoricamente uma definição específica de Deus, mas, como eu disse antes, apregoou em suas parábolas que seu Pai que está nos céus, conforme ele dizia, conduzia o rebanho dos homens, como os pastores o fazem com suas ovelhas, o que originou, mais tarde, o apelido de Jesus de Cordeiro de Deus, tendo todo o cuidado, portanto, de resguardá-las do ataque dos inimigos, neste caso, os vícios, os defeitos da alma, que os da época, e até hoje muita gente, chamavam de pecados, existindo os mortais e os veniais, de acordo com a concepção católica. Infelizmente, eu não tenho o dom do resumo da nossa irmãzinha, mas posso dizer, enfeixando tudo, que é com todo o respeito que nós devemos falar no nome de Deus, jamais usando-o de forma leviana, como o povo diz: se Deus quiser, a toda a hora. No máximo, ao encerrar as preces, devemos dizer graças a Deus, que é, para quem não sabe, apenas uma fórmula de agradecer ao Pai que está no céu aquela mesma atenção e compreensão que Jesus nos demonstrou. Por outro lado, quando Kardec escreveu a resposta dos espíritos, com certeza, ele havia consultado os seus protetores, para confirmar a verdadeira definição, de modo que, suspeitar de que pudesse haver uma outra forma de responder, de acordo com o que eu penso, talvez seja tirar uma conclusão apenas com o objetivo de nos fazer pensar em que O Livro dos Espíritos contém, de forma clara e irretocável, toda a sabedoria de que necessitamos para realizar o nosso projeto de vida de conformidade com os padrões evangélicos superiores, como a gente percebe ao ler O Evangelho Segundo o Espiritismo, outra obra sagrada da doutrina, aquela que Kardec escreveu justamente para interpretar a palavra do Cristo, dando-lhe uma forma consentânea, quer dizer, de acordo com os ensinos dos espíritos superiores que o designaram, que o elegeram para ser o intérprete inteligente de suas lições. Eu peço perdão aos companheiros por falar tanto e sobre tantos temas, mas acredito que, com o desenvolvimento das aulas, tudo o que eu disse o grupo terá oportunidade de discutir e apreciar. Muito obrigado.
Reinaldo já estava preparando-se para passar a palavra a um outro, quando Adolfo se manifestou:
— Do jeito que você, Dario, está expondo, até parece que, definitivamente, não irá aceitar outro ponto de vista contrário ao seu. Eu acho, e me permito dizer assim, conforme a explicação de Reinaldo, que não proibiu a fórmula mas o procedimento achista, que cada coisa deve ser colocada de modo franco e leal. Se não concordou com o ponto de vista de Edna, não tem que dar tanta volta. Deve ir direto ao ponto: não gostei disso, por isto e mais aquilo. Assim sendo, eu gostaria que o amigo reformulasse seus dizeres, especificamente no que se refere à crítica à postura, talvez muito aberta mas muito inteligente, de nossa companheira.
Dario meneou a cabeça e disse apenas:
— Deixa para lá.
Mas foi a própria Edna quem colocou panos quentes:
— Eu tive oportunidade de preparar a lição em casa. Na minha cadeira de rodas, não tenho como sair para a folia dos cuidados dos filhos, das compras, dos passeios. Fico, então, entretida com os livros. Por isso, fui capaz de falar tanta coisa. Mas eu concordo que exagerei nas apreciações quanto ao mérito do conceito. Quem sou eu para aventar outra resposta?! Se o fiz, foi apenas para demonstrar, muito pedantescamente, que todos os que estudam, seja o que for, dentro ou fora da doutrina, devem oferecer o máximo de seus esforços para reestruturar as noções, tornando-as mais fáceis para seu nível de compreensão. Então, eu concordo plenamente com o deixa para lá do Dario, sem tornar sem efeito a observação muito judiciosa do Adolfo, que, longe de estar tentando provocar uma dissensão já no primeiro dia, está desejoso de firmar os princípios que deverão nortear as nossas discussões. Com certeza, Reinaldo irá estabelecer um controle mais rígido, fazendo-nos uma série de recomendações de caráter metodológico.
Reinaldo, chamado a intervir, apenas observou:
— Eu não saberia orientá-los melhor do que vocês estão saindo-se. O que é preciso é ouvir a todos, e estão faltando ainda cinco corujas, ou seja, os que até agora não falaram mas prestaram uma atenção!...
Mário, um dos calados, pediu a palavra:
— Não seja por isso, Reinaldo. Eis uma coruja transformada em papagaio.
O novo participante compreendera bem a necessidade de tornar o ambiente mais amistoso, que Adolfo havia forçado por demais a barra. Então, acrescentou, a um aceno do coordenador:
— Se bem entendi, nós temos de discutir os pontos colocados por Kardec ou pelos espíritos. Caso a gente discorde, tem de dizer o porquê, ou então vamos todos acabar não entendendo os pontos de vista. Muito bem. Eu não acho que a gente deva entrar no mérito da definição de Deus. De um modo ou de outro, cada qual tem a sua percepção intuitiva, de forma que, por mais que a gente pense a respeito, fica valendo aquele sentimento filial que nos ensinou Jesus, porque não vai ser cientificamente que nós vamos agradecer a vida, ou melhor, a existência, se não através das orações compungidas em que nos manifestamos absolutamente integrados na criação. Por isso é que qualquer definição quedaria bem, desde que aprovada pelos mentores espirituais de Kardec, que eram espíritos do mais elevado gabarito. Se tivessem dito outra coisa, nem por isso eu estaria discorrendo diferentemente. Quanto à imagem de Deus passada a nós por Jesus, ela é muito mais terna, muito mais poética e muito mais compreensível para nossos intelectos, quando imaginamos que Deus é puro amor e perdão e não chefe dos exércitos judeus contra seus inimigos, como era da tradição bíblica, conforme nós conhecemos mais ou menos. Eu li O Evangelho Segundo o Espiritismo e é ali que Kardec expõe melhor a visão que Jesus nos passa do Pai. Espero estar aqui com vocês todos quando a gente estiver estudando, passo a passo, todos os capítulos daqueloutra obra. Mas eu preciso colocar meu bedelho na discussão que se estava armando entre Adolfo e Dario. Por mim, Edna não tinha de intervir, nem Reinaldo, porque, entre gente tão civilizada, o circo jamais iria pegar fogo. No máximo, cada qual iria firmar seu próprio ponto de vista e, ao invés de dizerem: de acordo com os meus conhecimentos, passariam a falar: eu acho isto, eu acho aquilo, porque as idéias que não mudam terminam por fixar-se como verdadeiros conceitos, apesar de todo achismo que possa envolver. Sendo assim, chegados ao ponto que eu estou colocando, ficaria bem mais fácil para os demais apontarem o procedimento ilícito em relação aos nossos objetivos de estudo e aprendizado. Notem, caríssimos, que o papagaio aqui é deveras palrador. Cuidado, portanto!
Faltavam mais três senhoras e um senhor. Então, Reinaldo se viu forçado a convocar um deles, apresentando-se logo o senhor França, pessoa de cinqüenta e poucos:
— Quanto a mim, como vocês sabem, esposo e companheiro de Edna, não posso ficar declarando nada em contrário da posição dela, se não vou apanhar em casa. Brincadeirinha. Naturalmente, nós preparamos a lição juntos, embora eu faça o papel de advogado do diabo, sempre apresentando considerações que forcem os raciocínios mais exatos de minha interlocutora. Por tudo isso, devo afirmar que Deus é o que é: criador.; nós somos criaturas. Sempre que vamos expor nossos pensamentos em torno da inteligência suprema, nós temos de nos preocupar com quem estejamos dirigindo-nos. Dificilmente, teremos de defender esta ou aquela conceituação de público. Vale, portanto, o que Mário disse, ou seja, que a nossa compreensão vai resguardar-se no âmago de nossos seres, podendo aflorar oportunamente, quando estivermos numa esfera mais elevada e nossa inteligência tiver dado um passo adiante. Mas a pergunta de Reinaldo gira em torno de a gente aceitar ou não a posição dos espíritos. Foi o que nós discutimos em casa, Edna e eu, ou seja, que Deus pode ser definido pelos homens de acordo com sua visão preponderante da existência, seja intelectual, seja emotiva. Mas eu não vou repetir os argumentos dela. Quero apenas ressaltar que nem ela, nem eu, estamos discutindo a verdade da concepção formulada, mas o modo de se chegar a ela. Quanto a me tornar papagaio, vocês fiquem tranqüilos: eu, o mais das vezes, sou como a Maria que vai com as outras, firmando meu ponto de vista quase sempre na opinião emitida por minha cara-metade. Uma última informação: não estou vindo para esta sessão de estudos apenas para fazer companhia a ela.; se fosse assim, ficaria esperando do lado de fora. Portanto, não me tratem apenas como príncipe consorte, aliás com muita sorte...
O clima tenso havia ficado bastante aliviado, se bem que nem Dario, nem Adolfo se houvessem manifestado esfuziantes de alegria com as brincadeiras dos demais.
Mas Reinaldo não deixou a peteca cair:
— Faltam três moçoilas. Quem vai quebrar o silêncio primeiro?
Elas se entreolharam, até que uma senhora rechonchuda, de óculos com lentes de fundo de garrafa, se atreveu:
— Meu nome está aqui no crachá: Regina. Como eu sou ceguinha, sempre penso que os outros também não enxergam. Vocês vão me perdoar, mas eu não entendi quase nada. Estou achando que devo ir estudar outro livro. Eu não me importo de participar e vocês vão ver, se eu ficar, que gosto muito de dar os meus palpites. Até acho que as coisas poderiam ser piores, não fosse a clareza do texto lido aqui, uma pobre linha com algumas palavras. Eu não tiraria tanta idéia de tão pouco, mas aprendi com todos que a gente pode desenvolver noções paralelas, enquanto vai elucidando o fulcro do problema. O que não vejo é o final do livro, que, se formos levar tanto tempo para cada linha, estas quatrocentas e tantas páginas ficarão para as próximas encarnações. Sendo assim, resumo o meu pensamento: eu estou de acordo com a definição do livro.
Com um gesto, Reinaldo convidou uma das duas que faltavam. Então, a um movimento de uma senhora muito bem vestida, com alguns berloques no pescoço que as pessoas desejavam que fossem imitações, mas que acabavam reconhecendo serem jóias verdadeiras, ofereceu-lhe a palavra, não sem antes fazer-lhe uma apresentação mais formal:
— Hoje é o primeiro dia que nossa irmã Arlete se apresenta no centro. Ela é formada em filosofia e eu escondi até agora o fato de vocês, caso contrário, vocês poderiam ficar inibidos com o título. Como eu não sabia onde levá-la primeiro, trouxe-a a estes estudos, pensando que ela pudesse auxiliar-nos quanto ao rigor formal da lógica dos raciocínios. Na verdade, ela me disse que está em busca de um tema para uma tese de livre-docência e achou que nós do espiritismo talvez nos enquadrássemos em seus objetivos, que ela mesma poderá explicar, se quiser. Então, vamos ouvi-la.
— Em primeiro lugar, eu quero agradecer a acolhida que mereci da parte dos diretores da casa espírita, os quais me honraram com uma deferência toda especial. Também quero manifestar a minha mais profunda admiração pelos colegas de turma, que se empenham com muito denodo a este estudo de uma obra que, segundo sei, é vendida aos milhões de exemplares pelo Brasil afora. Trata-se, sem dúvida, de um marco muito significativo na história das publicações de caráter confessional, porque, sob este aspecto doutrinário, podemos observar que o espiritismo se posta diante da humanidade como religião, muito embora haja, entre seus principais estudiosos, uma postura fortemente tendente a admiti-lo tão-somente como ciência. Mas eu não vim para estes comentários mais abrangentes, embora me veja obrigada a alguns para poder situar-me perante o trabalho que aqui se realiza. Como disse Reinaldo, eu como que caí de pára-quedas no seio desta confraria, em data que, para meu regozijo, se dá o estudo de um tópico com evidentes traços filosóficos. Normalmente, seria de se esperar que o estudo na existência e da natureza de Deus se prendesse ao ramo, vamos dizer assim, religioso da filosofia, ou seja, a teologia ou a teogonia, ramo muito mais estudado nos seminários de formação de sacerdotes e pastores. Então, hão os companheiros de me perguntar se estou de acordo ou não com a definição de Kardec. Como estudiosa da filosofia, eu responderia que me é inteiramente indiferente o fato de ser verdadeiro ou não o conceito elaborado a partir da questão proposta por Kardec pelos espíritos. Para mim, pessoalmente, contudo, que me afirmo crente e perfeitamente consciente da necessidade da existência de, como dizia Aristóteles, um motor inicial para movimentar as engrenagens do universo, a formulação aqui discutida está dentro do que se pode requerer do absoluto em face do relativo, do criador ante a criatura. Se se trata de uma inteligência, de uma sensibilidade, de qualquer outro termo denotativo de supremacia integral em relação a todas as coisas, é secundário, à vista da função do conceito dentro do arcabouço filosófico que deve dar amparo aos adeptos, no sentido de lhes firmar a convicção dentro de determinados parâmetros, a partir dos quais se erigirão todos os preceitos, todos os cânones, todas as diretrizes doutrinárias. Tomado o conceito separadamente do corpo da obra, resultará, evidentemente, que a discussão haverá de se arrastar, até que todos se compenetrem de que, embora racional quanto se pretenda, a idéia de Deus sempre acabará no imo de cada um de nós, ponto específico de fé a ser considerado inalienável, intransferível, porque resultante de experiência pessoal. Eu quero afirmar com isso que Deus continuará sendo Deus, nem mais nem menos, porque ele não se deu à criatura, nem se dará, a menos que nós nos alcemos até ele por nossos méritos. Mas esta é uma outra história que há de ficar para outra vez. Apesar de lhes parecer um tanto fria em meus argumentos, podem crer que, quando lhes dou meus parabéns pelo trabalho a que se estão dedicando, isso provém do fundo de meu coração.
Adolfo ouviu toda a exposição bem atento. Quando percebeu que a professora Arlete encerrava, logo evidenciou o desejo de falar. Reinaldo, que pretendia ouvir logo a última personagem, apontando para o relógio na parede, vez sinal para que o interlocutor fosse breve.
— Não se preocupe, Reinaldo. Eu não vou me estender. Trata-se apenas de uma curiosidade relativa à nossa colega tão ilustre. O que eu quero saber é se vamos contar com sua participação efetiva no grupo, ou se a amostragem de hoje lhe bastará para extrair as suas conclusões, porque me parece que uma tese de livre-docência não achará sustentação num pequeno grupo de estudos.
A isto respondeu Arlete:
— Bem observado. Não vou enganar a ninguém, porque deixei sugerido que conheço um pouco dos trabalhos que se realizam nos centros espíritas, não fossem meus pais, há muitos anos, como eles mesmos dizem, seareiros do bem. Se puder, voltarei mais vezes neste horário para aprender com vocês a respeitar a humanidade através de uma dedicação aos estudos que redundará, de fato, na compreensão da necessidade de se integrarem no grupo para a tarefa superior de auxílio a todos os irmãos carentes que procuram o conforto moral ou o bem-estar físico que esta casa de caridade pode oferecer.
Adolfo ergueu o polegar demonstrando que se satisfez com a explicação e Reinaldo apresentou a derradeira participante:
— Eis aqui a nossa irmã Olívia, que ficou bem quietinha o tempo todo, disciplinada como uma freirinha, que de fato ela foi até dois anos atrás, quando deixou o hábito para se casar. Vocês, agora, já podem perceber que o nosso grupo é de primeira linha e nossos estudos só não darão certo se algo muito trágico acontecer. Mas não vamos agourar nada. Com a palavra, Olívia.
— Graças a Deus, amigos, tenho tido a felicidade de encontrar em meu caminho só almas muito carinhosas e inteligências bem desenvolvidas. Sinto-me em casa. Como Arlete, eu também fui muito bem recebida. Quanto à questão de Deus, um problema que sempre me incomodou no catolicismo foi a obrigação de acatar uma série de dogmas, muitos deles, se me permitem o vocábulo, estapafúrdios, sem pé nem cabeça. Devo dizer-lhes que, antes de me apresentar para este curso, perdão, para estes estudos em grupo, eu li o livro e não encontrei nele nada que me forçasse a crer cegamente. Seu autor, ao que me parece, era um homem de ciência e desejou, à vista do fenômeno mediúnico, estabelecer um roteiro para decifração de uma realidade diferente daquela com a qual nos deparamos a cada momento. Pelo que entendi, Reinaldo me corrija se estiver errada, existe em torno de nós uma esfera que se preenche com fluidos ou energias de diferente natureza, na qual permanecemos na condição de espíritos desvencilhados do corpo físico. Agora eu volto ao problema da definição de Deus. Pensar que ele é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas é bem mais fácil do que aceitar o princípio da trindade divina, em que Pai, Filho e Espírito Santo constituem um só espírito que pode desmembrar-se sem quebrar sua unidade. Era só isso que eu queria dizer por ora, reservando-me para outras observações no decorrer dos estudos, que as próximas questões e respectivas respostas são muito interessantes.
Pelo adiantado da hora, Reinaldo agradeceu os esforços de todos, congratulou-se com eles e, em prece compungida, reconheceu que os espíritos guias da instituição estavam de plantão, auxiliando o bom desempenho de cada um, encerrando a reunião com um pai-nosso ligeiramente modificado, que ele explicaria depois ser de autoria do espírito Emmanuel, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier.



2. A TEMPESTADE

Naquela semana, dois dias após a reunião, a cidade sofreu com uma tempestade fora dos padrões, verdadeiro dilúvio que provocou enormes enchentes, desabrigando muitos favelados, chegando mesmo a fazer tombar as construções ribeirinhas.
Tantos os males físicos e patrimoniais que atingiram a população que o prefeito decidiu decretar estado de calamidade pública, recorrendo aos poderes estaduais e federais para o socorro oportuno e necessário.
Com tanta água, o vetusto prédio que abrigava aquela comunidade espírita veio abaixo, desmoronando os muros em seguida ao arriamento do telhado, um tanto pelos cupins, outro tanto por causa da pouca aplicação de verbas no próprio particular.
Reinaldo e companheiros de diretoria não chegaram a tempo de salvar muita coisa, lamentando, principalmente, a perda de todo o equipamento do precário consultório odontológico, de todos os medicamentos, que se distribuíam de acordo com as receitas médicas, de todos os alimentos armazenados, dos petrechos de cozinha, forno e fogões, usados, é verdade, mas que ainda prometiam prestar bons serviços à comunidade carente do bairro. Reinaldo havia batalhado muito para conseguir um modesto computador para arquivar os registros dos eventos e dos associados, os balancetes, cópias preciosas das mensagens psicografadas e transcrições das comunicações orais gravadas. Agora lamentava a perda de tudo. Nem o pobre aparelho de som escapou à fúria da intempérie.
Quando Adolfo conheceu toda a extensão do desastre, bem que se lembrou de Reinaldo haver dito qualquer coisa a respeito de mau agouro. Realmente, ao ligar para a residência do coordenador das reuniões, soube que estavam suspensas até segunda ordem.
— Por que é que vocês não pleiteiam uma ou duas salas de um outro centro, para prosseguirem os trabalhos, precariamente, é verdade, mas demonstrando coragem e confiança na bondade e na misericórdia divinas?
Reinaldo ouviu calado, sem ânimo para responder tão sem razão lhe parecera a proposta, mas, ainda assim, arriscou:
— Vamos dizer que estamos ao desamparo? Jamais. Não temos dinheiro nem sabemos onde arrecadar. Quem sabe a Prefeitura vote uma verba de emergência para reconstruirmos. Mas as reuniões de estudos, os cursos de mediunidade, a mocidade espírita, as próprias sessões de desobsessão, bem como as palestras e os passes magnéticos não caberiam em duas ou três salas de empréstimo. Os trabalhos, meu amigo, estão suspensos e o atendimento aos assistidos, interrompidos. O máximo que vamos conseguir fazer é obter recursos com as pessoas interessadas em nos ajudar, e nós contamos com a boa vontade, agora, sim, dos amigos de outras casas espíritas da redondeza para receberem as pessoas necessitadas que nós assistíamos, havendo os nossos ajudantes e pessoas de bem que sempre trabalharam conosco aceitado ir ajudar na preparação das refeições e também na distribuição pelas escolas e galpões de esportes em que se concentram os desabrigados.
Foi assim que Adolfo caiu na realidade dos dramas mais pungentes. Quando ligou para Reinaldo, parecia-lhe que a tragédia era perder o convívio filosófico dos companheiros de estudos. De repente, percebeu que as atividades da instituição se voltavam positivamente para a esfera carnal, na ajuda indispensável para a sobrevivência do corpo, de preferência às atenções para a salvação das almas.
Então, ficou curioso com o que estaria preocupando os de seu círculo de estudos. Verificou que o caderno de endereços consignava todos os telefones e se prontificou a entrar em contato com cada um deles. Começaria com Dario, o mais experiente do grupo e aquele com quem acabara desavindo.
Notou que o número assinalado continha a observação de que era para recados. Do outro lado da linha, uma voz com forte sotaque lusitano atendeu:
— Aqui!
— Eu poderia, por favor, falar com o Senhor Dario?
— Ó meu amigo, só se for caso de vida ou morte, que o estabelecimento foi invadido pelo barro e a gente está a limpar tudo agora.
— Não é o caso, mas é muito difícil...
— Olha aqui, meu senhor. O Seu Dario mora aqui em frente da padaria e eu não tenho ninguém aqui que possa ir chamar o homem. Qual é o recado?
— O senhor pode me passar o endereço?
Adolfo agradeceu muito, pediu desculpas pelo incômodo e se dispôs a ir até lá. Com base nas informações e de posse de um guia da cidade, foi capaz de localizar, na planta do bairro, a rua em questão, tendo constatado que ficava a exatos treze quarteirões de seu prédio.
Resolveu, então, enfrentar a pé a distância, imaginando que o trânsito deveria estar um caos. De guarda-chuva em punho, que ainda garoava dois dias após as fortes chuvas, enfrentou os transtornos da via pública, percebendo que o caminho da casa que procurava o levava sempre ladeira abaixo.
Perto do local, a lama tomava conta das calçadas e ele precisou arregaçar as calças, lamentando muito não ter um par de galochas para proteger os sapatos. Logo reconheceu a padaria, onde, de fato, havia uma intensa azáfama de limpeza. Do outro lado da rua, não podia haver erro, só havia uma casa térrea, em cujo telhado estavam três homens acomodando as telhas.
Não era uma casa grande, mas estava dentro de um terreno vazio, cuja visão ficava dificultada por um muro de elementos vazados.
Com muito cuidado para não escorregar, Adolfo atravessou a rua, notando que a lama encobria um leito asfaltado, enquanto, junto às sarjetas, escorria uma água barrenta, que fazia supor, pelo declive, que ali houvera uma forte enxurrada.
Perto da entrada, pôde reconhecer o companheiro do centro dentro de uma capa de plástico, fornecendo material para o rapaz que descera por uma escada. Tão entretido estava que não percebeu aquela pessoa a observá-lo do lado de lá do portão.
Adolfo se deixou ficar por uns minutos, enquanto examinava os estragos no quintal, onde podia perceber que uma pequena horta fora destruída pelas águas.
Quando o rapaz retornou do alto para pegar mais telhas, notou-lhe a presença e apontou-o ao dono da casa.
Sem os óculos, Dario não reconheceu o visitante, a não ser quando este o saudou:
— Desculpe, amigo. Eu vim ver se podia ser útil em algo.
Para confirmar a impressão auditiva, Dario colocou os óculos e deu com Adolfo debaixo do guarda-chuva. Sem o boa-tarde da praxe, logo foi afirmando:
— Você está vendo o que me aconteceu? Foi quase o telhado todo embora. Ainda bem que as telhas que caíram no forro quase não se quebraram. Ainda assim, precisei comprar cento e cinqüenta, além das de amianto lá do fundo.
Adolfo se prontificou:
— Subir no telhado, estou vendo que não vai ser preciso, mas aqui embaixo, se tiver algo que eu possa fazer, não se acanhe.
— Não se preocupe, que os homens conhecem e logo vão terminar o serviço. Minha mulher está lá dentro vendo se salva algum móvel e alguma roupa. Ainda bem que a nossa casa ficou de pé. Eu soube o que aconteceu lá no centro. Aliás, este pessoal que me está ajudando é de lá. Eu recolhi três famílias que perderam os barracos e eles estão dando conta do recado para este conserto. Mas vá entrando. Venha ver em que estado ficou reduzida a minha sala e o meu quarto. A cozinha não sofreu nada, que eu levantei o piso e fiz um orifício para água escorrer na direção da frente da casa. Se não fosse isso, a perda era total. Cuidado onde pisa, que a terra está muito fofa. É melhor vir pela calçadinha.
Dario foi na frente e Adolfo foi seguindo, sem saber direito o que dizer. Parecia-lhe que, diante da extensão do desastre, o outro deveria estar bem mais abatido. Lembrou-se de que o prédio de apartamentos onde residia estava num local alto e não havia sofrido quase nada, a não ser alguns problemas na pintura devido ao granizo.
Entraram pelos fundos, precisando subir quatro degraus para alcançar o nível da cozinha. Havia um fogão, mesa com quatro cadeiras, um refrigerador, parecendo que o local fora limpo há pouco.
— Venha por aqui, Adolfo. As mulheres estão cuidando do quarto e da sala, mas já está tudo mais ou menos arrumado. Agora a gente precisa esperar que as coisas fiquem secas. Não repare na bagunça...
Adolfo não deixou o outro prosseguir:
— Vamos deixar de cerimônias. Eu não vim para uma visita. Eu vim para ajudar. O que é que eu posso fazer?
Dario coçou a cabeça, desvencilhou-se da capa e sugeriu:
— Você pode ir comigo no supermercado lá de cima, para me ajudar a trazer umas compras, que está na hora da janta e eu prometi trazer um lanche, na falta de comida mesmo.
A próxima hora passariam os dois na faina de forrar o estômago das oito pessoas ali abrigadas. Ele lhes prometeu um pouco de sossego em troca do serviço, além de lhes dar alimento e uns leitos na forma de redes, que foram montadas na sala e no quarto. Mas o plano era de se cadastrarem entre os que ficaram no centro esportivo ou na escola, para receberem ajuda de onde viesse.
No momento de pagar a conta, Adolfo fez questão de dar um cheque que cobria o décuplo das despesas, prometendo voltar dali a dois ou três dias para verificar como é que as coisas estavam. Não disse nada ao colega de estudo a respeito de seu projeto de visitar todos os do grupo e, tendo tomado apenas um café com o amigo, passado pela esposa, retirou-se com a alma aliviada por ter percebido que criara um forte elo de amizade com o seu quase desafeto.
Adolfo, que pretendia ir ter com Mário, o conciliador, lembrou-se da cadeira de rodas de Dona Edna (dona por conta do respeito que a senhora paralítica lhe inspirara) e imaginou o marido, o Seu França, atarefado, às voltas com as tristes conseqüências da inundação.
Buscou o número na agenda eletrônica e discou do celular, enquanto voltava para casa.
— Pronto.
— É da residência do Senhor França?
— Sim. Mas ele não está.
— Dona Edna está?
— Também não. Os dois saíram. Se o senhor quiser, anote o número do celular deles.
Por sorte, estava ainda preparada a agenda, ficando fácil anotar o ditado. Adolfo agradeceu e, em seguida, fez a ligação.
Depois de seis longas chamadas, atenderam:
— Pronto.
— Seu França?
— Eu mesmo.
— Adolfo, do centro.
— Como vai?
— Tudo bem. Estou ligando por causa dos transtornos do tempo. Estou oferecendo os meus préstimos para ajudar no que for possível, caso vocês estejam precisando.
— Estamos, sim. Toda ajuda é útil. Você tem tempo disponível?
— À vontade.
— Sabe onde fica o ginásio de esportes da Associação Atlética dos Paraplégicos?
— A três quadras de onde estou.
— Então venha para cá. Você terá o que fazer.
Adolfo subiu as três quadras na direção contrária de seu prédio e logo deu com o prédio aparentando boas condições. Enquanto imaginava que tipo de ajuda poderia dar, foi entrando, solicitando informação a respeito do casal de amigos, até que o França veio ao seu encontro no corredor de acesso à quadra.
— Que bom que você se lembrou da gente, Adolfo.
— A calamidade foi grande. Ficou sabendo do prédio do centro?
— Que tristeza! Vamos ter de construir um novo. Mas, como diz o ditado: há males que vêm para bem. Quem sabe agora a gente ergue um edifício moderno, com mais conforto, que terreno tem e boa vontade não há de faltar.
— Se todo mundo tiver esse seu otimismo.
— Nós estamos acostumados a lutar. Mas vamos falar com a Edna, que está cuidando dos registros.
Caminhando até o fim do corredor, acabaram adentrando o amplo salão em que se via uma quadra desportiva com arquibancadas rústicas de cimento nas laterais. Havia bastante gente e o burburinho ressoava fazendo eco. Logo ali, debaixo de uma das tabelas para o jogo de bola ao cesto, estava Edna, em sua cadeira, junto a uma escrivaninha. À sua frente, um monitor e um teclado.; ao lado, no chão, o gabinete do computador.
— Ao ver o companheiro, Edna abriu um sorriso bem largo e cumprimentou-o:
— Vejo que você está bem. Algum problema com a enchente?
Aí, rapidamente, Adolfo referiu sua visita ao amigo Dario e como ele estava enfrentando as dificuldades.
— Onde é que ele mora?
— Pertinho daqui, mas temo que vai ser difícil ir até lá por causa das condições das ruas. Eu só fui porque estava a pé.
Adolfo se preocupava com a cadeira de rodas, mas Edna foi logo cortando a piedade que se avizinhava:
— Você não sabe o que somos capazes de fazer em cima desta geringonça. Se for preciso, eu arrumo três homens patoludos e eles me carregam para onde for. Mas se você está dizendo que eles estão bem, vamos cuidar dos que estão piores.
Adolfo já estava ficando preocupado com a interrupção das anotações, que havia uma fila de cadeiras à frente da mesa: moços, jovenzinhos, senhoras, pessoas idosas, todos aguardando a vez de serem atendidos.
Observadora, Edna logo sossegou o colega:
— Quem está aqui é porque já está bem. É preciso que você fique sabendo que as pessoas na nossa situação adquirem a virtude da paciência e da tolerância, confiando nos irmãos que têm os mesmos problemas. Por isso, se eu atender a você antes, eles estarão sabendo que eu só o faço por ser importante dar-lhe atenção. Mas também não vamos ficar papeando sem objetivo. Se você está deveras disposto a ajudar, serviço não falta. Para começar, acompanhe o França e visite o prédio todo para se inteirar dos trabalhos que estão sendo realizados. Depois você volta aqui, porque a coordenação está comigo.
França, antes que Adolfo tivesse ocasião de observar qualquer coisa, puxou-o pela manga longa da camisa e logo foi dando as explicações a respeito do que se passava ali:
— A maioria das pessoas que participam das atividades que se desenvolvem neste centro de reabilitação e de congregação comunitária possui recursos. Nós atendemos, porém, muita gente que nos procura para tratamento inicial dos problemas relativos à paralisia, tenha ela a origem que for. Mas nós não estamos sozinhos.; nós fazemos parte de um conjunto bastante complexo de instituições, desde hospitais até clínicas especializadas. O nosso centro de esportes e de recreação constitui uma fase adiantada da recuperação física e mental dos irmãos que perderam o uso dos membros inferiores ou superiores.
— França, uma curiosidade minha, se não for indiscrição. Que aconteceu a Dona Edna?
— Edna e eu fomos atropelados. Eu saí ileso.; ela fraturou a quinta vértebra cervical e ficou paraplégica.
— Deve ter sido uma época de grande angústia e sofrimento.
— Foi há quinze anos atrás.; mas já vimos tanta coisa bem pior acontecer a tanta gente, que as nossas horas terríveis de desespero acabaram esquecidas. Mas é verdade: foi bastante traumático recuperar uma certa independência, porque, até chegar à cadeira de rodas, ela sofreu muito. Hoje, a coisa nos parece tão natural que tudo se automatizou como se a realidade fosse esta mesma desde sempre.
Caminhavam enquanto conversavam, de modo que acabaram chegando a uma sala pela porta da qual saía uma fila de pessoas sem problemas de locomoção.
— Esta é a sala de triagem. É aqui que as pessoas estão procurando-nos para registro de seus casos e necessidades. Você poderá encaixar-se entre os que atendem: serviço de escrituração e preenchimento de fichas. Mas vai precisar treinar para saber dar as primeiras informações aos flagelados, conforme um renque de tópicos específicos, sem que lhe caiba a responsabilidade do encaminhamento definitivo.
— Quer dizer que este é um posto oficial?
— Certamente, porque estamos autorizados e as nossas informações são válidas para freqüentarem os arquivos do Departamento Municipal de Atendimento de Emergência aos Flagelados. Mas todos os pedidos precisam ser confirmados por um grupo de assistentes sociais da Prefeitura, de modo que o que fazemos, na realidade, é aliviar a sobrecarga municipal. Mas vamos a outro setor, este sob nossa inteira responsabilidade. Trata-se da arrecadação e distribuição de todos os itens cuja falta seja sentida em situações deste tipo.
Caminharam para fora do prédio principal e foram dar num salão de menores dimensões. França explicou:
— Este é o vestiário dos atletas. Teve de ser bem amplo por causa das cadeiras de rodas, que as que são utilizadas no dia-a-dia são diferentes das empregadas nos jogos de salão. Então, se o local for acanhado, fica inviável o trânsito. Mas, como você está vendo, estamos atulhados de ofertas, que a solidariedade das pessoas nos tem mandado caminhões cheios de tudo que é coisa: alimentos, agasalhos, remédios e tantas outras coisas.
Realmente, Adolfo estava admirado com os volumes e com a azáfama dos encarregados da separação, seleção e acondicionamento dos produtos, conforme certas especificações. Havia listas nas mãos dos coordenadores nas quais se determinavam os itens de cada pacote.
Adolfo logo interpretou o que via:
— Quer dizer que aqui é uma espécie de centro de distribuição. Eu não vi lá fora ninguém solicitando este ou aquele material.
— É verdade. Os nossos caminhões são chamados para buscar as doações, havendo também os que chegam espontaneamente. Mas cabe a nós enviar as encomendas. Você ficou interessado em nos ajudar neste setor?
— Vamos ver o que mais existe para fazer, que aqui eu estou vendo que existe muita gente auxiliando.
— Você se interessaria pela cozinha, onde preparamos os lanches? É uma contribuição mais modesta, porque não temos um restaurante ou cozinha industrial. Servimos, principalmente, aos que trabalham nas várias centrais de atendimento.
— E aquelas pessoas que vi no salão de esportes?
— Aqueles são os nossos associados que estão cadastrando-se para receberem ajuda diretamente de nós. São os que precisam de uma atenção mais específica, inclusive médica e hospitalar, porque muitos que se tratavam com aparelhos em casa viram os petrechos se perder. Trata-se de um atendimento especializado que requer alguns anos de treinamento. Além da Edna, só mais duas pessoas estão habilitadas para o serviço.
— França, existe quem esteja cuidando das contribuições financeiras?
— Os nossos tesoureiros e seus auxiliares. Estamos incentivando o depósito bancário nas nossas contas, porque fica bem mais fácil de controlar, mas muita gente comparece com listas passadas nos escritórios, oficinas, nas ruas do bairro.; outras trazem cheques que temos de depositar. Muitas vêm com pequenas quantias, quase sempre como a viúva do óbolo que Jesus elogiou, porque tiram até do necessário. Mas existem muitos que se apresentam claramente com o objetivo de encontrar uma brecha para desvio do dinheiro para seus próprios bolsos. Eu acho que este setor lhe caberia muito bem, dada a importância da honestidade e do desinteresse pelo bens materiais que os espíritas em geral demonstram.
— Obrigado pela confiança. Mas eu perguntei para poder contribuir com um pouco, que não sou pessoa de posses, mas também sem nenhum sacrifício, porque darei do que me sobeja.
França desconfiou de relance que Adolfo queria mesmo era dispensar a contribuição do tempo, ficando com a do bolso. Mas calou-se para ver se estava certo. Então, propôs:
— Vamos voltar até onde está a Edna. Vamos ver como é que vocês se entendem.
Enquanto caminhavam, Adolfo examinava mentalmente a sua oferta. Trabalharia normalmente ali dentro ou daria preferência para uma atuação fora, no âmbito das amizades, influenciando os amigos para virem, eles sim, contribuir com o serviço benemérito pela pragmática da ação? Reparou que a expressão pragmática da ação era redundante mas não se empenhou em reformular a frase. Ficasse desse jeito mesmo que logo ele iria experimentar o gostinho de ficar preso em específico atendimento.
Edna, quando o viu, saudou-o muito alegre:
— Veja como a minha fila diminuiu. São agora apenas cinco pessoas para atender. Mas isso não se deu por acaso. Esta moça bonita aí é que me auxiliou, adiantando o preenchimento dos dados numa folha, de modo que ficou bem mais fácil de eu digitar no computador.
A referida ajudante, na verdade, era já uma senhora trintona, criatura saudável, abundante de carnes e de outros complementos, risonha e corada, debaixo de umas madeixas douradas que denotavam esmero e cuidado com a aparência. Era como se tivesse deixado algum salão de beleza naquele momento.
Foi França quem os apresentou:
— Adolfo, esta é Verônica, nossa filha.
— Prazer.
— Prazer.
A maneira dela olhar para ele foi significativa, como se lançasse raios de luz nas profundezas de sua alma. Aliás, aquele brilho nos olhos fascinou o jovem senhor, que buscava compreender como é que alguém podia desferir dardos tão poderosos com a concentração e a sustentação do olhar. Ambos ficaram ali paralisados por uns bons segundos, atitude que refletiu nas almas dos pais como o início muito promissor de um relacionamento.
Edna teve um lampejo:
— Eu estou muito cansada. Gostaria de deixar Verônica cuidando da digitação, a menos que você, Adolfo, que eu sei que trabalha com computadores, demonstre sua habilidade, preenchendo os dados que ela irá ditando e indicando como fazer.
Adolfo foi muito lesto em responder:
— Gostei desta última sugestão. Se eu puder ser útil aqui é melhor, porque, verdade seja dita, as outras tarefas não me atraíram.
Bem que França pensou que não fora ele atraído pela tarefa, mas se regozijou intimamente por ver confirmada a sua intuição de que Adolfo não aceitaria permanecer muito tempo por ali. Mas, ao invés de ficar para avaliar o desempenho inicial do amigo espírita, foi logo empurrando a esposa na direção da porta do fundo. Para dizer tudo, Edna deu um jeito de pegar a mão direita do marido, apertando-a como a informá-lo de que estava torcendo para que a filha encontrasse alguém com quem ficar.
Ali, diante do monitor, Adolfo ia recebendo as instruções de Verônica, enquanto seu cérebro se dividia entre resolver os problemas imediatos e prementes do aprendizado necessário e o entendimento da resolução tão inesperada de se dar a um compromisso que rejeitara momentos antes.
Venceu a necessidade de cumprir a obrigação, pelo acréscimo vigoroso da demonstração que foi capaz de dar de sua habilidade com a máquina eletrônica. E tão bem se saiu que, em breves instantes (na verdade foram trinta minutos que lhe passaram despercebidos), a pequena fila havia acabado.
— Verônica, que vamos fazer agora?
— Eu acho que ficar esperando aqui será pura perda de tempo. Se aparecer alguém mais, minha mãe atende. Vamos procurar o que fazer noutro setor, embora você não tenha se interessado por mais nenhum.
Havia um misto de provocação e de sutil perquirição na tentativa de desvendar o pensamento de Adolfo. Mas este estava muito à vontade, para dizer tudo o que sentia:
— Eu não me interessei porque eu tinha em mente a realização de uma tarefa de todo, como direi, solidária com meus amigos do centro, amigos em cuja conta entram seus pais. Nós formamos um grupo que está começando a estudar O Livro dos Espíritos, e eu pensei, à vista da tragédia geral, que poderia ser útil a eles. Foi assim que, depois de ir visitar um que teve a casa muito danificada, liguei para seus pais e eles me chamaram, por ter eu me proposto a auxiliar. Então, à vista de haver tanta gente trabalhando aqui, eu gostaria de dar seguimento ao meu plano primitivo, indo ver como estão os outros, para voltar depois, hoje mesmo ou amanhã, para manter minha palavra.
Verônica foi muito pronta em uma solução conciliatória:
— Eu conheço a maioria dos que estão no seu grupo. Vamos repassar um a um, para ver se eu posso ajudar você em sua pesquisa.
Foi assim que não viram o transcorrer da hora seguinte, enquanto iam eliminando cada um dos relacionados por Adolfo, quer por um contato telefônico, quer por uma informação positiva da moça.
Ficou para o último lugar a professora de filosofia, Arlete, que Verônica não conhecia e que, com certeza, estaria fora da lista dos possíveis necessitados, lembrando-se Adolfo de descrever as jóias com que ela se adereçava.
Mas havia um número de telefone e duas consciências a se sentirem culpadas se não fizessem a ligação. Foi Adolfo quem decidiu:
— Vamos ligar para sentir como é que seremos recepcionados, pelo menos.
— É bom mesmo, porque essa senhora pode esconder, na aparência e na cultura, algum drama que a gente nem iria suspeitar.
Feita a ligação, uma voz de homem atendeu:
— Pronto!
— É da residência da Professora Arlete?
— Sim.
— Ela está?
— A quem anuncio?
— Adolfo, que ela conheceu no grupo de estudo do centro.
— Um momento.
Um longo minuto transcorreu até que a mesma voz se fez ouvir:
— Alô!
— Pronto!
— O senhor não quer deixar recado? Ela está muito ocupada no momento.
— Eu só queria saber se estava tudo bem com ela. Por causa da tempestade, nós estamos ligando...
Adolfo estranhou a interrupção do que vinha dizendo, que o outro simplesmente desligou.
Verônica quis saber o que se passara, se algo havia deixado a entender que havia algum problema entre a voz no telefone e a pessoa que não atendera. Adolfo não soube explicar, mas aventou:
— Eu acho que a pessoa não me considerou suficientemente importante para prestar um auxílio, nem para me constituir em um colega de turma da doutora em filosofia. De qualquer modo, uma hora ou outra, havemos de ficar sabendo o que se passou na realidade. O que me parece certo é que não estão enfrentando nenhum problema com a chuva.
Verônica concordou e a conversa morreu ali. Nesse meio tempo, apareceu um casal, a mulher empurrando o marido. Era mais uma pessoa a se cadastrar, o que foi feito em tempo recorde.
Assim que despacharam mais aquelas vítimas da calamidade, voltaram a conversar, agora sobre assuntos ao derredor dos sofrimentos que a cidade estava enfrentando, até que os pais da moça voltaram. Esta expôs a facilidade com que se desvencilharam da tarefa, deixando no ar que poderiam voltar a formar uma dupla naquele serviço. Adolfo percebeu o intento da jovem senhora e combinaram, com a aquiescência da coordenadora geral dos trabalhos da entidade, que prosseguiriam juntos no dia seguinte.
Adolfo se viu numa situação um pouco constrangedora e resolveu encerrar por ali aquele fortuito encontro que lhe parecia prometer outros muitos.



3. REFLEXÕES

Assim que Adolfo desapareceu porta afora, logo os pais quiseram saber de Verônica qual a impressão que o jovem senhor lhe havia causado. Ela não titubeou:
— Gostei muito dele e parece que ele se interessou por mim. Mas vocês não acham que é muito cedo para qualquer conclusão?
Foi Edna quem observou:
— Pelo jeito que vocês se devoraram com os olhos, pareciam estar um desnudando a intimidade do outro.
França não deixou passar a oportunidade para um comentário:
— Esse moço deu muito trabalho para sua mãe na reunião do centro. Ele forçou que ela desse uma resposta pessoal, quando efetuava uma exposição de caráter geral. E sabe de uma coisa? Ele mesmo, que exigiu tanto dos outros, acabou por não dizer o que pensava a respeito do tema específico da aula. Mas eu o admirei bastante, que é de uma inteligência rápida e atilada, além de ter uma sensibilidade muito grande para compreender as outras pessoas, haja vista que nos procurou para nos ajudar.
Verônica ainda diria alguma coisa mais, confirmando as impressões do pai e a conversa se encerraria com a expectativa do dia seguinte.
Na verdade, Edna ficou a considerar a necessidade de a filha revelar logo a Adolfo as suas desilusões românticas e de relacionamento, para que não viesse a sofrer mais uma decepção. Mas calou-se, que não queria dar orientação tão óbvia à filha escarmentada já por diversas frustrações.
No entanto, se houvesse penetrado no pensamento de Verônica, surpreenderia a filha justamente preocupada com esse mesmo problema. Aliás, refletia a moça que a imagem daquele momento não correspondia exatamente à sua figura, que acabara de pintar os cabelos castanhos de uma cor muito clara, bastante diferente da que vinha usando para disfarçar as mechas de cabelos prateados. Além disso, mal passara por uma sessão no instituto de beleza, onde fizera tratamento profundo da pele, pois estava em vias de servir de dama de honra a uma amiga que iria casar-se dali a dois dias. Mas o que a perturbava mais eram os óculos de grossas lentes que ela, há uma semana, vinha alternando com o uso de lentes de contato. E ainda punha atenção no fato de, nos últimos dois anos, haver engordado vinte e cinco quilos, por conta de seu último rompimento amoroso, da qual saíra profundamente magoada.
Por seu lado, Adolfo ia ruminando que não fizera bem em esconder que enviuvara há quatro anos, que não tinha filhos, que vivia com a mãe e um irmão portador de mongolismo, já em término de vida, que trabalhava em casa formulando programas de software, sendo muito conhecido no mercado. Especialmente, deixou de informar que não tinha o cabedal espírita dos pais da moça e que procurara o centro por recomendação de um correspondente virtual, um amigo com quem batia sérios papos por meio da Internet.
Neste ponto, havendo chegado ao prédio em que morava, percebeu que tudo o que vinha pensando se interpolava com a lembrança viva de cada momento em que estivera na companhia de Verônica. Muito particularmente se recordava dos olhos brilhantes que o fitaram como nunca ninguém antes. Olhos castanhos claros, grandes, em um rosto redondo e absolutamente aveludado, sem as rugas que aos trinta e poucos começam a aparecer. Atribuiu a falta dos sulcos ao fato de ela ser bem roliça e até considerou que era bom para a personalidade alegre que manifestara estar de bem com o próprio corpo, demonstração inequívoca, pensava, de um espírito jovial e equilibrado.
Sentia, no entanto, que algo não ia bem naquela circunstância de tanto sofrimento para a população, quanto ao fato de que ele mesmo não positivara uma ajuda ponderável. Ao contrário, o conjunto dos acontecimentos o levara a usufruir a ventura de um encontro agradabilíssimo, como se do caos nascesse um mundo de belas perspectivas. Passou a recordar-se dos textos bíblicos primitivos, sobre como se formara o universo, aceitando a hipótese mosaica de que Deus formulara a criação por etapas, até colocar o homem no paraíso. A partir daí, confundia-se bastante com a necessidade da presença absurda de um ser perverso a fustigar o espírito da mulher para obter sempre mais, que a perfeição relativa não a satisfazia.
Envolveu a figura da esposa falecida e do irmão em desvantagem intelectual, caos moral de onde ele bem poderia surtir mais forte, caso se fixasse num grupo que conseguisse explicar-lhe o porquê dessas desventuras passíveis de serem revertidas, caso pusesse nas mãos misericordiosas do Pai a resolução dos problemas mais sérios, enquanto Verônica lhe criava a perspectiva de uma vida de melhores realizações afetivas, pela paz que fora capaz de assimilar a partir das palavras de França, que demonstrara claramente que a tragédia da esposa estava plenamente contornada, tirando a família proveito mesmo da união forçada em torno dela, para realizar atos sacratíssimos de puro amor.
Não lhe passou pela mente que poderia estar minimizando os sofrimentos ou simplificando demais a luta concreta no mundo carnal, tendo em vista que o seu drama se desenvolvera no plano das perdas e das decepções. Mas, como que por inspiração, apresentaram-se-lhe à memória todos aqueles que trafegavam pelo salão de esportes sobre rodas, esforço concentrado em uma forma de locomoção adaptada. Foi aí que lhe voltou a idéia de que poderia envolver-se mais efetivamente nos trabalhos de ajuda, deixando de lado aquela fórmula meramente funcional, para empregar-se fisicamente no transporte dos mantimentos e demais quesitos da humana cooperação.
Caminhava a esmo pelos corredores do prédio, seguro de que não seria surpreendido por nenhum morador ou funcionário, que havia um silêncio sepulcral na área de lazer destinada às reuniões dos condôminos e de seus filhos menores.
Imaginou que dava trabalho ao cérebro para não subir ao apartamento, que a visão do irmão no leito, sem que nada pudesse fazer para reverter-lhe o processo degenerativo, era muito penosa. Também estava sem vontade de começar algum serviço dos vários que lhe haviam encomendado. A mãe, desde que o irmão não deixara mais o leito, vivia chorosa pelos cantos, demonstrando uma falta de coragem que desdizia de toda sua extraordinária força em enfrentar, por mais de trinta anos, o sacrifício de cuidar do enfermo da alma.
Lembrou-se da esposa e de seu sofrimento ao vê-la definhar até virar um trapinho de gente no leito de morte, ao contrário do irmão, que engordara e que continuava, sem noção do que fazia, a comer tudo que exigia que a mãe lhe preparasse, como que apressando o processo da passagem para o outro lado.
Foi quando estabeleceu uma comparação com os quinze anos de cadeira de rodas de Edna, esquecimento e perdão que se misturavam numa atitude de profundo respeito pelas leis da vida. Ele deixara seu coração passar cinco anos enlutado, mas numa passividade notável, como se, a qualquer momento, a falecida pudesse reintegrar-se ao casal. Despertara para a saudade real pela presença da morte do irmão, peremptória, inexorável.
Derivou para a figura paterna, fantasma detestável pela covarde deserção da família, ao constatar que o filho mais novo seria um peso morto para a economia doméstica. Do que havia estudado mais tarde, concluíra Adolfo que o excesso cromossômico que gerara o mongolismo não poderia ser atribuído à vontade de ninguém, nem ativa nem passiva, através do desejo de ferir a quem quer que seja, ou por negligência nos cuidados pessoais durante a gestação. Confirmara a covardia de quem debandava perante os reais deveres de cônjuge, mas teve de curvar-se ao empenho do pai em manter uma espécie de pensão alimentícia à esposa, adicionando o pagamento dos cursos que ele havia freqüentado, incluindo um estipêndio para todas as necessidades do irmão. Quando o mais velho, Francisco, se casou, deixando de contribuir com seu salário para a manutenção dos demais, o pai reforçou a contribuição. Quando ele mesmo começou a ganhar a vida e se casou, veio residir com a esposa no mesmo quarto em que, durante muitos anos, convivera com o irmão mais velho. Mesmo assim, o pai manteve a pensão, muito embora, naquela altura, ele já vivesse em concubinato com outra mulher, que dera a Adolfo três outros irmãos.
Tudo se organizava em sua mente como uma necessidade de reprodução histórica dos acontecimentos de sua vida. Pôs na devida perspectiva temporal o falecimento do velho, há três anos, quando ele, a mãe e os irmãos foram convocados para a leitura do testamento. Viu-se, então, que todas as propriedades adquiridas após a separação não constavam da partilha por estarem em nome da concubina e de seus filhos. No entanto, nada que ele havia adquirido anteriormente deixou de ser herdado pela mãe, inclusive o apartamento em que residiam. Além disso, a pensão fora mantida intacta.
Que estaria fazendo o espírito do pai naquele momento? E o da esposa? Perguntou mas não soube responder com base nas poucas leituras a respeito nos livros espíritas.
Não se preocupou, porém, com seu diminuto conhecimento, pois concentrou-se no fato de que, como ouvira dizer no centro, Deus é pai de misericórdia e dá a cada um a chave da caridade para abrir as portas de seu destino venturoso, evangelho adentro. Sendo assim, tanto sua esposa quanto seu pai deveriam estar entregues a vertentes de felicidade segundo suas obras, que ambos tinham feito muito bem na vida, apesar dos tropeços naturais de seres imperfeitos que todos são.
Recordou-se de que o pai ficara decepcionado com o filho que estava prestes a partir e que, se ambos tivessem o que acertar, logo se encontrariam, apesar de o irmão dever ainda passar um tempo bastante longo até se adaptar à nova condição intelectual. Neste ponto, embaraçou-se na definição de quanto embotado estaria o espírito do irmão e no entendimento de como poderia recompor-se mentalmente, se é que alguma vez tivesse tido lucidez.
Veio-lhe clara na memória a lembrança de ter ouvido alguém mencionar que os problemas mentais eram programados no etéreo antes da encarnação e que não achara certa tal medida legal baseada no dente-por-dente dos hebreus.
Mas como obter a convicção da doutrina sem passar por aquele achismo que percebera enfronhado na própria mentalidade? Tentou firmar os conceitos e se deparou imensamente frágil, filosoficamente considerando. Como as idéias não se coordenavam mais, percebeu que estava faminto e que tinha de entrar, deixando as questões existenciais superiores para quando estivesse saciado.
No elevador, ainda pôde considerar que em tudo havia altos e baixos, de modo que também espiritualmente deveriam existir mecanismos para ajudar os hesitantes, os indecisos, os menos doutos, a adquirirem, através de lições adequadas ao nível de evolução de cada um, os conhecimentos correspondentes às suas faculdades naturais.



4. DO OUTRO LADO DA CIDADE

O telefonema de Adolfo despertou em Arlete uma reação retardada importante. Quando o irmão lhe perguntou se ela atenderia, entretida em sua tese, fez com o dedo indicador que não.
Naquele momento, trabalhava diante do monitor, digitando trechos que havia redigido à mão. Como tinha de efetuar muitas tabelas, veio-lhe a inspiração de que bem poderia haver um programa que pudesse ser adaptado a seu trabalho. Melhor ainda, aqui valeu a imagem do analista de sistema ou programador, que ela não sabia definir direito a profissão do jovem senhor que conhecera no centro, talvez ele pudesse construir para ela uma ferramenta específica para montar os quadros de referências sobre os quais tiraria as conclusões cabíveis.
Vasculhou entre os endereços anotados em sua agenda e logo deu com o número que lhe fornecera a polêmica criatura.
Mas não cedeu ao impulso de ligar de imediato. Precisava organizar a consulta, deixando bem claro o que pretendia realizar de maneira mecânica como levantamento de dados, segundo as informações que estava colhendo nos centros espíritas através de um longo questionário.
Depois de um tempo, de posse de todos os elementos, efetivou a ligação. Adolfo havia fornecido o número de casa e não o do celular, e a primeira tentativa se frustrou. De qualquer modo, deixou o recado com a mãe, para que ligasse assim que pudesse.
Quando Adolfo chegou, logo recebeu a informação, mas estranhou que a mãe não tivesse fornecido o número de seu telefone de bolso. Dona Isaura retrucou:
— Eu não sabia de que se tratava. Se fosse urgente, ela teria pedido um outro número. Eu acho que fiz muito bem em ter esperado você chegar.
— Está certo, mãe. A senhora tem razão. Eu mesmo não dou o meu celular para qualquer um. Nem lá aonde fui na outra noite.
Como estivesse esfaimado, foi à cozinha para comer alguma coisa, mas, ao passar pelo quarto do irmão, foi chamado por Benito, para lhe pedir comida.
— Você não comeu, ainda?
— Não.
— Vou chamar a mãe.
Adolfo notou que sentia um misto de ojeriza e de profunda piedade pela condição do mano. Se entrasse e ficasse a contemplá-lo, não demoraria cinco minutos e as lágrimas escorreriam.
O retardado, não podendo sair do leito, passou a clamar em altos brados, contrariando toda uma vida de bom relacionamento fraternal. Sempre fora extremamente meigo e carinhoso. A proximidade do fim punha-o nervoso e destrambelhado.
Quando Adolfo deu com a mãe na cozinha, ela estava chorando em silêncio.
Adolfo não disse nada. Não pegou nada que comer e foi trancar-se no quarto. Tremia, meio assustado com o terror moral que os dois entes queridos estavam passando. Pensou em ligar para o irmão mais velho, mas desistiu, que o máximo que ele poderia sugerir era internar o enfermo, para que fosse cuidado profissionalmente. Mas o dinheiro que tinha guardado, com certeza, não cobriria todos os gastos. Não tendo direito à assistência governamental, uma vez que era autônomo, e como não se resguardara pagando um plano de saúde particular, ficaria na dependência do que pudesse ser coletado entre os familiares.
Então, imaginando que poderia ser mais útil fora que dentro de casa, efetuou a ligação. Desta feita, a voz que atendeu era de mulher:
— Pronto.
— Arlete?
— Sim.
— Adolfo.
— Como está? Desculpe-me não tê-lo atendido quando você ligou.
— Tudo bem. Era para saber se a tempestade não havia afetado sua vida. Nós ligamos para todos os membros do grupo. Já ficou sabendo do que aconteceu ao centro?
— Uma catástrofe. Mas, com a boa vontade de todos, vamos construir um prédio novo, não é verdade?
— Claro que sim.
— Quanto a nós, aqui no prédio, houve um alagamento na garagem, mas a água já foi bombeada. Graças a Deus, os nossos carros, o meu e o do meu irmão, não foram atingidos. Foi pura sorte, porque nós dois estávamos fora. Aconteceu algo com algum dos nossos amigos?
Rapidamente, Adolfo relatou o acontecido a Dario e o que Edna e família estavam realizando. Aí, foi a vez de Arlete expor seu problema com a tese. Adolfo esclareceu, finalmente:
— O que eu posso fazer é indicar uma das firmas que me contratam, porque os programas são eles que registram e oferecem à clientela. Talvez haja algum pronto para aquilo que a senhora deseja.
— Só falta você me tratar por doutora. Use o você, por favor.
— O que eu estava querendo dizer é que eu preciso saber exatamente como vai ser o trabalho. Trata-se de um problema de estatística, não é isso?
— Sim.
— Se me permitir, eu posso ir até aí agora e analisar o serviço. Isso se o trânsito não atrapalhar.
Os dois se entenderam, trocaram os endereços, traçaram o itinerário e chegaram à conclusão de que o melhor era ele ir de metrô e descer na estação mais próxima, onde ela o aguardaria, para transportá-lo pelos doze quarteirões que separavam a estação do prédio.
Apanhou Adolfo seus petrechos de trabalho, colocou-os na valise que levava ao ir visitar algum cliente esporádico, relembrando os difíceis momentos do início, quando, verdadeiramente, se dedicava à montagem, ao conserto e aperfeiçoamento das máquinas mais primitivas, e saiu a pé, sem avisar aonde ia, que Dona Isabel bem desconfiou de que estava fugindo das aflições do lar.
De casa até a estação do metrô levava dez minutos. Percorreu esse trecho atento para as ameaças das intempéries e para os ataques dos trombadinhas e trombadões que infestavam as ruas da cidade, especialmente porque as milícias policiais acudiam os desabrigados. Mas chegou incólume ao destino, precisando mesmo apressar-se, pois havia uma composição parando.
Acomodou-se no vagão parcialmente lotado, indo no contrafluxo do rush, que o povo, àquela hora, voltava do trabalho para casa. Ele atravessaria o centro da cidade, de modo que, ao chegar naquela região, viu lotar-se completamente o vagão, com pessoas sem expressão, na maioria moças e rapazes na flor da idade, que, nem por formarem grupos, se manifestavam. O povo, já de per si soturno, no meio da calamidade, estava deprimido e transmitia essa sensação ao derredor, até mesmo pela coloração escura das roupas.
Uma jovem gorducha e loira entrou numa das estações e logo despertou a lembrança de Verônica, que ficara meio esquecida tantas eram as preocupações de casa. Ensimesmou-se e, para não notar a passagem do tempo, recapitulou todas as emoções que sentira ao lado da moça.
Mas o vagão foi esvaziando-se, parada após parada, até que, ao chegar sua vez de descer, Adolfo o fez sem dificuldade, não havendo ninguém para disputar o assento que deixava vazio.
Ao chegar à rua, notou que já escurecera por completo. Mas não precisou esperar muito, que Arlete veio a seu encontro saindo de sob o toldo do jornaleiro, onde se refugiara enquanto aguardava o amigo.
— Venha por aqui. Eu deixei o carro no estacionamento aí na frente. Você sabe como é perigoso permitir que os flanelinhas tomem conta dele.
Andando ao lado da doutora, Adolfo notou que era uma senhora bastante saudável e lépida, rápida ao andar, ainda que sobre saltos de sapatos de certa altura.
Enquanto o manobrista ia pegar o veículo, Arlete abriu a bolsa de onde retirou seus óculos, dizendo:
— A minha vista é boa, mas a recomendação dos óculos veio em boa hora, facilitando o uso dos óculos de sol sem grau com que dirijo de dia. Nunca ninguém vai suspeitar de que estou burlando a lei.
A observação pareceu meio sem sentido a Adolfo, dando Arlete a entender que, em outras circunstâncias, também abusaria do mesmo princípio. Mas ele apenas considerou:
— Eu acho que estou precisando de lentes, que a minha vista não é mais a mesma. Pelo menos para ler, eu tenho um par de óculos que herdei de meu avô, coisa muito antiga, que me presta um bom serviço. Eu acho que tenho de renovar logo a carteira de motorista, de modo que vou saber se preciso ou não usar óculos de modo permanente.
Adolfo notou que escolhia as palavras para falar e percebeu um certo respeito intelectual pela facilidade de expressão da estudiosa amiga.
Naquele momento, chegava o carro e logo estavam voltando ao assunto durante o curto trajeto. Recomendava Arlete:
— Antes de ir realizar os exames oficiais, vá a um bom oculista e pegue uma receita. Assim, indo já munido de óculos, você poderá, no momento oportuno, tirá-lo do bolso, caso o examinador tente vetar a entrega imediata da licença. Vai ser muito mais fácil, caso você queira despachar-se logo.
— Bem pensado. Se eu for logo ao oculista, vou poder me acostumar com as lentes. Você acha que existe alguma dificuldade em dirigir de óculos?
— Dificuldade alguma, a não ser para aquelas pessoas que utilizam lentes muito grossas. Eu tenho um aluno que me explicou que, para renovar a carta, sempre vai à sua cidade natal, onde conhece todo o mundo e não corre o risco de perder a autorização para dirigir, tão grave é sua distorção visual.
— Mas aí ele estará arriscando-se e pondo em perigo os outros.
— Certamente, esse não é o seu caso. Então, faça o exame antes e, se quiser continuar dirigindo sem óculos, veja se consegue passar no teste sem eles.
A força do raciocínio da professora convenceu Adolfo de que ela estabelecia prioridades, adaptando-se à mais conveniente no momento. Mas a essa conclusão só chegou depois de três minutos de silêncio, até que chegaram ao portão eletrônico do prédio que se abriu a um toque do controle remoto.
O que chamou de pronto a atenção do analista de sistemas foi o fato de que, ao passarem pelo portal, havia dois funcionários da zeladoria a vigiar a entrada, de modo que, quando Arlete estacionou o carro, já um daqueles abria a porta do lado do passageiro, muito gentilmente, mas esperando uma explicação da doutora, que não tardou:
— Pode deixar, Jeremias, que eu não estou sendo seqüestrada. Esse é o técnico de computação que eu avisei que ia buscar no metrô.
Imediatamente, o rapaz desapareceu de vista e o casal atravessou o estacionamento, na direção dos elevadores. Havia cinco, de forma que Adolfo pôde concluir que o prédio era bem grande. De fato, ao entrar na cabina, logo percebeu o painel enorme em que se situavam os botões de comando. Havia três subsolos e mais quarenta e cinco andares.
Arlete apertou o de número trinta e três e logo o veículo deu o empuxo inicial para ascender. Adolfo sentiu uma sensação de extraordinário peso.
A amiga comentou:
— A vantagem de um prédio bem grande é que o preço do condomínio é dividido por mais pessoas e a gente pode ter a segurança de cuidados muito especiais. Por exemplo: antes eu morava num prédio menor e os dois elevadores estavam constantemente dando despesas enormes. Aqui, quando um está em manutenção, e isso acontece continuamente, a gente nem percebe. Aliás, você mora em prédio de apartamentos, não mora?
A um gesto afirmativo, ela concluiu:
— Então, estou chovendo no molhado.
Mas, não tendo estacionado em nenhum andar intermediário, já chegavam ao trigésimo terceiro, onde saltaram. Aí a moça entrou num corredor lateral, cujas lâmpadas iam acendendo-se à medida que avançavam, reconhecendo o moço que eram acionadas por células fotoelétricas. Chegando ao número trezentos e trinta e oito, a moça acionou a campainha, aguardando que abrissem, enquanto explicava:
— Eu sempre toco para avisar meu irmão que estou chegando. Às vezes, ele tem companhia e eu não gosto de surpreender ninguém.
Antes que tivesse condição de responder, a porta se abriu do lado de dentro e um rapaz de não mais que trinta anos de idade foi logo estendendo a mão, com um jeito inconfundível de quem tem as emoções à flor da pele, e logo foi dizendo, não permitindo que a irmã os apresentasse:
— Meu nome é Clóvis, Vivinho para os íntimos, e você deve ser Adolfo, o amiguinho de Lete, que veio dar-lhe instruções de como otimizar o uso do computador para a defesa de tese. Fique à vontade, que eu estou na sala de som, ouvindo Debussy. Te piace, Debussy? Desculpe-me. Devia ter perguntado em francês, porque Claude era francês.
Mas Adolfo não teve oportunidade de abrir a boca, que Vivinho foi falando e já foi retirando-se, com certeza porque não se interessava pela resposta que ouviria.
Sobre a mesa da sala de jantar, separada da sala de estar por ampla abertura ladeada por duas colunas gregas, atrás das quais havia dois reposteiros recolhidos que, abertos, resguardariam a privacidade dos ambientes, Arlete havia colocado todo o material com que estava trabalhando.
— Eu separei, explicou ela, os formulários que estão sendo preenchidos por mim ou pelos responsáveis pelos centros espíritas, bem como os diversos tipos de fichas que deverão resultar dos cálculos estatísticos a serem aplicados ao universo dos elementos disponíveis. Se você quiser examinar o computador, está no escritório.
— Eu quero. Vamos começar por descobrir de que recursos você dispõe.
O escritório era uma ampla sala totalmente tomada por estantes cheias de livros. No centro, a mesa com os aparelhos eletrônicos.
Com a sem-cerimônia dos entendidos, Adolfo foi logo ligando os botões, analisando os dados que iam aparecendo. Em três minutos, adquiriu a noção exata da potência de que estava munida a consulente.
— Você está bem de equipamento. Eu acrescentaria mais memória, apenas para dar mais velocidade às respostas. Se quiser, eu providencio.
— Pode providenciar.
— Então, vamos estudar de que tipo de programa você está precisando.
De volta à sala, Adolfo familiarizou-se com os formulários e logo foi tirando a limpo as dúvidas:
— Você, pelo que entendi, está querendo trabalhar não com uma amostra mas com o total dos centros espíritas e de seus freqüentadores.
— Isso mesmo.
— Por exemplo, você pede a idade de cada pessoa e a função que exerce na diretoria. Claro está que vai deduzir quantos diretores têm trinta ou quarenta ou sejam quantos anos forem.
— Perfeitamente.
— Então o seu programa deve estar na linha dos que são usados nos censos, como o escolar, o populacional etc. Quanto mais complexo o cruzamento dos dados, maior precisão nas informações. Por exemplo: quantos centros possuem consultórios odontológicos e, evidentemente, seu percentual. O mesmo para ambulatórios médicos, mocidades espíritas, cursos de mediunidade, sessões de desobsessão, em suma, todos os itens que constam de seu questionário.
— Será que existe algo pronto ou vai ser preciso formular um programa especial.
— Possível sempre é de se adaptar algo existente. Facilita muito a contextualização dos dados. Mas o trabalho que dá, muitas vezes, é maior do que se a gente elaborasse um programa específico. Em todo o caso, vou lhe dar três endereços e você irá informar-se sobre a possibilidade de utilização de algum programa pronto. Mas esteja preparada para, com certeza, redistribuir os quesitos, agrupando-os segundo as exigências específicas do programa.
Ao abrir a pasta com o seu material, descobriu Adolfo que tinha exatamente o de que precisava para acrescentar mais memória ao computador, de sorte que voltaram ambos para o escritório.
Assim que Adolfo se pôs a retirar os parafusos externos para remoção da capa protetora, sentiu desfalecer-se, precisando amparar-se na mesa para não cair. Arlete percebeu a tempo e pôde segurá-lo por baixo dos braços, arrastando-o para uma cadeira de braços, onde o sentou, fazendo que a cabeça se abaixasse, ficando entre os joelhos.
Passados alguns minutos, meio confuso ainda, Adolfo foi restabelecendo-se, enquanto Arlete saía a chamar o irmão e a providenciar um copo de água à qual acrescentou uma colherada de açúcar.
Logo Vivinho estava ajudando o enfermo, fazendo-lhe uma fricção nos braços e dando-lhe vinagre a cheirar. Assim que tomou a água, parece que a lucidez voltou e Adolfo pôde, meio sem jeito, justificar a fraqueza súbita: passara o dia todo sem comer.
Vivinho foi quem se manifestou, peremptório:
— Hoje você é nosso convidado para jantar. Eu vou buscar a relação de pizzas e você escolhe os seus sabores preferidos.
Disse e saiu.
Adolfo experimentou erguer-se e o conseguiu facilmente, de modo que, em pouco tempo, voltava a ligar o computador a verificar o ganho que os chips de memória lhe haviam proporcionado em desempenho.
Arlete estava um tanto aflita, mas deixou que Adolfo terminasse o trabalho. Enquanto isso, punha tento nas feições macérrimas do rapaz, primeira vez que se interessava fisicamente por ele. O resultado pareceu-lhe fraco, mas, bem tratado, poderia vir a ter uma aparência saudável, robusta.
Quando Vivinho reapareceu com a lista dos tipos de pizzas, já Adolfo havia voltado a sentar-se na poltrona. Analisado o rol de tipos, concordaram os três com quatro sabores diferentes, de sorte que pediriam duas pizzas meio a meio.
Saiu Vivinho a providenciar a janta, enquanto Adolfo inquiria de Arlete por que ela não aceitara a sugestão do irmão.
— Ocorre, respondeu a professora, que ele gosta muito de me provocar. Ele sabe muito bem que eu não como nenhum produto animal, ou melhor, até que como ovos e derivados do leite, se não eu não concordaria com nenhuma das pizzas porque todas vêm com queijo derretido.
— Razões religiosas ou filosóficas?
— Só se forem muito subjetivas, a ponto de eu mesma não estar a par disso. Na verdade, criei uma espécie de repugnância de origem sentimental, por saber que todo animal, mesmo os peixes, crustáceos, moluscos, seja o que for, são seres que têm direito à vida. Veja bem: se eu fosse uma ave de rapina ou uma fera carnívora, ou mesmo uma planta deste tipo, nem estaria preocupada com o fato. Mas, desde que eu posso evitar de contribuir para o abate de animais, vou continuar neste meu regime mais ou menos vegetariano.
— E, se você for convidada para uma festa, um almoço, uma refeição, enfim, em que não haja nada além de pratos com carnes, como é que você faz?
— Em última instância, nas casas de pessoas que não me conheçam e não saibam de minha idiossincrasia alimentar, eu me habilito a comer os vegetais, procurando deixar de lado o que não me apetecer. Aí, eu aproveito para informar como é que pratico essa caridade para com os animais, sempre atenta para o fato de que as pessoas podem melindrar-se com a recusa de certas iguarias. Já aconteceu de eu ter de digerir alguns nacos de carne excessivamente recomendadas pelas cozinheiras.
Quando Adolfo ia insistir no tema, voltou Vivinho, assegurando que as pizzas estavam a caminho e que eles podiam preparar-se para a refeição, indicando o lavabo social a Adolfo, onde poderia, como disse ele, higienizar-se, sacudindo a poeira eletrônica de que se contaminara ao abrir o computador.
Enquanto os dois homens se dirigiam à sala, Arlete desapareceu no interior do apartamento. Pôde, então, surpreender-se Adolfo com o capricho com que Vivinho preparara a mesa da sala de jantar, onde colocou uma fina toalha de rendas, um vaso de flores naturais coloridas numa das cabeceiras, enquanto os três pratos rasos, cercados pelos talheres e encimados pelos copos de cristal, se dispunham do outro lado.
Havia garrafas de refrigerantes variados e um vinho repousando num recipiente de couro, espécie de cesta com alça que mantinha a garrafa ligeiramente deitada.
Vivinho, no entanto, tendo observado que Adolfo admirava a composição da mesa e a disposição dos objetos, foi logo antecipando os comentários:
— Você deve estar admirado que minhas prendas domésticas me hajam facultado este gosto requintado pelo belo caseiro. Mas hoje estou sem inspiração, que o que vamos comer é por demais grosseiro para os nossos paladares delicados. Raramente nós matamos a fome desta maneira. Quase sempre, avisado com antecedência, sou eu que dirijo o pessoal da cozinha para a confecção de alguns acepipes especiais. Mas a tempestade destes dias nos obrigou a dispensar os serviçais, todos eles às voltas com problemas sérios de inundação, problemas deles mesmos ou de familiares. Naquela hora que você ligou, eu mal acabara de chegar, pois fui chamado a cooperar com o pessoal da igreja evangélica lá de baixo, freqüentada por vários coleguinhas meus e que me intimaram a comparecer para a distribuição de agasalhos e alimentos. Mas, voltando à arrumação da mesa, eu dispus uma garrafa de vinho tinto francês, vin de table, que achei o mais adequado para acompanhar as pizzas. No entanto, caso você ache que seu mal-estar não vá permitir-lhe apreciar devidamente o alcoólico, poderá satisfazer sua sede com água de Vichy, algum suco ou refrigerante. Sinta-se em casa.
Vivinho, enquanto falava, pousava a mão no braço de Adolfo, como a lhe sentir as íntimas repercussões de suas palavras e de sua presença.
Mas Adolfo, de novo, não pôde manifestar seus pensamentos, que se ouviu o toque do interfone chamando o rapaz, que observou:
— Deve ter chegado a nossa encomenda. Eles vêm entregar aqui na porta, mas não sem antes avisar que estão subindo o boy da entrega e um dos seguranças do prédio.
Rapidamente, Adolfo se recompôs no lavabo, onde toda a sua palidez se refletiu no espelho a demonstrar-lhe que, nos últimos tempos, pouca atenção havia dado a si mesmo, inclusive porque sua barba estava por fazer há vários dias.
Quando regressou à sala de jantar, já lá se achavam Vivinho e a irmã, mas nada de pizza. Vivinho apressou-se a explicar:
— Nós sempre colocamos as pizzas em nossa pedra especial no forno, para aquecê-las mais, quando não é preciso tostá-las um pouco. Mas isso não demora mais de cinco minutos, que eu mantive o forno aceso para não perdermos tempo agora.
Adolfo não prestara tanta atenção nas palavras do moço quanto prestara na toalete da doutora, agora bem menos formal, em um vestido azul claro que realçava a tonalidade morena de sua pele e as formas atléticas de sua silhueta. Notou também que ela havia colocado alguma maquiagem, que os olhos estavam mais vivazes pelo contorno de lápis nas pálpebras, como também os lábios se mostravam mais carnudos e brilhantes, sem que se percebesse uma cor diferente da natural.
Não poderia Arlete deixar de notar o interesse do convidado, tanto que ressaltou:
— A gente passa o dia todo trabalhando que nem se cuida direito. Eu estava tão desgrenhada que foi ótimo você não residir aqui perto, pois eu pude tomar um bom banho antes que você chegasse. Mas não deu tempo para o trato da pele, o que eu não deixo de fazer toda noite. Mas eu não quero cansá-lo com estas coisas de mulher, estas coisas tão materiais, você que tanto se empenhou outro dia, para que a gente discutisse direito o conceito de Deus.
Vivinho, que havia saído assim que Arlete iniciara sua fala, voltou com uma travessa redonda onde depositara uma das pizzas já fatiada.
A cerimônia da distribuição das porções evidenciou o cuidado com que Vivinho dispusera os tipos, uma vez que à irmã forneceu a que ela havia solicitado, como ainda a Adolfo. Ele mesmo separou para si um naco menor, considerando:
— Não pense, querido, que eu como pouco. Este corpinho de bailarino espanhol, que você está vendo tão fino e tão elegante, merece três sessões semanais de duas horas de ginástica orientada pelo meu personal trainer. Mas, como eu prefiro as qualidades com verduras, reservo-me o direito de esperar pela segunda remessa.
Arlete sentiu que as informações adiantavam sobre uma condição financeira superior que, de forma alguma, dava para Adolfo entender sem que lhe dissessem de onde provinha o dinheiro. Então, enquanto partia um pedaço da fatia, esclareceu:
— Vivinho é dono de uma das melhores...
O irmão a interrompeu:
— A melhor, por favor, maninha, que não existe quem cuide dos clientes como eu. Quem vai tratar comigo da saúde e da beleza, recebe o que há de mais top na assistência especializada.
A irmã completou:
— Em suma, é dele a casa de repouso, de emagrecimento e de revitalização mais famosa... Eu ia dizer do Brasil, mas acho que ele vai dizer que é do mundo.
Vivinho estava divertindo-se com a ênfase à sua pessoa que a conversa estava propiciando. Então, tentou ser modesto:
— O que nós fazemos em nosso spa é, acima de tudo, tratar da saúde mental dos que nos procuram por recomendação médica, quase sempre executivos de ambos os sexos em processo adiantado de estresse.
Adolfo ficou curioso quanto à formação acadêmica do rapaz:
— Em que área da universidade você se formou?
Ficou claro ao interlocutor que a expressão de Adolfo demonstrava, pelo circunlóquio, que ele estava impressionado. Então, respondeu:
— Na verdade, eu sou formado em Economia e Administração de Empresas. Com o capital que nosso avô nos deixou, nós abrimos o negócio e demos início ao processo que hoje está, graças ao bom Pai, dando certo.
Perpassou pela mente de Adolfo que as atividades daquele tipo serviam às pessoas de posses, mas guardou a observação para uma oportunidade melhor.
Arlete, porém, como que lendo nas linhas sutis da fisionomia do amigo que lhe traduziam o que ia na mente, afiançou:
— Nossos pais são espíritas de quatro costados, isto é, herdeiros da doutrina praticada por nossos quatro avós. Sendo assim, nós nos sentimos um pouco incomodados por cuidarmos principalmente do corpo, evidentemente visando a estabelecer um parâmetro físico saudável para que o espírito possa desempenhar as suas funções primordiais, segundo o que devem ter programado ao reencarnarem. Por isso, muito embora o espiritismo não cobre o dízimo, nós nos obrigamos a uma contribuição mensal equivalente, o que não constitui para nós sacrifício algum, tanto que adquirimos este magnífico apartamento e ainda estamos projetando algo no campo da educação.
Adolfo aceitou um segundo pedaço, enquanto ia refletindo na pobreza das conversas que tinha em casa, porque a mãe não era versada em nada que não tivesse sido haurido na prática da vida e o irmão, coitado, mal era capaz de repetir as frases costumeiras, incapaz de ter uma idéia própria que se aproveitasse.
Essa imersão em seus problemas familiares, contudo, não o impediu de realizar uma observação judiciosa:
— Se todo o mundo pensasse dessa forma, eu acredito que, em sendo o dinheiro bem aplicado, a pobreza seria muitíssimo amenizada.
Mas nem Vivinho nem Arlete se atreveram a desenvolver o tema e morreu aí sua tentativa. O silêncio dos demais levou-o a considerar que talvez estivessem muito mais preocupados com os projetos próprios, desinteressados em como estaria sendo destinada a doação.
Estava na hora de Vivinho ir pegar a outra pizza, muito embora houvesse mais da metade da primeira na travessa. De volta, o rapaz colocou um pedaço no prato de Adolfo, pegou dois variados para si, enquanto a irmã cruzava os talheres sobre o prato.
A segunda pizza estava bem carregada de brócolis, de modo que seu paladar perdia em tempero para as anteriores. Foi quando Adolfo pôs tento que havia um verdadeiro arsenal de sabores num conjunto de pequenos frascos. Escolheu um que lhe pareceu ser de pimenta e depositou um pouco em sua porção. O azeite estava num recipiente próprio de que ele já se servira, de modo que ficou por aí. Ao colocar o pedaço que cortara na boca, notou que, de fato, era uma pimenta bastante suave, a qual acentuava o paladar da verdura.
A Arlete não passou despercebido o gesto do convidado, surtindo daí um inesperado episódio.
— Eu também gosto muito dessa pimenta da Jamaica, disse ela. Aposto que sua pizza ficou ainda mais deliciosa.
— Eu achei que ficou ótimo. Quer experimentar?
— Quero.
Então Adolfo escolheu uma parte que julgou mais equilibrada em sabores e, pegando o garfo do prato da moça, espetou-o na fração que separou, esticando o braço para dá-la de comer à doutora. Esta apreciou a espontaneidade da dádiva e o naco que mastigava, aprovando-o com o sinal de positivo do polegar.
Ato contínuo, Arlete levantou o copo fazendo menção de brindar, mas não quis tocar o do amigo, porque estava cheio de refrigerante. Então, ela mesma colocou na taça apropriada uma pequena quantidade de vinho e passou-o a Adolfo, que, após tinir taça contra taça, sorveu dois míseros goles, como a festejar a intimidade nascente.
Vivinho olhava para um e para a outra, como que desejoso de descobrir se estava havendo algum contato sentimental além das trocas de sensações gustativas. Mas não chegou a nenhuma conclusão definitiva, a não ser que, considerou provisoriamente, se estava criando um ambiente de amizade entre as criaturas já serôdias.
Mais tarde, depois de terem ouvido várias composições clássicas nos magníficos equipamentos de som do economista, Adolfo retirou-se, fazendo questão de não cobrar nada pelos chips nem pelo serviço, muito menos pelas orientações, levando um pacote com uma pizza quase inteira para a mãe e o irmão, com a recomendação de que não a servisse fria. Arlete ficou no apartamento, Vivinho, porém, desceu com o novo amigo, acompanhando-o até o táxi chamado para transportá-lo para casa.
Ao final da viagem, durante a qual Verônica e Arlete travaram um duelo de sortilégios femininos bem variados, Adolfo foi informado pelo motorista que a corrida estava paga e que a gorjeta havia sido polpuda.
Ao adentrar o apartamento, foi recebido com as lágrimas da mãe: o irmão estava nas últimas.



5. AGONIA E MORTE

Benito estertorava. De um lado, a ciência do Doutor Anselmo.; do outro, a religião do Padre Tibúrcio. Mas não havia mais nada que um e outro pudessem fazer. Assistiam ao desenlace sem interesse, que nem dor nem desespero já não havia no pobre corpo e na pobre mente para debelar. Era uma questão de tempo.
Adolfo chegou-se à porta temeroso de ouvir a voz que sempre chamava por ele, mas, dessa vez, sua presença ali não foi pressentida nem pelos seres saudáveis absortos em seus pensamentos.
Benito conversava com o fantasma do pai:
— Papai, papai, não vá embora. Fique em casa. A mamãe está chorando tanto. Fique, papai...
Adolfo estranhava que o irmão se referisse ao pai, que nem conhecera, a não ser por uma única vez que eles, em tempos infantis, o viram, por acaso, passar do outro lado da rua, tendo o mais velho feito questão de apontar para o senhor bem vestido, de terno e gravata, que nem reparou na presença deles, mencionando-o como sendo a pessoa a quem deviam o respeito de filhos.
Lembrava-se muito bem de que Benito, depois, em duas ou três ocasiões, ao transitarem pelo mesmo local, perguntara se as pessoas que passavam eram o seu pai. Mas isso durou muito pouco tempo. Então, como é que agora se referia a um desconhecido, exprimindo até emoções que Adolfo poderia jurar que o mano não presenciara.
Benito chamava o pai sem parar, sem denotar angústia ou reprimenda. Falava como se o pai fosse sair para trabalhar e a criança lhe pedisse para não ir, consciente de que não haveria como dissuadir o outro, que a necessidade se compreendia.
Adolfo imaginou que o espírito do pai pudesse ter vindo receber o do filho. Era incipiente no conhecimento da doutrina espírita, mas sabia que era possível que isso acontecesse, ainda que as coisas da vida não apontassem para o fato como uma solução.
Sentou-se na cadeira junto à porta, sem chamar a atenção dos que lhe voltavam as costas, e ali quedou a ouvir a voz do irmão pedindo pela benevolência paterna.
Estranhou, sobremodo, que estava até imergindo numa sensação de absoluta paz. Era como que um grande peso lhe estivesse sendo tirado das costas. Gostava muito do irmão, de quem fora companheiro a vida toda. Mesmo nos anos de casado, dedicara-lhe muito tempo, fazendo questão que se exercitasse, caminhando pelas ruas, naquela época mais tranqüilas, indo até a praça, onde via o irmão divertir-se com pequenas coisas: um pássaro que vinha comer na grama, uma peteca que batiam sem jeito, um jogo de bola de meia improvisado, bolinhas de gude que não necessitavam de caçapa e tantas outras invenções de momento que punham em ação os músculos preguiçosos do comilão.
Somente depois de ficar mais de vinte minutos naquela contemplação é que Tibúrcio lhe notou a presença, levantando-se para consolá-lo, chamando a atenção de Anselmo.
— Dolfinho, meu caro, tenha paciência que seu irmão em breve irá descansar. Eu já lhe ministrei os últimos sacramentos e acredito que ele não terá contas a ajustar com o Criador, que pecado algum eu nunca ouvi de sua boca, nem ninguém jamais ouvi falar que dele reclamasse. Não era um santo, porque não tinha consciência de si nem do mundo, mas mal não fez e nunca se deixou tentar pelas forças infernais.
Bem sabia o padre que Adolfo há muito tempo, desde que perdera a esposa, nunca mais pusera o pé na sede de sua paróquia. Mas sopesava as palavras diante do moribundo, que não era hora de recriminações.
Anselmo esperou que Tibúrcio largasse o rapaz, para abraçá-lo por sua vez:
— Esta hora estava prevista desde há muito. A ciência tem evoluído bastante, inclusive na detecção dos casos de Down desde o útero, mas até aqui todas as medidas são apenas paliativas. Até que seu irmão sobreviveu bastante, que são poucos os que alcançam os trinta anos. Mas a crise dolorosa está superada, sendo uma questão de poucos minutos seu passamento.
— Posso conversar com ele?
— Está inconsciente. Não responde mais a nenhum estímulo. Delira e não pára de chamar o pai, mas, se ele estivesse presente, também não seria nem reconhecido, nem ouvido.
Como se não tivesse ouvido nada do que disse o médico, Adolfo chegou-se à cabeceira do leito e começou a falar com o irmão as mesmas coisas que lhe dizia quando era apenas um bebê. Foi o que lhe desencadeou um pranto silencioso e sereno, lembrança pura de momentos de felicidade.
Dona Isabel apareceu na porta, mas não perdeu a compostura, que as lágrimas, que um instante antes se haviam estancado, voltavam agora à visão do quadro que a perturbava. Aproximou-se de Adolfo e o abraçou pelas costas, encostando-lhe na espádua o rosto, como a simbolizar que era nele que esperava amparar-se dali por diante.
Benito exalava os últimos suspiros e, numa atitude surpreendente, teve forças para dizer:
— Adeus, papai. Adeus, mamãe. Adeus, Chiquinho. Adeus, Dolfinho.
Foram suas derradeiras palavras.
O Padre Tibúrcio convidou os presentes a que o acompanhassem em uma oração e, durante cinco minutos, volveu os pensamentos e os sentimentos ao Senhor, rogando que a alma de Benito fosse acolhida pelos anjos e conduzida ao Reino dos Céus. Ato contínuo, solicitou que Dona Isabel o acompanhasse para delinearem o plano dos eventos religiosos, momento em que ele lhe explicaria quais as providências que deveriam tomar.
O Doutor Anselmo saiu para redigir a competente declaração a ser entregue ao cartório para a expedição do atestado de óbito, com a respectiva causa mortis.
Adolfo foi em busca da agenda, para os telefonemas obrigatórios, inclusive para a agência funerária que providenciaria velório e enterro condignos. A primeira pessoa a quem avisou foi o seu irmão Francisco, que não demonstrou nenhum sobressalto com a notícia, explicando que já estava de saída e pedindo para Adolfo esperar por ele para as providências funerárias.
Percorrendo os números dos telefones, Adolfo deu com os das pessoas do centro espírita recentemente incorporadas ao rol de suas amizades. A primeira pessoa com quem conversou foi Verônica, que precisava ser avisada da razão de sua quebra de compromisso para o dia seguinte. Logo se prontificou ela a realizar as demais ligações, conforme as pessoas cujos telefones guardara desde a tarde. No entanto, faltavam informações importantes, como local do velório e horário do enterro. Combinaram, então, que Adolfo voltaria a ligar assim que obtivesse aqueles elementos.
Era preciso efetuar as chamadas para os demais familiares, que esses viriam diretamente ao apartamento. A primeira pessoa foi o Tio Eduardo, que imediatamente desobrigou o moço de efetuar as demais ligações familiares. Deixasse com ele.
Percorrendo a agenda, havia deixado para trás as irmãs. Não obstante, efetuou a ligação à mais velha, cujo número lhe havia sido fornecido quando da leitura do testamento do pai. Ligou e soube que já não morava mais naquele endereço. A pessoa não lhe pôde informar o paradeiro atual da moça. Então, utilizou o número do advogado, a ver se resolvia o problema.
De fato, o causídico tinha um número, mas era o da mãe das moças. Servia? Se não tinha outro jeito... Feita a ligação, uma voz masculina o atendeu, identificando-se como marido da pessoa procurada. Adolfo explicou a situação, pedindo para que as irmãs fossem notificadas do passamento de Benito.
Naquele meio tempo, chegou Francisco, que logo foi confortar a mãe. Em seguida, após Adolfo ter referido tudo quanto fizera, os dois irmãos combinaram como seriam o velório e o enterro, tendo o mais velho assumido a responsabilidade das providências oficiais, liberando Adolfo para que fosse descansar, pois sua aparência não justificava um pernoite de vigília. Aliás, observou-lhe Francisco que precisaria estar bem para as intensas atividades do dia seguinte.
Foi assim que se fechou em seu quarto, a ver se conciliava o sono.
O cansaço, porém, era demasiado grande e as emoções do dia muito profundas para que pudesse pregar os olhos de imediato. O dia foi sendo recapitulado passo a passo, chegando Adolfo à conclusão de que poucos foram tão intensamente vividos como aquele.
Enquanto perpassava os episódios recentes, manteve-se bastante aceso, colocando à frente da vista, num plano de memória bastante próximo da realidade, as figuras, as ações e as coisas. Mas, quando volveu o pensamento para os fatos do passado, coisas, ações e figuras começaram a embaralhar-se e ele perdeu o sentido do momento, mantendo-se, porém, num sono agitado, como se tivesse plena consciência de tudo que ia rememorando, mesmo que a imaginação fosse acrescentando muitos acontecimentos que absolutamente não vivenciara.
Nesta fase de caos imagético, passou a vislumbrar a figura da esposa junto à do pai, pessoas mais apagadas dos tempos infantis, como os avós que mal conhecera e os irmãos e irmãs deles, de que tinha vagas reminiscências. O que caminhava paralelamente ao enredo que as novas personagens desenvolviam era uma espécie de contraponto da inteligência, que lhe dizia que tudo aquilo era absolutamente ilógico, que ele estava dando contextura familiar a meras pessoas que talvez tivesse visto no meio dos transeuntes de cada hora.
Mas a perturbação foi mais forte, de modo que o sono ganhou dimensões mais profundas e ele realmente adormeceu, mantendo apenas a sensação de que estava repousando, como se todo o organismo exigisse que a mente relaxasse, para que pudesse restaurar as energias desgastadas.
Estando mais sereno, depois de umas duas horas de sono tranqüilo, imergiu dentro de um quadro em plenitude de paz, integrando um grupo de trabalhadores vestidos de branco, espécie de enfermeiros ou médicos, cuja atividade maior era cuidar do irmão falecido, como a dar-lhe condições de sobrevivência, engolfando-o numa espécie de neblina a que não faltavam reflexos luminosos, como se estivesse eletrificada. Davam-lhe alento para voltar a viver e Adolfo se empenhava, mais que todos, em realizar o milagre da ressurreição.
Quando notou que estava ao lado do pai, perturbou-se, desejoso de perguntar-lhe o que fazia ali, ele que abandonara o lar pelo nascimento do deficiente mental. Mas o médico que coordenava os trabalhos, o qual não reconheceu como sendo o Doutor Anselmo, exigiu-lhe, com um gesto brusco, que silenciasse e que desse tudo de si para que o irmão pudesse libertar-se das presilhas corpóreas.
Só então compreendeu que participava do desenlace do perispírito da carcassa material que o espírito do irmão estava deixando. Instintivamente, elevou o pensamento como em busca de uma região de bem-aventurança, onde se postou de joelhos a rogar pelo auxílio de Jesus, momento que pensou estar na companhia dos apóstolos, colorindo o sonho com os trajes da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci.
Quando acordou, trazia a recordação completa de todas as peripécias da madrugada. Pensou que tivesse dormido no máximo umas três horas, mas espantou-se de ver que o relógio apontava para as seis da manhã, havendo dormido, portanto, quase sete horas.
Mas não se ergueu de imediato. Prestou atenção para ver se ouvia vozes. Nada. Estranhou que os familiares não tivessem chegado ainda, ou se mantinham em silêncio, por respeito ao luto da mãe e dos irmãos.
Desta feita, desejou recuperar a lembrança do sonho, pensando que, se o rememorasse fase a fase, não iria esquecer de nada, pois se sentia impressionado com o sentido de realidade das imagens. Relembrou sonhos antigos que lhe ficaram à disposição da mente e situou o daquela noite entre os mais estupendos.
Quando volveu a olhar as horas, o relógio marcava sete horas e vinte minutos. Ele havia dormido mais de uma hora sem perceber, como se fosse natural a recapitulação de todos os ingredientes do sonho anterior. Desta feita, no entanto, adquiriu consciência de que deveria participar dos eventos fúnebres, muito embora ele mesmo só se sentisse de luto formalmente, pela imposição de um sentimento de fraternidade e de perda que o cérebro lhe criava.
Trocou-se rapidamente e saiu do quarto preparado para as cenas tristes do velório, que as condolências dos familiares não lhe deixariam esquecer de que tinha de prantear, não a morte, que fora mansa, mas a vida, que fora infrutífera.
Mas não encontrou ninguém em casa. Havia um bilhete sobre a mesa da cozinha com o endereço em que estava sendo velado o corpo do irmão.



6. RETOMANDO A VIDA

Na erraticidade, Benito foi convidado a participar das cerimônias fúnebres relativas a seu passamento. Se lhe perguntassem como lhe chegou o convite, não saberia explicar. Foi como que uma idéia que lhe surgiu, algo meio confuso em relação aos procedimentos lógicos dos raciocínios, que nem encadear dois fatos conseqüentes estava conseguindo. De qualquer modo, não ofereceu resistência, pois se sentia leve e solto, lépido mesmo dada a comparação irresistível com os dias de cativeiro no leito de enfermo.
Vagamente lhe vinha à memória a figura paterna, pessoa que conhecia pelas fotografias antigas e por uma sombra reminescente que conservara, a andar apressada no meio da multidão.
Então, teve um sobressalto, pois não reconhecia o lugar em que estava. Se estivesse andando ao derredor do quarteirão de sua casa ou se o tivessem posto num ônibus com recomendação expressa ao motorista para indicar-lhe o momento de descer, como sucedeu diversas vezes, ainda teria adquirido confiança e sustentado o passo. Mas indo ao léu, somente impulsionado por um desejo não caracterizado de caminhar no sentido que lhe indicava a extensão de uma rua enevoada, sem que visse o término, encoberto que estava por uma bruma esbranquiçada, como a que se recordava de ter visto às vezes da janela de seu apartamento, isso o deixava inseguro. Mas avançava sempre, que, ao olhar para trás, a escuridão o assustou deveras.
Como não sentisse fome ou sede, calor ou frio, não se lembrou de chamar a mãe. Lembrou-se, sim, de Adolfo, que vira ao lado de sua cama, quando se sentia sufocar, aumentando muito a força e o ruído que as batidas do coração faziam repercutir-lhe no cérebro. Mas um toque de Adolfo lhe retirara esse peso do peito. O que ele não entendia era o porquê de o irmão ter vestido um trajo todo branco, com uma espécie de coroa brilhante na cabeça. Recordou-se ainda que o vira altercar-se com a imagem do pai e que, em seguida, fora embora, deixando um rastro prateado que ele via desaparecer aos poucos.
Era uma lembrança absolutamente pacífica, como se tudo se estivesse resolvendo de uma vez para sempre, tanto que alguma leve lembrança dos anseios de permanência que ultimamente o estavam assaltando não lhe representava qualquer afogo ou desequilíbrio.
Enquanto caminhava, uma figura feminina se achegou a ele, tomando-lhe a mão carinhosamente e afagando-lhe os ouvidos com palavras maviosas de esperança e de fé, insistindo em que a misericórdia do Criador lhe facultara o entendimento das palavras.
Notou que a moça tinha uma fisionomia conhecida mas não foi capaz de assimilá-la a nenhuma pessoa de seus relacionamentos. No entanto, ela o tratava com intimidade, chamando-o de irmãozinho e dizendo-lhe que iria cuidar dele, agora que estava melhorando bastante.
Benito sentiu uma espécie de repelão interior, como se sua natureza íntima reagisse à luz de uma intuição que o magoou profundamente. De repente, suspeitou de que havia algo de muito errado em tudo aquilo, que a pessoa que ele se representava não correspondia direito ao pensamento de uma melhoria de seu estado geral. Antes, cuidava de perceber que idéias estapafúrdias eram aquelas de que iria ter de passar recluso por algum tempo, sem que se determinasse a causa da punição.
Mas a companheira sorriu para ele com o ar angelical da Nossa Senhora, cuja estampa em forma de santinho ele apanhava toda noite para rezar, como lhe ensinara a mãe. Entretanto, a lembrança de Dona Isabel não assumiu o domínio de sua mente, tanta era a formosura e o frescor juvenil da rapariga que caminhava a seu lado.
Inopinadamente, quando ia mais enleado em sentimentos que o remetiam para os páramos de sua bem-aventurança física, porque não sentia nenhum peso corpóreo, viu-se diante de um féretro rodeado de pessoas, todas sentadas e cochichando.
Benito aproximou-se de cada uma delas, estranhando que não lhe dirigissem a palavra. Notou que a mãe estava muito triste. Reconheceu o Chiquinho, o irmão que lhe dava tantas guloseimas e que o levava a viajar de carro para brincar com as crianças. Estas lá não se achavam. Mas estava a cunhada, segurando a mão de Dona Isabel. Desejoso de ver Adolfo, foi passando todos os presentes, reconhecendo os tios, as tias, os primos e respectivos cônjuges, viu até um vizinho do apartamento de baixo, mas Adolfo não viu.
A sua companheira lhe perguntou:
— Benito, você sabe onde nós estamos?
Era preciso revolver os refolhos da memória. De pronto, sua reação íntima foi de negar acesso a tal tipo de conhecimento. Mas, para surpresa sua, respondeu corretamente:
— Estamos num velório, porque as pessoas estão tristonhas, existem flores, velas acesas, um crucifixo e um caixão de defunto.
— E quem morreu?
Benito reconheceu que bem poderia ter sido ele, entretanto, afastou tal idéia, tendo em vista que estava vivinho da Silva, conversando com a moça, que insistiu:
— Você não quer saber de quem se trata?
Benito olhou firme para o fundo dos olhos da moça, que o fitavam com doçura extrema. Foi quando lhe veio mais um lampejo:
— Mas você é a Laura, a mulher de Adolfo.
Aí ficou todo atrapalhado, uma vez que em sua frente se pintou um quadro em tudo semelhante ao daquele momento. Regressou para o tempo em que vira a cunhada no caixão, comprovando mentalmente que algo havia de muito estranho. Ela morrera e estava ali, junto a ele, única a dar mostras de notar-lhe a presença.
Buscou um lugar vazio e foi sentar-se no fundo da sala, em uma cadeira de braços, toda branca, com espaldar alto e acolchoado. Estava transido de medo porque compreendera que estava diante de um fantasma bem real, alguém que saíra das histórias que tanto o assustaram a vida toda, como se a cunhada fosse capaz de se transformar num vampiro ou numa figura horrenda daquelas que vira tantas vezes na televisão, a sangrar, com os dentes pontiagudos, os pescoços de suas vítimas.
Mas a moça, ao invés de se tornar mais aterrorizante, encheu-se de uma luz azul, com rebrilhos faiscantes na veste, como a dar vida ao quadro de Nossa Senhora. Então, estendeu o braço e pousou a mão sobre a cabeça do cunhado, impregnando-a com uma energia suave que debelou todas as idéias de sofrimento, acendendo-lhe, porém, a chama da verdade vital, de sorte que todos os acontecimentos de sua existência terrena lhe perpassavam pela memória, numa sucessão rápida de quadros, muitos ressaltados pela importância, outros, a maioria, fugidios como a sombra. Retraçou o coitado a existência corpórea toda, com certo amargor porque compreendera que nada realizara efetivamente na qualidade de ser humano, chegando finalmente a perceber que era o seu o corpo ali exposto.
Então, suas lembranças ultrapassaram os limites da derradeira romagem terrena e lhe veio à memória a prece de agradecimento que realizou ao pé do corpo da encarnação anterior, em que exaltava a bondade do Criador por lhe haver fornecido um intelecto brilhante, que lhe dera profunda penetração no mistério da existência. Mas tal oração fúnebre não haveria de corresponder à verdade, se dita junto ao organismo defeituoso ali presente.
Benito olhou para a ex-cunhada com ar de súplica, compreendendo que precisava fazer valer de algum modo uma existência corpórea inútil quanto a aspectos tão fáceis de caracterizar, mas para cujo mérito ele não despertara.
Laura, simplesmente, perguntou-lhe:
— Que pode o Senhor realizar de mau?
Benito aproximou-se do caixão para dar adeus à carcaça-prisão que acabara de abandonar, ainda sem estar compenetrado do que deveria dizer em forma de oração. Num esforço concentrado, realizou uma tarefa de recapitulação, tentando recuperar alguma passagem que justificasse aquele castigo. Encontrou na própria ação que executava a razão que estava buscando e assim se manifestou:
— Meu Pai, perdoe-me a pretensão de entendimento integral de todos os desígnios relativos à minha pessoa. Baste-me, nesta hora, agradecer o esquecimento de minhas culpas, que o estudo de meu destino eu devo pôr em suas benignas mãos. Baste-me esta recuperação da inteligência e do uso dos recursos que vão despertando-me para a existência mais perfeita cá na erraticidade, conquanto ainda de ínfima expressão perante a eternidade do meu processo evolutivo. Que me seja concedido agradecer, simplesmente, o fato de existir, porque, sendo uma criatura sua, Senhor, eu bem sei que mereço a mínima consideração e apreço de meu próprio ego. Que esta minha vida, ao menos, se não adiantou muito para meu progresso, o que eu peço que me desculpe por não me achar ainda em condições de avaliar, que tenha servido para o adiantamento das pessoas que de mim cuidaram com muita paciência, com muita dedicação e (por que não dizê-lo?) com muito amor e respeito. Eu bem sei que nem todos souberam suportar o fardo de um ser inferior na família, mas é por esses que eu peço mais intensamente emocionado, porque compreendo, como está minha consciência a acusar, que se julgam em débito para comigo e para com o Senhor. Que sua benevolência e infinita misericórdia alcancem todos os corações que um dia bateram em descompasso por mim, na angústia de uma dor presumida, que, na verdade, constituiu apenas uma fantasia pela ilação de que a anormalidade física devesse corresponder a uma enorme injustiça. A bênção, Pai, também para toda a humanidade, para todas as suas criaturas, em todos os círculos existenciais.
Antes de partir amparado por Laura, Benito fez questão de realizar uma vibração de afeto junto a cada pessoa ali reunida, tendo-se concentrado no pedido para também estar junto de Adolfo, no que foi atendido como que por encanto, porque o irmão chegava justamente naquele instante.
Benito se aproximou dele, estranhando sobremodo a sensação de que estava sendo pressentido, porque Adolfo lhe enviava uma clara mensagem de que deveria partir em paz, confiando nos seres que o conduziam para o melhor lugar que sua condição prescrevia.
— Laura, que sucede com Adolfo?
— Está desenvolvendo sua faculdade mediúnica.
— Quer dizer que ele percebeu que eu estava querendo que ele chegasse?
— Não, exatamente. Neste caso, foi você que não percebeu que houve uma suspensão psíquica em sua organização perispiritual, perdendo a noção do tempo terrestre, enquanto imergia em suas recordações relativas a cada pessoa de quem se aproximava. Poderia ter ido bem mais depressa, contudo, nesse caso, suas percepções dos sentimentos que cada qual ia despertando-lhe ficariam, vamos dizer assim, temporariamente bloqueadas. Como você terá de resgatar todas as afeições, relacionando-as com as vibrações emocionais boas ou ruins de antanho, com o fito de definir até que ponto houve um progresso moral geral e particular a cada indivíduo, foi bom que não se apegasse com tanta ênfase à figura ímpar daquele que foi seu melhor parceiro na vida. Não se estenda agora em considerações. Como lhe solicitou meu querido Adolfo, que também me identificou neste recinto, confie em mim e nos demais socorristas que estão auxiliando-me nesta recomposição perispiritual.
Naquele justo instante, o ambiente na erraticidade se encheu de figuras que pareceram ao recém-chegado irradiantes de luz e que o puseram de volta naquela estranha cadeira transformada em maca, realizando transfusões energéticas que, num crescendo, foram apagando a consciência de Benito, até que ele se sentiu sem ânsias e sem temores, completamente sem sensações externas, como que imerso numa atmosfera em que os haustos que absorvia lhe impregnavam com um novo sentido de percepção da realidade.
Quando despertou para o mundo exterior, viu-se num leito hospitalar, ligado a estranhos aparelhos, de todo desconhecidos para sua memória mecânica e funcional completamente revigorada. Sabia que nunca antes estivera em contato com aquele instrumental, mas tinha consciência de que só recuperara as recordações da última existência, incapaz de se lembrar do que acontecera desde que fizera aquela oração diante do cadáver da penúltima encarnação até o momento em que vira a luz do dia na derradeira jornada terrena. Na direção do passado anterior entre os vivos e entre os desencarnados, tudo continuava um mistério.



7. FLASHES DE UM DIA TRISTE

Adolfo chegou ao velório absolutamente tranqüilo. Refletira bastante a respeito da vida do irmão e, a considerar corretas as informações da doutrina espírita que assimilara, achou que poderia o sonho da noite ter representado uma espécie de premonição quanto a vir a exercer ele uma tarefa mediúnica, já que vira o espírito em trabalho de separação do invólucro físico.
A dar crédito a sua intuição, o espírito de Benito poderia estar por perto, caso estimasse comprovar a afeição que as pessoas de seu círculo familiar nutriam por ele. Foi quando lhe rogou para que buscasse uma região mais consentânea com a sua nova condição, imaginando que Benito teria imensas dificuldades em recuperar a consciência pelo fato de ter passado algumas décadas preso a um organismo deficiente.
Irresistivelmente, foi levado a recordar-se de Laura, única que partira em condições de prestar assistência ao irmão, já que a moça sempre estivera presente ou apoiara os momentos que Adolfo dedicava a obrigar o mongolóide a se exercitar. Pareceu-lhe mesmo ter visto a esposa a afagar-lhe os cabelos, momento em que se concentrou numa prece simples, em que solicitava às forças superiores que dessem amparo àquela obra de benemerência espiritual.
Todo esse episódio se mesclou com a observação de como estava a feição do defunto, como estava vestido, as flores que o cobriam, até a tampa do caixão que, de pé, se apoiava na parede dos fundos. Estando ali perto demonstrando pungente sentimento fraterno, ninguém ousou interromper-lhe as reflexões.

Sentado ao lado da mãe e do irmão, Adolfo cochichou:
— Francisco, como é que eu não ouvi nada? Vocês retiraram o corpo e eu fiquei sem saber. Quem é que esteve em casa?
— Só o tio Eduardo, que me recomendou que evitasse perturbar o sossego dos condôminos trazendo muita gente para o prédio.
— Quer dizer que ele não avisou os outros?
— Ele preferiu mandar todo mundo para cá. Sendo assim, só hoje muito cedo é que o povo começou a chegar.
— E quem ficou aqui toda a noite?
— Nós chegamos só às cinco. Deu tempo de fazer tudo em casa.
— Quem foi que o vestiu?
— O pessoal da funerária.
— E como é que ele coube naquele terno, se engordou nos últimos meses?
— Como sempre se faz: abriram a costura das costas e ajeitaram a parte da frente.
— Estou reparando que o caixão não deve ter sido barato. Então, vamos rachar as despesas.
— Nada disso. O tio Eduardo providenciou tudo conforme nosso pai havia disposto. Ele previu que Benito não duraria muito e pagou um plano completo antecipadamente, através de um contrato específico registrado em cartório. Está tudo incluído, inclusive um lanche que os familiares têm o direito de tomar e cujos tíquetes eu já distribuí.
— Você já sabia disso tudo?
— Sabia. Mas nós resolvemos não contar nem para você nem para a mãe, porque nos pareceu muito mórbido.

Às dez horas da manhã, entrou um magote de pessoas que Dona Isabel não conhecia. Capitaneava o grupo o dirigente espírita, Reinaldo, vindo logo atrás Dario e Mário. Em seguida, entrou Arlete, acompanhada do irmão Vivinho, e, logo após, Regina, ajudada por Olívia. Finalmente, entrou o carrinho com a Edna, empurrado pelo marido, o França.
Adolfo levantou-se, admirado que todo o grupo estivesse presente. Ficou sem jeito. Quase perguntou o que estavam fazendo ali, porque lhe fulgiu na mente a possibilidade de algum trabalho de assistência espírita. Mas Reinaldo, como que orquestrando o que diriam os demais, foi logo externando ao companheiro seus sentimentos de condolências.
Passou-se, então, todo o cerimonial das apresentações, fazendo questão Adolfo de indicar cada parente a todo o grupo que se deslocava para diante de cada pessoa, que se levantava com aquele ar distante de quem perdeu algo, mas num outro lugar.
À menção de que eram espíritas, cada qual esticava os olhos como a esperar algum fenômeno ou demonstração de força paranormal. Tio Eduardo foi o único que se deixou instigar pela curiosidade, tomando Reinaldo pelo braço e conduzindo-o para o corredor, onde poderiam conversar à vontade.

Edna fez questão de chamar a atenção de Adolfo quanto ao fato de Verônica não ter vindo:
— Ela ficou no meu lugar, mas virá para o enterro.
Vivinho logo se despediu, pois precisava cuidar dos negócios. Viera para saber como passara a noite o novel amigo. Com um longo abraço, pôs-se à disposição de Adolfo, requisitando-lhe os préstimos relativamente aos computadores instalados em sua casa de repouso e tratamento:
— Conto com você para otimizar os nossos recursos. Vá até lá, faça um levantamento de nossas necessidades reais e elabore um orçamento. A firma está em forte expansão e precisa atualizar-se. Com este cartão, você ou alguém indicado por você poderá passar uma temporada gratuita. Aproveite.
Os trejeitos característicos do irmão da Arlete inibiram Adolfo que mal balbuciou um agradecimento, procurando desvencilhar-se do longo aperto de mão que sucedera ao abraço.
Mas Arlete juntou-se ao grupo e despachou o irmão:
— Você pode ir sossegado que eu já arrumei condução para ir à faculdade.
Enquanto Vivinho se afastava, Arlete foi explicando a Edna e a França como era a clínica a que fizera referência o irmão.
Mário e Dario se aproximaram de Adolfo, afirmando que tinham vindo por uma questão de solidariedade, mas que precisavam voltar às lides daqueles dias de tragédia.
Dario enfatizou:
— Eu deixei minha mulher com a incumbência das compras, que aquela turma lá em casa está apenas com a roupa do corpo. Eu preciso arrumar serviço para os homens, pelo menos, para recomeçarem a vida. Aliás, eles não têm muita iniciativa. Eu preciso falar para fazerem cada coisinha. Até para colocarem as telhas, eles precisaram que eu explicasse tudo. De onde eles vieram, as casas eram cobertas de palha.
— Nordestinos?
— Disseram que fugiram da seca. Três deles deixaram as famílias à míngua. Eu desconfio que os outros dois também, mas não quis perguntar se as mulheres não foram arrumadas por aqui mesmo. Em todo o caso, elas ajudam a preparar as refeições, mas ficam por ali, sem ânimo de ir atrás de qualquer trabalho, mesmo que fosse voluntário, que as autoridades estão precisando de gente com saúde para atender os enfermos e os desalojados. Pelo menos, eles estão tendo um teto.
Adolfo fez um gesto como que indicando que lamentava não poder ajudar e ambos se despediram dele, dizendo que não poderiam voltar para o enterro.
Foi a vez de Olívia se aproximar, conduzindo a amiga quase cega, a dos óculos de fundo de garrafa, Regina, que tinham também de ir embora.
Vivaz, esta última se despediu:
— Observei que a família está conformada. Eu não lhes disse, mas o que eu perco por não ver o campo material, eu ganho percebendo a esfera fluídica. Reinaldo me disse para não contar as coisas que eu vejo, mas não posso deixar de dizer que o ambiente espiritual está absolutamente limpo, sem nenhum obsessor ou zombeteiro por perto, ao contrário dos outros velórios, que estão apinhados de sofredores.
Olívia acrescentou:
— Eu não vejo nada além da nossa realidade, mas eu senti que existe uma forte confiança em que Deus tenha recolhido, como eu diria nos meus tempos de hábito, em seu reino de paz e amor a alma de seu irmão. Principalmente sua mãe me pareceu bastante tranqüila no sentido de ter feito tudo ao alcance dela para sustentar o filho de maneira a evitar maiores transtornos devidos à sua deficiência mental.

A partir das onze horas, as pessoas começaram a se revezar junto ao féretro, estabelecendo um rodízio para o almoço. Foi assim que Arlete foi convidada por Adolfo para irem tomar um lanche.
A professora aproveitou a oportunidade para se despedir de Dona Isabel e de Francisco, pois ela deveria estar na faculdade às quatorze horas. Para Adolfo, reservou a próxima hora e ambos encaminharam-se para o corredor, onde encontraram Eduardo e Reinaldo conversando animadamente.
Os quatro, então, dirigiram-se ao pátio externo, onde havia bancos debaixo das árvores, junto a mesas rústicas onde poderiam pousar os copos e os pratos de suas refeições.
Antes de se acomodarem, porém, achegaram-se ao balcão para fazer os pedidos, optando cada qual por um tipo de comida, tendo insistido Arlete que Adolfo pedisse o mesmo que ela: iogurte sem açúcar batido com banana e abacate e sanduíche de pão integral, com recheio de pasta de amendoim.
Adolfo observou que era muito frugal perto da fatia de pizza que ele havia comido em casa, mas nada disse porque sabia que a doutora estava a par das dietas mais adequadas, provavelmente saídas diretamente dos conselhos de nutricionistas internacionais.
Mas não tiveram oportunidade de conversar a respeito, pois Eduardo os chamou a testemunhar as elucidações que estava obtendo do dirigente espírita que ele acabara de saber palestrante, coordenador de cursos e participante de reuniões mediúnicas, quer como doutrinador, quer como médium.
— Estou recebendo uma verdadeira aula. Vou recapitular para vocês. Quando Benito nasceu e se descobriu seu problema mental, eu saí a investigar o porquê daquele defeito. Claro que meu interesse se concentrava na área física e logo fui informado de que se tratava de um cromossoma a mais, portanto, uma falha genética muito mais comum quando a mãe é idosa. Isto vocês já sabem. Mas eu fui também querer saber como é que as religiões explicavam tal falha na concepção das criaturas, o que perigosamente me remetia à suspeita de que Deus poderia falhar. Vou passar pelos resultados que obtive no catolicismo e no protestantismo, para referir apenas o que me disseram três espíritas, em diferentes ocasiões. Mais ou menos, eles me disseram a mesma coisa, ou seja, que se tratava de reencarnação expiatória de espírito em débito com um passado em que teria abusado de seu intelecto privilegiado. Confesso que não aceitei nem insisti. Mas o nosso Reinaldo aqui concordou em me ouvir alguns argumentos contrários em que avento a hipótese de se tratar de casos de acidente genético, pura e simplesmente. Na qualidade de policial e de delegado, eu tenho de partir do princípio de que o réu é inocente até prova em contrário. Então, dizer de antemão que o sujeito tem culpa por haver delinqüido em outra encarnação é presumir sem provas, é acusar sem abertura do competente inquérito, é condenar sem nenhum laudo pericial ou investigação dos fatos. Desculpem-me o entusiasmo, mas vocês devem ouvir o que este bondoso mentor espiritual tem a dizer.
Reinaldo estava à vontade pois recentemente procedera a uma pesquisa a respeito, pesquisa que deveria redundar em exposição encomendada justamente por um pessoal que pretendia abrir clínica de tratamento de deficientes mentais. Então, resumiu o que havia dito ao tio de Adolfo:
— O maior problema da tese de que os debilóides (vejam que não estou dando sentido pejorativo ao termo) são devedores e, por isso, carregam um carma de expiação reside justamente na objeção que o nosso advogado interpôs, qual seja, que tais pessoas cometeram crimes e, o que ele não disse, constituem uma provação para os familiares que estariam, desta forma, recebendo um castigo, segundo a fórmula da pena de talião, a do olho por olho. Eu concordei com ele de que podem existir casos de acidentes genéticos, o que não contraria nenhum ponto da doutrina espírita, pois é sabido que Kardec recebeu orientação dos espíritos de que nem sempre que cai um tijolo na cabeça de alguém é porque a pessoa estava predestinada a isto, nem porque o desastre tenha sido provocado por inimigos de outra esfera. Então, o acaso existe, pelo menos no sentido material. A partir daqui é que se pode inferir que muitas vezes não se trata de acaso, já que o espírito, com seu livre-arbítrio, tem a faculdade de solicitar uma vida de dificuldades e sacrifícios, inclusive ajustando-se num grupo familiar que só terá a ganhar moralmente, caso aceite o encargo com altruísmo e boa vontade.
Ainda Arlete e Adolfo dariam alguns exemplos abonatórios para agrado dos outros dois e a hora transcorreu como nos velhos tempos dos ágapes filosóficos, tendo a professora deixado parte do sanduíche e um quarto do copo da vitamina, o que chamou a atenção do analista de sistemas.
Fazendo referência que marcara uma hora para ser atendida no endereço que Adolfo lhe dera, Arlete se despediu, conseguindo carona com Reinaldo, que quase convenceu Eduardo a comparecer à próxima reunião do grupo do sobrinho, reunião que se achava suspensa, aguardando que algum centro próximo espontaneamente oferecesse as dependências.

Eduardo não sabia que o sobrinho estava freqüentando o centro espírita. Curioso, quis saber:
— O que é que vocês fazem de tão misterioso naquele recinto?
Adolfo precisou esclarecer que tinha ido três vezes apenas, uma para informar-se, outra para ser entrevistado e uma terceira em que fez parte de uma discussão a respeito de um livro do patrono do espiritismo, Allan Kardec, obra que, pelo título e pelo respeito com que foi tratada pelas pessoas que o receberam, deveria ser uma das mais importantes: O Livro dos Espíritos.
Contou rapidamente como é que discutiram o conceito de Deus exarado pelos espíritos que respondiam ao autor da obra, demonstrando seu entusiasmo pela maneira aberta com que os debates foram conduzidos por Reinaldo, concluindo:
— Era para a gente comparecer toda quarta-feira, às oito da noite, mas o vendaval derrubou o velho prédio, de modo que agora estamos à deriva, conforme ele nos disse, à espera da boa vontade dos companheiros de outro centro, companheiros que, imagino, estão empenhados em cumprir a aspiração maior da doutrina, conforme a frase que encimava o palco, ou seja, fora da caridade nada de salvação.
Eduardo ouviu tudo com atenção concentrada, de modo que, nem esperou o sobrinho terminar para inquirir:
— Quanto você pagou para se tornar sócio?
— Não paguei nada. Até o livro que está comigo tomei emprestado da biblioteca.
— E de onde sai a verba para as caridades?
— Isto eu sei, mais ou menos, porque li no balancete afixado no quadro de avisos. Sai das contribuições espontâneas e facultativas dos que freqüentam a casa, da venda de diversos produtos no bazar da pechincha bem como de livros novos, de doações eventuais de quem sinta a necessidade de contribuir com a obra benemérita e de uma verba oficial destinada pelo governo, esta insignificante diante do montante movimentado. Também aquilo que você chamou de caridades, no nosso caso, pelo que entendi, é bem pouco, uma vez que o pessoal atende a algumas famílias em suas necessidades básicas de alimentos e de roupas, distribuindo remédios segundo um atendimento gratuito de um médico que comparece aos sábados para consultar e que leva amostras grátis.
— Para quem foi tão poucas vezes, você está muito bem informado.
— Saí ao tio, porque me interessei muito no dia em que me entrevistaram. Aliás, eu perguntei muito mais do que respondi.
Eduardo hesitou um pouco, hesitação que transpareceu em seu semblante a ponto de Adolfo notar e respeitar, mas se propôs:
— Eu acho que posso colaborar com o centro. Eu sei de onde tirar um dinheirinho mensal que não vai fazer falta a ninguém. Não garanto que vá às reuniões, mas posso ajudar a levantar uma lista de pessoas que poderão doar alguma coisa para a reconstrução do prédio. Você avisa o Reinaldo?
— Faço melhor.; eu lhe passo o número do telefone dele...
— Esse número ele me deu.
— Então, tio, entenda-se com ele.

Às duas da tarde, chegava Verônica. Estava transformada. Quase Adolfo não a reconheceu, mas conteve-se a tempo de não demonstrar que as mudanças o haviam chocado.
Ela já não estava loira, com seus cabelos pintados de castanho escuro. Sem a pesada pintura no rosto e com óculos, a sua formosura facial se desvaneceu bastante, principalmente porque aquele brilho dos olhos se apagara completamente atrás das grossas lentes. O vestido solto do dia anterior se substituiu por um conjunto de blusa e calça, aquela enfiada nesta, sobrando protuberâncias bem demarcadas, tornando a figura lépida, que anotava os dados dos flagelados, em uma rotunda senhora bastante desgraciosa. Mas havia jovialidade contida demonstrada pelo interesse quanto à condição emocional do jovem senhor:
— Como você está encarando a morte de seu irmão? Serviram-lhe as poucas noções espíritas que pôde assimilar? Conte comigo para desabafar, caso veja necessidade.
Perpassou pela mente do argüido que Verônica havia inserido em seu procedimento um aspecto de intimidade que o único encontro que haviam tido não teria como justificar. Entretanto, precisava dar uma resposta rápida, porque o interesse amigo que notou o forçava a tanto. Então, respondeu:
— Verônica, o espiritismo me deu condições de avaliar melhor minhas condições emocionais. Com tudo quanto vinha sofrendo com a vida de meu irmão, nestes últimos tempos, porque, quando ele estava com saúde, era um bom companheiro para as alegrias mais simples da vida, sempre disposto a colaborar e a brincar, muito embora de forma intelectualmente restrita, ainda assim sua morte me causou um certo embaraço, haja vista que havia uma certa predeterminação genética ou orgânica. Meu embaraço se deu no sentido de que havia algo dentro de mim que me dizia que era melhor para todos que a sobrecarga de sua doença fosse definitivamente aliviada.
Adolfo ficou meio apalermado com a linha de seus pensamentos, porque, em definitivo, não se havia premunido de idéias nem de sentimentos que dessem amparo a um fluxo de palavras tão coerentes. Desconfiou de estar sendo inspirado e calou-se, principalmente porque julgou que a amiga não teria cabedal intelectual suficiente para lhe acompanhar as idéias.
Entretanto, como que lendo em sua mente, ela lhe respondeu:
— Fico muito contente que você tenha percebido que minhas habilidades transcendem a minha esperteza em realizar aquele trabalho mecânico que nós cumprimos ontem. Eu considero sua exposição uma espécie de homenagem à minha pessoa, pois tenho a certeza de que você não se manifestaria assim com quem julgasse menos apto ao entendimento. Na minha condição de tradutora de textos de diversas línguas para o português, eu me tenho deparado com complicações que vão além do mero aspecto formal da expressão lingüística dos pensamentos, pois os autores se esmeram, muitas vezes, em tornar seus escritos complicados e isso o fazem, com certeza, para valorizar sua produção. Quando encontro alguém que fala coisas importantes de maneira simples, inteligível e honesta, eu fico muito contente e não creia que me dê menos trabalho.; ao contrário, tornar fluente e coerente o texto no português, às vezes, implica uma condição de absoluto domínio das palavras.
— Então, por favor, me explique se existe a possibilidade de eu ou mesmo você estarmos sendo inspirados mediunicamente para que nos expressemos de forma tão enxuta e tão precisa. Seus conhecimentos vão tão fundo na teoria espírita?
— Eu poderia dizer-lhe que você estava sendo inspirado na medida que me forneceu indícios de seus sentimentos para além do conteúdo dos dizeres. Mas pode ter sido uma questão de me transmitir os pensamentos através de outros recursos, como as expressões fisionômicas, as entonações, o conjunto do vocabulário escolhido, a falta de hesitações, que corresponderiam ao trato com o tema ou a uma preocupação já devidamente levantada, e outros meios que a gente tem de informar subliminarmente ao interlocutor as condições íntimas em que a pessoa se encontra.
Antes de efetuar a próxima questão, Adolfo concentrou-se bastante, a ver se não iria agredir ou ofender a tão gentil criatura. Mas criou coragem e se preparou para reparar alguma possível impropriedade vocabular ou outra que se encontrasse nas explicações técnicas que acabara de ouvir:
— Você vai muito longe em suas revelações, tanto pelo teor do que me vem ensinando, quanto, principalmente, no sentido de me passar a idéia de que a aparência tem importante papel para a transparência de idéias e sentimentos. Então me diga o porquê de ter efetuado tantas mudanças em seu aspecto, desde a pintura dos cabelos, a falta de maquiagem, a roupa pegada ao corpo etc.
Verônica não pôde deixar de sorrir. Atreveu-se, então, a pegar na mão do rapaz, que assim lhe parecia o quase quarentão, e esclareceu:
— Eu pensei muito em casa a respeito da impressão errônea de mim que lhe estava passando. Pareceu-me bastante claro que nós nos interessamos um pelo outro, pelo menos o seu olhar me devorou o tempo todo em que você mergulhou a vista contemplando minha alma através de meus olhos. Eu pensei: Verônica, querida, você está usando lentes de contato. As lentes têm o dom de levar um brilho excessivo aos olhos, de forma que o Adolfo pode estar iludido pelo reflexo alheio e material. Ponha seus óculos e, se tiver oportunidade, diga-lhe, como estou dizendo agora, que havia uma certa magia naquele meu olhar. Aí eu pensei também que os meus cabelos são castanhos e que eu estava preparada para comparecer a uma festa na qualidade de dama de honra para as bodas de uma amiga. Olhei para as minhas formas, arredondadas muito além da conta, e exigi de mim mesma que você tomasse conhecimento deste meu exagero corpóreo, sempre atenta para que, de algum modo, meu intelecto sobrepujasse todas as terríveis conseqüências psíquicas de uma repulsa à paquiderme. Como você vê, estudei a minha entrada, que não era para ser neste recinto de dor e luto, sem saber, entretanto, se você estaria disponível para enfrentar esta enxurrada de confissões, enxurrada que pode ser tão avassaladora quanto a tremenda tempestade que arrasou a cidade. Tendo vindo até este ponto na minha imaginação, preparei-me também para outras revelações de caráter moral, ou seja, para contar-lhe a história de minha vida, pondo em tábula rasa todos os elementos que poderiam, mais tarde, caso descobertos por vias transversas, causar desassossego e desconfiança. Sei que estou correndo um risco muito sério de afastá-lo de mim.; no entanto, é preferível que isto aconteça o mais cedo possível, porque, depois de uma convivência de seis anos, perder alguém que se acreditava fiel, é extremamente doloroso. Você pode concluir que se trata de um típico caso de gato escaldado...
Adolfo permanecia absolutamente vidrado (termo que extraímos tal e qual de sua mente) pelo superior desempenho vernáculo da tradutora. Sentiu-se atraído pela sinceridade dela e expressou sua admiração de maneira veemente:
— Verônica, que cantada! Se eu estava absorto, preso em seus encantos, conforme não fiz questão de esconder ontem, hoje estou de fato caído pelos seus dotes intelectuais. Perdoe-me o atrevimento de lhe responder de modo tão brusco, que a poesia não é o meu forte. Mas, tão perto do vazio que a morte do Benito abriu em meu coração, só posso aceitar a sua manifestação com muito carinho.
As mãos se apalpavam e diziam muito mais que as palavras e os pensamentos, transmitindo uma energia mútua perfeitamente sincronizada. Era como se tivessem um ânsia de ficar juntos, uma como que declaração de que faziam falta um ao outro.
Surtiram, naquele momento, as primeiras lágrimas de real saudade de todas as criaturas ausentes e ambos se confraternizaram naquele sentimento de amor e compaixão, cada qual imerso em seu passado, ambos livres para prantearem suas queixas, como se suas revoltas íntimas contra o destino se justificassem pela compreensão augusta de que não poderia ser de outro modo, dada a compensação que reconheciam naquela benquerença nascente.

Quando o Padre Tibúrcio estava encomendando o corpo, organizando a curta procissão que conduziria o féretro à tumba, Verônica e Adolfo não se constrangeram perante a sociedade ali reunida, mantendo-se de mãos dadas, enquanto recordavam a feliz observação do sacerdote, ao chegar: “Adolfo, meu querido, cuide bem deste tesouro de mulher, que merece um companheiro digno e fiel.”
Fora a chegada do padre que bloqueara o seguimento da conversa em que se enlevavam os dois, de modo que as confissões de caráter emocional e amoroso de ambos ficaram postergadas.

À noite, de volta ao leito, Adolfo não conseguia concentrar-se na figura de Verônica, tão presente estava Benito em sua mente. Na hora de fechar o caixão junto ao túmulo, pôde o mais velho observar que o inchaço do corpo havia cedido e que o rosto maquiado do mongolóide o remetia para tantas passagens de toda a vida, aquele sorriso parvo sempre estampado, como a acariciar a existência com a uma esponja de amor.
As imagens iam num crescendo em sua imaginação, até colocar o irmão num pedestal de luz, como um mártir entronado em seu altar pelo sacrifício de toda uma vida.
Recordou-se das preocupações do tio e do orientador do centro espírita, mas teve um profundo receio de dormir e ser arrebatado espiritualmente para onde estaria Benito em franca recuperação, que ele não podia visualizar uma situação de dor ou de penúria para quem ficara literalmente preso na carne por mais de trinta anos.
Censurava, como pano de fundo, a terrível situação em que o pai colocara a família e, este sim, via ao lado do filho, em algum lugar do etéreo, a pleitear-lhe perdão.
A criação plástica do velho ajoelhado e do moço estendendo a mão num gesto de concessão do beneplácito invocado, colocou na mente de Adolfo uma outra figura, esta, porém, incapaz de se fixar numa atitude qualquer, paralisada em seu leito de morte, como se a consciência do marido se pejasse de arrependimento pelos momentos de vida que furtara à tarde às dores atuais e antigas. Laura comparecia como uma lembrança prestes a ser enterrada, no entanto, quando Verônica lhe pressionava a mão de modo tão amorável, ela estivera presente em sua imaginação abençoando a união que se prenunciava.
Aí, inexplicavelmente, mergulhou numa barafunda de recordações entrecortadas em que Arlete se fundia na cena, esguia e forte, a segurar Verônica pelo cinto, enquanto agarrava Laura pelos cabelos. Adolfo sucumbira em terrível pesadelo.



8. A TRAGÉDIA DE DARIO

Ao chegar do velório, Dario iria sofrer a maior desdita de sua existência. No banheiro dos fundos, achou o corpo da esposa dependurado pelo pescoço, por meio de um arame preso na viga do telhado sem forro.
Atarantado, sem saber o que fazer, tentou sustentar a mulher para ver se desafogava a respiração, mas estava ela irremediavelmente sem vida. Desolado, sentou-se no chão e, sem um lamento sequer, deixou as lágrimas testemunharem todo o seu sofrimento.
Desconfiou dos que havia hospedado, mas, num fiapo de esperança, ainda lhes concedeu o benefício da dúvida, orando ternamente pelos criminosos, antes mesmo de pedir pela alma da esposa.
Então, foi ver se havia alguém lá dentro, mas se deparou com uma cena incompreensível: estava tudo vazio. Tinham levado todos os móveis e utensílios, tinham arrancado os fios da parede, tinham retirado até as telhas novas que ele havia substituído um dia antes. Havia indícios de que até alguns batentes tinham sido deslocados mas o perigo do desabamento fez que os demolidores recuassem.
O padeiro da frente assustou-se com o aspecto de infelicidade do amigo e freguês e providenciou para que a polícia comparecesse, não perdendo a ocasião de avisar a imprensa, assim que voltou da inspeção ao local.

Na manhã seguinte, Adolfo surpreendeu-se com a reportagem no noticiário da televisão, que pintava com as cores mais sanguinárias o assassinato da pobre mulher, comparecendo Dario para a competente entrevista, já menos desgrenhado, capaz de articular algumas frases, apontando a muito custo para a possibilidade de terem sido tais ou quais pessoas as autoras dos crimes. Comparecia também a figura do dono da padaria, para dizer que estranhara muito a mudança que enchera o caminhão, mas que não se atrevera a ir conversar com o freguês, pois estava com as contas em dia. Também não desconfiara dos que efetuavam o transporte, que eram as mesmas pessoas que estavam ajudando na reforma da casa.
“Santo Deus! O pobre homem deve ter-se salvado por ter comparecido ao velório do Benito!”
Adolfo estava tão pasmo que não chegou a comentar a própria observação, deixando de tirar conclusões de sua clarividência.
Lembrou-se de ligar para a padaria, mas afastou a idéia por perceber a inutilidade das informações que receberia. Achou melhor tomar uma providência mais enérgica: iria pedir ao tio Eduardo que mexesse os pauzinhos a ver se, pelo menos, se recuperavam os parcos bens roubados.
Dona Isabel estava casmurra mas empreendia uma arrumação completa nas coisas do falecido. Adolfo respeitou-lhe a dor da perda do filho e não lhe acrescentou nenhum sofrimento adicional. Aliás, desligou a televisão, ligada por mero impulso condicionado, já que a noite mal dormida e mal-assombrada ainda lhe pesava muito pela mórbida recordação de seus pesadelos.
Apesar de tudo, ainda teve um lampejo de memória, porque lhe pareceu ter ouvido Francisco dizer à mãe que viria de manhã conversar com ela. No meio da frase, o nome do tio surgia como que combinado ao evento. Então perguntou:
— Mãe, que é que o Chiquinho vem fazer hoje aqui?
— Ele quer falar com a gente a respeito de como é que as coisas vão ficar daqui para a frente.
— E o tio Eduardo?
— O tio Eduardo também vem, porque parece que existe uma questão de dinheiro do seu pai ainda pendente.
— O que você acha que eles querem?
— O Chiquinho quer que eu vá morar com ele, pelo menos por uns tempos. Ele disse que o problema é você.
Adolfo tinha o raciocínio rápido, mas precisou estancar a febre das conclusões pois por aquela não esperava. Resolveu confirmar a vinda do tio e ligou para ele. Conversaram celular com celular, Eduardo contando que estava com Reinaldo na casa de Dario, providenciando um levantamento pericial para averiguar que pistas ou provas poderiam ser levantadas quanto ao assassinato da pobre senhora.
— Por que você não vem para cá. Sempre há de ser mais um para consolar o viúvo. De qualquer modo, assim que o I.M.L. liberar o corpo, nós teremos outro velório e outro enterro.
— Está aí alguém do centro espírita?
— Estão diversas pessoas, algumas que eu conheci ontem.
— Já estou de saída.
No caminho, Adolfo se deixava absorver pela perspectiva de se encontrar com Verônica, mas sobressaltou-se quando percebeu a possibilidade de estar Arlete ali também.
“Por que, diabos, estou sentindo este receio?”
Perguntou e não encontrou resposta plausível, que o sentimento era algo por demais fugidio para sua compreensão. No entanto, a benquerença que estava dedicando a Verônica lhe parecia bem mais sedimentada no coração que a presença de Arlete, que se justificava por razões intelectuais.
Perpassou-lhe pela mente que a inteligência das duas pareciam equivaler-se, muito embora a da tradutora não se ostentasse em título universitário de tanta importância como o de doutora, ou ainda, de futura livre-docente. Outro estremecimento e nova questão:
“Que intelectualidade, que nada! Não é verdade que a estrutura física de Arlete é muito mais atraente?”
Como que a responder inconscientemente, veio-lhe ao pensamento, de relance, a figura de uma senhora magrinha, simpática e sorridente, que ele não conseguia imaginar dependurada pelo pescoço. A esposa de Dario lhe ficara na lembrança com formas meio apagadas, entretanto, lá estava o velho às voltas com uma tragédia sem tamanho.
Imediatamente, recordou-se da mãe a cuidar do irmão a vida toda, mas fixou-se num momento de extrema tristeza, quando ela descobriu que a segunda esposa do pai estava grávida pela primeira vez.
“Por que esta sucessão de eventos absolutamente dramáticos? Daqui a pouco vou descobrir que a vida vai reservando surpresas de luto e de dor em tudo. Se eu encarasse a vinda de minha irmã como uma bênção de felicidade para o casal que a gerou, não poderia justificar as lágrimas de minha mãe. Anita, Elizabete e Joana são três criaturas amoráveis, cheias de vida e de alegria. Minha mãe não teria como gerá-las, velha que já era o suficiente quando trouxe Benito ao mundo. Onde estariam tais espíritos, se meu pai não tivesse feito o que fez?”
Não teve tempo de investigar até aonde poderiam ir suas ilações a respeito dos mistérios dos acontecimentos, que, ao dobrar a esquina da rua da casa de Dario, percebeu que ali se aglomerava uma pequena multidão.
Logo reconheceu algumas pessoas do centro espírita, principalmente os dirigentes, que para lá haviam acorrido por duas razões principais, conforme Adolfo logo foi imaginando: primeiro, para dar algum consolo doutrinário ao viúvo, através da solidariedade na dor.; segundo, para assegurarem-se de que seriam capazes de identificar os assassinos, já que eram pessoas a quem o centro espírita assistia.
O olhar de Adolfo percorria as fisionomias, mesmo antes de chegar à aglomeração, para ver se encontrava alguém de seu grupo de estudos. Pelo menos do lado de fora, não havia ninguém, bem como não estavam nem o tio nem Reinaldo.
Passou cumprimentando de longe as pessoas e tentou entrar, sendo barrado por um policial postado na entrada. Ele se identificou como amigo da vítima e perguntou pelo tio, que deveria estar lá dentro.
Imediatamente lhe foi dado acesso ao interior do quintal e ele pôde constatar que o terreno estava limpo, inclusive das hortaliças e das telhas que se empilhavam no outro dia junto ao muro.
Seguiu o caminho que conhecia e foi dar na cozinha, onde se encontravam várias pessoas, entre elas Dario, Eduardo e Reinaldo. O dono da casa, assim que percebeu a chegada do amigo, levantou-se da caixa que lhe servia de cadeira e foi abraçar Adolfo, expressando muitos sentimentos de dor, lembrando, finalmente, que ele fora a última pessoa que entrara em seu lar e que seria capaz de descrever os possíveis assassinos.
De fato, Eduardo, assim que pôde, solicitou a colaboração do sobrinho para os retratos falados das pessoas que iriam ser elaborados a partir das descrições das pessoas que conheceram os hóspedes do infeliz senhor.
Adolfo manifestou o desejo de percorrer os cômodos vazios, com o fito de reconstituir as cenas que presenciara na antevéspera. Estava com os semblantes das pessoas bem delineados na lembrança, porque ficara impressionado com as fisionomias carregadas de cada um, fato que atribuíra aos flagelos que todos haviam sofrido e que agora bem poderia imputar a intenções criminosas.
Ao adentrar no cubículo em que foi achado o corpo da mulher, sentiu um estremecimento estranho, um arrepiar de todo o corpo, como se estivesse sendo assaltado por frêmito de terror ou de medo, apesar de estar absolutamente tranqüilo. Registrou a sensação mas não disse nada a Reinaldo, que o acompanhava, tendo Dario sido impedido de voltar àquele fatídico local.
Adolfo imaginou que o velho não teria onde residir, apesar de possuir um teto, desfalcado, é verdade, mas sem qualquer conforto. Interessou-se pelo problema, perguntando a Reinaldo:
— Onde dormiu o nosso amigo a noite passada?
— Foi abrigado no centro esportivo municipal, mas hoje ele quer ficar aqui, tanto que se empenhou para que trouxessem, ao menos, o colchão e as roupas de cama que usou lá. Estamos esperando para hoje de tarde que cheguem algumas mobílias doadas pelo pessoal paraplégico, por meio da Edna e do França.
— E o telhado?
— Também existem vários voluntários dispostos a arrumar tudo antes que volte a chover. Acho que agora de manhã esse problema, ao menos, estará resolvido.
— Comida?
— Você vê que coisa?! Ele estava dando assistência e agora precisa receber tudo como doação. Ele disse que estava com algum dinheiro que você lhe havia dado. Esse os ladrões não levaram.
— E a eletricidade?
— Vamos puxar uns fios precariamente e acender umas luzes. Mais tarde vamos ver como restabelecer a pobre comodidade anterior.
— Por falar nisso, não é possível recuperar as coisas que foram levadas embora?
— O seu tio estava dizendo que os ladrões devem ter vendido em alguma favela, que existem muitos que perderam suas coisas e estão precisando de tudo. Um caminhão cheio de móveis, aparelhos elétricos e sanitários e material de construção desaparece como por encanto, vendido por uma bagatela.
— Eles não poderiam estar levando tudo para a sua terra natal?
— E serem apanhados na estrada? De jeito nenhum. É preferível vender, dividir o dinheirinho arrecadado e cada qual cuidar de sua própria vida, que o crime foi por demais hediondo para tão pequeno resultado.
— Eles precisavam matar a pobre senhora?
— Várias hipóteses foram levantadas pelos policiais, mas apenas os autores é que poderão contar o que realmente aconteceu.
— Eu posso dar uma sugestão que me ocorreu agora?
— Que sugestão?
— Primeiro, eu preciso saber se o centro era dono do imóvel que caiu. Pelo que eu me lembre de ter visto no balancete, havia uma quantia destinada a aluguel.
— Realmente, nada ali, a não ser os móveis, era nosso.
— Então pode dar certo. Esta casa com este enorme terreno é de Dario. Por que o centro não compra a propriedade e constrói aqui a sede? De qualquer modo, vocês vão ter de abrir campanhas para arrecadações de fundos, uma vez que o saldo, que me lembro de ter visto, era insignificante.
— Inexistente, visto que mantivemos a assistência aos nossos flagelados até acabar o fundo de reserva. Mas a sua idéia é plausível. Resta saber se Dario estaria disposto a abrir mão do terreno, já que o prédio sofreu muito e seria melhor que fosse demolido. De qualquer modo, isto aqui representa uma garantia para ele, que não precisa pagar aluguel.
— Mas agora existe um elemento emocional a perturbar gravemente sua habitabilidade por parte dele.
Adolfo estranhou sua fraseologia, como se estivesse muito empenhado em fazer prevalecer a sua intuição. Calou-se, então, imerso na idéia de que em sua casa também havia um clima de luto e de ausência. Meditou mais um pouco e estabeleceu uma diferença entre a ausência do irmão e a presença da esposa de Dario. Eram, definitivamente, situações bem diferentes. Olhou para o relógio e achou que Chiquinho já devia ter chegado e estaria à espera de Eduardo e dele para a reunião familiar. Foi quando lhe passou pela imaginação que haveria uma saída temporária para a situação de Dario: ele iria habitar o quarto de Benito e a sua casa serviria de moradia para alguma família de desabrigados que tivesse salvo os móveis. Era um projeto que envolvia uma revolução social em miniatura, bem como mexia com o livre-arbítrio e a boa vontade de muita gente. Então, resolveu guardar a idéia para si mesmo, procurando, coisa inédita, orar ao Pai para que tanto sofrimento pudesse aplacar-se pela comiseração, pela compassividade, pela compaixão dos que não foram atingidos senão minimamente pela tempestade.



9. DECISÕES EM FAMÍLIA

Quando Adolfo chegou de volta com o tio, encontrou Francisco conversando com a mãe, esta chorosa, demonstrando imensa apreensão. Dona Isabel abraçou Adolfo demoradamente, como se o filho fosse partir para lugares distantes.
— Que foi isso agora, mãe? Parece que o mundo vai acabar.
Francisco foi quem explicou:
— A mãe está achando que você vai se apurar, se ficar sozinho no apartamento. Ela acha que só a faxineira semanal não vai ser suficiente para dar conta do serviço e que você vai ter problemas com a comida e com a roupa. Eu disse a ela que a comida não vai ser problema, que você contrata o serviço de um restaurante por quilo e vai comer fora, que existe um aqui pertinho. Ao lado do restaurante, o que temos? Uma lavanderia. O que pode acontecer é de você enjoar da comida e achar que está gastando muito com a roupa lavada. Então, trate de ganhar mais para pagar uma empregada de tempo integral. Aliás, eu acho que você ganha já aquele a mais a que me referi. Estou errado?
Adolfo, que vinha meditando enquanto o irmão perorava, decidiu-se:
— A mãe está com quase setenta e cinco. Está na hora da aposentadoria. Ela serviu como empregada de meu irmão e minha até agora. Vai ter de descansar e brincar com os netos. Se ela quiser, deixem-me ser claro, pois eu sei de muitas avós que se tornam babás para que os filhos e noras passeiem. Mas a responsabilidade da educação...
Impaciente, Francisco interrompeu o irmão:
— É justamente o que eu e a Emilinha conversamos. Ela vai morar em casa, mas vai ficar numa suíte à parte, só se encontrando com a família na hora que lhe aprouver. Quando desejar sair, irá para onde quiser, sozinha ou com a pessoa que escolher. Se ela quiser ir à missa todos os dias, é livre para isso. Se quiser cozinhar, vai ajudar a cozinheira. Se quiser lavar, vai ajudar a lavandeira. Se quiser tirar o pó... Bem, você já entendeu. Nós não estamos nadando em dinheiro, mas temos muito mais do que precisamos.
Adolfo ficou com vontade de pedir um pouco para ajudar o amigo Dario, mas, sabendo do bom coração do mano e das doações que fazia, participando, inclusive, de uma cruzada em prol dos doentes de AIDS, achou melhor calar-se para não correr o risco de ofendê-lo. Então, simplesmente, comentou:
— Eu não quis cobrar nada de você. Eu sei que, se a mãe não se sentir bem, vai voltar para cá e ninguém irá impedi-la. E eu a receberei de braços abertos, aceitando com muito prazer uma de suas secretárias domésticas, que, tenho a certeza, você, Chiquinho querido, irá fazer questão de nos emprestar.
Eduardo estava cansando-se da lengalenga e aproveitou a pausa da expansão para expor a que vinha:
— Eu preciso dizer-lhes que meu irmão, seu pai, me fez fiador de uma tarefa que somente após o falecimento do Benito eu poderia realizar. Existe uma quantia reservada, rendendo juros e o mais de direito, para ser destinada a quem sobrevivesse ao filho retardado. Perdoem-me, mas a expressão é dele, não minha. Seria um forma de agradecer reconhecidamente a quem se dedicasse a cuidar de uma pessoa com sérias dificuldades, pessoa a quem ele mesmo repeliu. Tenho tudo acertado, dependendo apenas de que Dona Isabel e Adolfo, os dois aquinhoados, venham comigo assinar a papelada para a percepção do dinheiro.
Adolfo estava espantado. Jamais esperava que o pai fosse tão rico e tão pródigo. Por isso perguntou:
— A quanto monta a herança?
— Cada um dos dois poderá viver dos rendimentos até o final de seus dias, caso se contentem em manter o seu padrão atual. Vamos dizer que você, meu sobrinho talentoso, vai poder deixar o posto junto ao computador, ou melhor, vai poder rejeitar todas as ofertas de trabalho que não o remunerem de acordo. Em suma, vai parar de servir de capacho...
Adolfo interrompeu o tio:
— Tio, por favor, não tire conclusões apressadas. Eu faço o que gosto de fazer. E acho que até sou muito bem remunerado.
Mas Eduardo não estava para repreensões, pois considerava o que dissera apenas um gracejo. Então, insistiu:
— Que tal se você destinasse uma de suas rendas mensais, ou a do trabalho, ou a da poupança, para praticar a caridade, por exemplo, dando ao centro espírita ou escolhendo pessoas necessitadas, como o seu amigo Dario, para ajudar a reconstituir o que a tempestade levou embora? Não é uma boa idéia?
— Excelente, tio. Vou aproveitá-la integralmente.
Dona Isabel foi mais modesta em suas pretensões:
— Dudu, meu bom cunhado, eu acho que não vou querer o que o seu irmão me deixou. A herança dele, para mim, está viva em meu coração, que são os meus três filhos. Eu posso deixar a minha parte para o Adolfo?
— Não vai ser difícil.
— Então, está decidido.
Adolfo quis protestar, mas foi impedido por um carinhoso afago nos cabelos que começavam a rarear. Dona Isabel transmitia-lhe a total convicção de que estava fazendo o melhor.
Francisco assumiu o controle da situação:
— Tanto melhor que haja mais dinheiro na parada. Assim, tudo fica bem mais facilitado e as despesas extraordinárias do Dolfinho podem ser cobertas com tranqüilidade pela herança. Até lá, eu arco com todos os gastos, a começar pelo transporte dos objetos do Benito para alguma instituição de caridade, devolvendo a cama hospitalar, que tão bons serviços prestou. Também vou fazer encostar um caminhão de mudanças para a retirada de todos os móveis e objetos pessoais de mamãe. Seu quarto está montado, mas se a senhora quiser manter algo...
— Pode dar tudo. Eu só vou ficar com as roupas.
— Muito bem. Hoje mesmo vou providenciar tudo, pois este período de nojo é para isto mesmo. Só vou pedir ao Dolfinho que separe as coisas de que não vai precisar ou que não vai querer e que pretenda substituir. Eu levo tudo embora.
Adolfo pediu para Francisco confirmar:
— Estou achando que você quer deixar o apartamento vazio. É isso mesmo?
— Sim. Aí você faz como preferir, inclusive mandando vir uma empresa de reformas para pintura, revisão hidráulica e elétrica, reforma dos pisos. O que julgar oportuno. Fazia tempo que eu estava com esta idéia na cabeça. Só não falei por causa do Benito. Agora eu acho que temos tudo para fazer dar certo um local extremamente agradável para você trabalhar como gosta, ou seja, em casa.
— Pelo menos, os meus computadores são de última geração. Neles eu não vou mexer. Como você vai levar os móveis velhos embora, eu mudo para o quarto grande e me instalo muito comodamente. Você poderia cuidar também da decoração?
Francisco parecia estar esperando o pedido:
— Em uma semana, dez dias, no máximo, deixo tudo no lugar, como manda o figurino. Pode confiar em mim. Vou fazer como se eu mesmo fosse habitar sozinho um apartamento de três dormitórios e uma suíte. É muito espaço.
Eduardo e Isabel acompanhavam com vivo interesse o desenrolar dos planos, ele julgando que o objetivo de Francisco era descaracterizar o ambiente para a mãe não desejar voltar.; ela percebendo nas entrelinhas que se preparava um ninho para uma futura consorte do viúvo.
Adolfo ainda desconfiou de que Francisco talvez estivesse escondendo algo, mas não quis increpar o irmão de nada. Havia generosidade demasiada nas propostas de auxílio. Então, obtemperou:
— Francisco, você está me saindo um santo. Mas, ao contrário do que poderíamos esperar, quem está desconfiando da esmola sou eu, mísero mortal.
— Pois vou revelar-lhe o meu segredo. Assim que eu soube que você está metido com estudos de espiritismo, ajustei os pauzinhos para preparar um local bem conveniente para suas reuniões de estudos, ainda mais que o centro desabou. Esta sala comporta uma boa mesa de reuniões para dez ou doze pessoas. Uma vez por semana, você passará a receber seu grupo, mais a Emilinha, mais o tio Eduardo, mais este que lhe fala e alguém mais à sua escolha. Que você acha da idéia?
— Se eu não concordar, você...
— Eu o quê? Eu vou fazer tudo de acordo com as suas disposições. Se concordar ou se não concordar é o mesmo. Já combinei com o Reinaldo...
— Onde?
— No velório e, depois, no enterro. As idéias são recentes mas o meu desejo de estudar espiritismo vem desde a época em que o tio Eduardo me levava junto para conversar a respeito do problema mental do Benito. Você estava com oito anos, mas eu tinha dezesseis e começava a questionar a religião. A bem da verdade, a Emilinha me segurou por muito tempo, mas acabou cedendo após refletir a respeito do falecimento do sobrinho ainda bebê. Mas essas coisas eu conto a você mais tarde. O que eu desejava agora era combinar onde você vai passar a próxima quinzena.
— Como você, eu também estou neste duro período de nojo. Isto não quer dizer que não vá retomar os meus trabalhos, que estão três na fila e mais quatro sob consulta dos clientes. Eu posso trabalhar numa das firmas, levando comigo as partes essenciais, a alma das máquinas, memórias e arquivos, que este é meu campo de trabalho. Mas hoje eu ainda quero passar aqui, porque tenho o compromisso do velório e do enterro da esposa de Dario.
— Também não se trata de uma sangria desatada. Vamos fazer tudo com método. Hoje as coisas saem. Amanhã ou depois entram os operários das reformas. Quatro ou cinco dias e trago o meu decorador, que, em mais alguns dias, coloca tudo em ordem. Você viu os milagres que ele operou lá em casa.
Vinte minutos depois, banho tomado e barba feita, com uma suave fragrância francesa, descia Adolfo para um compromisso que ele não citara: ia encontrar-se com Verônica no ginásio de esportes dos paraplégicos.



10. AGITAÇÃO NO ETÉREO

A esposa de Dario, Dona Miguelita, chegou gritando que não queria morrer. Ao contrário do que poderiam fazer supor suas convicções espíritas, ela não despertou logo para a condição de espírito. Ao contrário, enxergava tudo como se estivesse ainda sendo sufocada, acusando até o marido de cúmplice quando ele lhe agarrou o corpo a ver se lhe restaurava a vida.
Mas aquele período de ilusão quase material cedeu finalmente e ela pôde definir um estado de desconforto muito grande, imaginando que havia sido retirada da trave e colocada no solo. As entidades que a cercavam transformou-as em seres corpóreos que lhe aplicavam respiração boca a boca e massagens no coração.
Ali, propriamente dito, é que a sensação da iminência da morte cresceu, porque seu pensamento a conduzia para a certeza de que seu coração estava paralisado. Sentia ansiedade imensa para respirar, sem consegui-lo de fato. Na verdade, seu corpo já havia sido retirado daquele cubículo e levado para o necrotério e ela permanecia aferrada à idéia de que, se não fizessem nada de positivo, iria terminar ali os seus dias.
Essa desagradável conjuntura durava ainda quando Adolfo esteve naquele lugar, havendo percebido mediunicamente que apelava por socorro alguém desesperado. Apesar de conscientemente não haver entendido o que se passava, sua atitude mental de desprendimento parcial dos antigos liames que o manietavam aos bens terrenos aproveitou àquelas entidades que cuidavam do espírito de Miguelita e eles puderam concentrar nela uma porção de fluido vital haurido no vivente, conseguindo despertarem-na para a realidade de sua situação, pelo menos quanto a livrarem-na da asfixia e da parada cardíaca imaginárias.
Em suma, Miguelita, sem se reconhecer falecida, passou a entender que se havia libertado do nó na garganta e que haviam espantado os algozes. Acompanhou o pessoal que a atendia, vestindo-os com roupas de enfermeiros e de médicos, segura de que estava sendo levada para um hospital.
Mas havia a sanar uma injustiça que poderia ter conseqüências desastrosas durante a convalescença para sua recomposição perispiritual. Era preciso desvincular a figura do marido das que representavam os assassinos. Então, armou-se uma representação em que as entidades adotaram as formas das personagens do drama, de sorte que Miguelita teve a exata visão de que Dario dominava os bandidos e os fazia pedir perdão a ela.
Na realidade, quando a desencarnada condescendeu em aceitar a inocência do esposo, estava idealmente ao alcance das fortes emissões sentimentais do viúvo, recebendo-as como lenitivo para os sofrimentos.
O que levara verdadeiramente Miguelita a desconfiar da traição do marido fora a primeira vibração dele em favor dos criminosos, ao invés de solicitar logo pela esposa. Não que o movimento de alma do espírita encarnado não contasse como da mais alta moralidade e pureza doutrinária. É que não havia como a pobre mulher, na perturbação em que se encontrava, definir o quanto havia de sagrado naquela ausência de escrúpulos. Como poderia ela, com tantos padecimentos, avaliar a significativa reação pelos que iriam sofrer, inevitavelmente, a lei do determinismo do bem e do mal?
Quer dizer que estava a cavaleiro de tudo quanto se passava no íntimo do viúvo? Absolutamente. O fato é que uma convivência de muitos anos cria laços emotivos e sentimentais muitíssimo arraigados, de tal forma que os velhinhos, quando perdem os companheiros, agem supra-racionalmente como se mantivessem os vínculos, tanto os que permanecem vivos como os que partem. Sendo assim, o caminho de dupla mão no relacionamento extra-sensorial é capaz de continuar absorvendo, por um tempo mais ou menos longo, os eflúvios de amor ou de ódio que emanam de um e de outro. No caso de Miguelita, o que falhou foi a caracterização do afeto canalizado justamente para aqueles seres que representavam, naquela hora, o máximo de seu horror.
Mas havia uma outra razão para isso.
Miguelita era uma pessoa de coração boníssimo, amiga de fazer caridade, até tirando do seu para ver o sorriso de uma criança ou ouvir as bênçãos dos favorecidos. No entanto, quando Dario trouxe para casa aqueles seres atingidos pela desgraça, ela se lembrou de que haviam combinado que fariam tudo que estivesse a seu alcance para auxiliar os flagelados, menos dar-lhes o agasalho de seu teto. Já bastava que todas as reservas haviam sido consumidas no auxílio aos carentes e que o dinheiro da aposentadoria mais o que arrecadavam com o comércio das hortaliças iam de roldão para as obras da benemerência. Pelo menos, dissera ela, acreditando estar sendo ouvida, que tivessem a sua tranqüilidade íntima preservada.
Ao chegarem os forasteiros e ao instalá-los em seus aposentos, ela criou em torno de si um halo de profundo apego aos objetos mais sagrados de seu dia-a-dia. Sentiu como que abalado o último reduto da personalidade e pôs-se a trabalhar pelas pessoas, não com o intuito de servir a elas, mas para exercer severa vigilância sobre os pertences. Não saía ninguém de casa sem que ela prestasse redobrada atenção nos embrulhos que levavam, correndo a abrir os armários e a puxar as gavetas, avaliando os conteúdos, o que não lhe era difícil, porque tão pouco havia no conjunto das reservas.
Essa atitude perdurou pelos poucos dias em que havia hóspedes em casa, mas cresceu em seu coração a apreensão de que tramavam algo muito grave, uma traição à boa vontade do marido, que a sua não deixava transparecer nem para fingir. E sua indignação contra Dario foi transformando-se em terrível pressentimento de que a ingenuidade dele estava acabando com a inocência do espírito dela. E essa nova disposição afetiva desencadeou um rancor de servo da gleba contra o poder de exploração e de discriminação do suserano, firmando em sua mente o princípio da impotência.
Quando quis barrar uma das mulheres que saía com um pacote, coisa impossível de acontecer sem que fosse com os pertences do casal de velhos, teve de ouvir uns impropérios acompanhados de sopapos que redundaram num tombo em que bateu a cabeça na quina da mesinha de centro da sala. Não chegou a desfalecer mas prostrou-se em lágrimas, deixando escapar os sentimentos recalcados. Aí criou força moral suficiente para elevar a voz, colocando em alto e bom som os pingos em todos os is da falta de consideração por quem lhes havia aberto a porta do seu lar e do seu coração.
Não tanto pelo escândalo, que chamaria a atenção dos vizinhos e que redundaria em expulsão sumária deles pela população do bairro, mas pelo fato de que havia sido combinada a rapina da propriedade, calaram a mulher com ameaças e com alguns golpes na cabeça que redundaram em profundos ferimentos. Então, resolveram amarrá-la com o varal que servia para secar a roupa dentro do aposento, acabando por sufocá-la sem que dessem por isso, que a intenção era roubá-la e não matá-la.
Foi quando houve a necessidade de dar seqüência ao projeto fatídico que pensaram em dar uma aparência de suicídio ao crime, levando o corpo para os fundos da casa, leves despojos que a viga suportou sem gemer. Entrementes, um dos homens saiu a alugar um caminhão para o transporte de tudo que pudessem separar e levar.
Miguelita, portanto, acrescentava ao ressentimento de última hora pela vibração do marido em favor dos assassinos, todo um histórico de ódio crispado e enrustido que desdizia frontalmente a generosidade das dádivas que perpetrara durante a vida toda. E este aspecto era o que preponderava naquele sofrimento que a mantinha alheia à realidade de sua condição existencial.



11. CONFISSÕES DE VERÔNICA

Quando Adolfo chegou ao ginásio de esportes, esperava por ele a tradutora, desta feita com um modelo de roupa que lhe disfarçava um pouco as formas avantajadas. E seus olhos brilhavam novamente.
Depois de trocarem as informações de praxe e de lamentarem a morte da esposa de Dario, perceberam ambos que estavam sós no amplo salão, pois não havia ninguém para cadastrar-se.
Foi Adolfo quem procurou segurar a mão da moça, enquanto lhe contava que aquele era um gesto que lhe recordava a esposa falecida, pedindo-lhe que o desculpasse pelas lembranças das primícias do único amor de sua juventude.
Os olhos de ambos se encheram de lágrimas que, com certeza, testemunhavam a tristeza da inocência esvaída num passado de sofrimentos.
Foi quando ressoou na praça desportiva a campainha estridente do telefone celular de Adolfo:
— Pronto. Sim. Como vai, Arlete? Estarei lá após o almoço. Positivo. Combinado. Até.
Mediante o olhar interrogativo de Verônica, explicou:
— É uma companheira do grupo de estudos do centro. Você não conhece?
— É a freira que deixou o hábito, a ceguinha ou a professora universitária?
— Aposto que foi sua mãe quem descreveu as pessoas.
— Enganou-se. Ela não disse nada. Foi meu pai.
— Arlete, ou melhor, Doutora Arlete, é a pesquisadora do movimento espírita que deseja defender uma tese de livre-docência. Ela quer que eu prepare um programa para facilitar o levantamento estatístico de sua pesquisa. Ficamos de conversar durante o velório e o enterro de Dona Miguelita. Você vai comigo?
— Não posso. Minha mãe me pediu para ficar aqui na direção dos trabalhos, se bem que hoje esteja tudo parado.
Desta feita foi ela quem procurou pela mão dele, dizendo:
— Deixe-me adivinhar. Sua esposa tinha a mão bem magrinha, diferente da minha.
— Tinha, sim.
— Você sabe que eu só engordei mesmo nestes últimos dois anos?
Adolfo sentiu que a moça estava prestes a revelar algo muito importante pelo tremor na mão.
Ela prosseguiu:
— Eu engordei depois que fui abandonada pelo meu noivo, depois de uma convivência de vários anos. Devo dizer que, se a gente tivesse casado, hoje eu seria tão viúva quanto você. Ele morreu de maneira trágica, muito mais que você possa imaginar. Eu vou dizendo logo, que é para falar tudo e não esconder nada. Ele, eu só fiquei sabendo depois, era gay. Eu não podia jamais imaginar uma coisa dessas, pois comigo sempre foi muito carinhoso. Um dia, foi embora, simplesmente. Depois eu fiquei sabendo que estava morando com um homem. O meu desespero era muito grande, mas eu não quis saber de ir atrás dele. Um dia apareceu abatido, com aspecto doentio. Ajoelhou-se e pediu perdão. Disse que estava com AIDS e que era para eu fazer exame. Sabe que eu não tive reação nenhuma. Ele foi embora e eu só fiquei sabendo que morreu porque me mandaram uma carta que ele me deixou com o santinho da missa de sétimo dia. Queimei a carta sem ler mas mantive comigo a foto, que me fazia lembrar dele como um verdadeiro fantasma, que era como ele estava representado.
Verônica suspendeu o relato. Tremia. Adolfo aconchegou-a ao peito, com ternura pela dor da amiga. Mas não disse nada, esperando pelo desfecho, que faltava uma informação importante.
Depois de alguns minutos, que Verônica aproveitou para aquecer-se afetivamente, porque nem com o amante jamais se sentira tão protegida, encerrou o episódio das recordações:
— Graças a Deus, fiz e repeti mais duas vezes os exames, em laboratórios diferentes, todos dando negativo. Mas essa necessidade me deixou extremamente furiosa, porque me revelava que, enquanto ele estava comigo, também freqüentava outros carinhos.
Adolfo ia anotando as expressões da tradutora, julgando mais ou menos apropriadamente que os dizeres já não revelavam as reações típicas de quem se mantinha magoada com o desafeto. E observou:
— O que eu não entendo é como você, ao invés de perder peso, ganhou.
— Puro estresse. No começo, antes de saber da AIDS, eu quase não comia. Depois de saber, compulsivamente, como uma forma de compensação pela frustração amorosa, passei a castigar a minha ingenuidade, a minha... Enfim, armei-me com uma couraça de gordura à prova de qualquer ataque afetivo. Mas, desde anteontem, falando claramente, desde que o conheci, tomei a iniciativa de um regime.
— Mas essa é uma declaração...
Verônica escondeu o rosto no peito de Adolfo, informando-o de que estava envergonhada. Ele, então, tomou-lhe a cabeça entre as mãos, fitou-a longamente nos olhos, deixou-se maravilhar pelo brilho postiço das lentes de contato e encostou delicadamente seus lábios nos dela, sem ousar efetivar o beijo que transformaria seu relacionamento.
A moça, porém, correspondeu e eles selaram a amizade que nascia com um beijo ardente. Havia ali uma promessa de amor.
Mas Verônica se retraiu, movida por um pudor que ela fez questão de caracterizar:
— Eu não quero que você pense que sou fácil, acessível. Você vai ter de conquistar minha confiança. A morte de sua esposa foi algo que deve ter traumatizado você, mas, de qualquer forma, você trouxe do casamento apenas boas recordações. Eu, não. Eu trago do meu relacionamento decepções e frustrações tremendas. Então...
Adolfo, que começava a admirar a frieza e a presença de espírito da mulher adulta que Laura não chegou nunca a ser, foi explícito:
— Eu entendo que nós nos simpatizamos e até me espanto por me deixar envolver tão depressa por este clima de sedução. No entanto, também não quero apressar nenhum resultado. Vamos aos pouquinhos em nosso afeto. Vamos deixar crescer a vontade de nos encontrarmos. Se for para dar certo, vai dar certo, sem dúvida, porque eu me sinto atraído e acho que você também.
Verônica complementou:
— Nós não somos crianças. Mesmo que nossas carícias nos levassem a efetivar algo mais sério, ainda assim não iríamos ficar com a consciência pesada em relação ao que iriam pensar as outras pessoas. Contudo, eu não quero dar-me como uma sobra, um resto, um saldo de incêndio. Ao contrário, vou levar adiante o meu plano de emagrecimento, o que servirá para mim e para você como sinal físico de que a hora virá aproximando-se para nós avaliarmos se estaremos preparados para ficarmos juntos e apaixonados.
Naquele instante a coitada fez ouvir um ronco na barriga que a enrubesceu. Adolfo, ao invés de fazer de conta que não ouviu, simplesmente comentou:
— Estamos recebendo um claro aviso de que está na hora do almoço.
Verônica fez um esforço para superar a difícil situação, mas Adolfo foi contundente:
— Se nós não formos capazes de nos adaptar às reações fisiológicas de nossos organismos, se não entendermos que nossos espíritos residem num invólucro material perecível, se não dermos atenção aos reclamos de nossa natureza, talvez acabemos pensando que só nos faltam as asas para nos considerarmos anjos. São estas pequeninas coisas que me lembro de ter demorado a entender quando namorei, noivei e casei ainda novo. Se você me permitir, como sofri até me compenetrar de que a ovulação a cada vinte e oito dias causava a menstruação, que significava um ligeiro sangramento, a nos impedir o contato sexual. Pior ainda foi entender que havia uma conseqüência psíquica desagradável que só o médico foi capaz de me explicar direito, ou seja, o período de tensão pré-menstrual, tensão que me fez perder várias vezes o bom humor por achar isto e aquilo errado nas observações que ouvia. Em suma, estou pondo lealmente alguns pontos muito importantes para o nosso bem-estar emocional, dizendo-lhe com isto que você pode abrir-se comigo ainda mais do que já fez. Não, não fale nada agora. Deixe que eu vá até o fim, porque acho que estou sendo inspirado, uma vez que nunca fiz este discurso a ninguém. Se não disser isto, você poderá pensar que estou escolado e que tenho uma lábia que vai muito além de meus recursos intelectuais. Não é nada disto. Eu acho, simplesmente, que está na hora de comer, que eu também estou com fome. Pelo que entendi, você está ferrada num regime. Então, deve ter trazido um lanchezinho, alguma fruta ou suco, algo com as calorias bem contadas. Eu, por mim, comeria aquele marmitex que vi sendo preparado lá na cozinha, mas hoje é um dia muito especial. Sendo assim, eu a convido a ir almoçar num restaurante, sem quebrar o regime, um lugar em que você pode escolher à vontade as folhas cruas e as verduras cozidas, os legumes que quiser, enquanto eu vou me esbaldar num belo prato de feijão com arroz, batatinhas fritas e salada completa, se você não considerar isto uma falta de consideração.
Adolfo parou para respirar e para observar como reagiria a amiga. Mas esta estava muito contente pela delicadeza das observações que lhe permitiram situar a revolta orgânica e o conseqüente desassossego num clima da mais pura familiaridade.
Aceitou o convite, deixou um recado de que voltaria dentro de uma hora e foram os dois na direção da lavanderia ao lado da casa de repastos a quilo.
Passaram uma boa meia hora trocando informações a respeito de seus gostos alimentares e, ao saírem, ao tirar a carteira para pagar, Adolfo encontrou o cartão do Vivinho que dava direito a uma pessoa para freqüentar a clínica de emagrecimento gratuitamente.
— Olhe aqui a solução para os seus problemas: um maravilhoso spa, especializadíssimo, aqui na cidade. E de graça. Eu ganhei este passaporte para oferecer a alguém nas suas condições, pois eu estou bem, livrando-me já do estresse da morte de meu irmão.
Ao passar o cartão para Verônica, esta reagiu como se tivesse sido mordida por uma cobra. Sua tez embranqueceu e ela perdeu totalmente o controle, precisando encostar-se no balcão do caixa do restaurante para não cair. Imediatamente, Adolfo a amparou. Trouxeram-lhe uma cadeira, onde ela se recostou por alguns minutos até passar o mal-estar. Um copo de água com açúcar também lhe foi trazido.; ela, porém, mal molhou os lábios. Ao sentir a sabor doce, recordou-se do regime e isto a trouxe à consciência da hora.
Adolfo ficou aflito. Pensou no que eles haviam comido e só pôde atribuir o desfalecimento à fraqueza de um regime severo demais. Mas poupou-a de qualquer censura, falando-lhe baixinho que se mantivesse calma.
Verônica, ao contrário, demonstrava inquietude e, em lugar de sossegar, ficou em estado de ansiedade, concentrando suas forças para perguntar:
— Que representa o Vivinho para você?
Num átimo de segundo, o rapaz percebeu que havia algo muito sério por detrás daquele apelido, cujo indício não se encontrava no cartão, onde constava apenas o nome Clóvis acompanhado do sobrenome. Adolfo, então, foi explícito:
— Eu o conheci no dia em que meu irmão morreu. Ele é irmão da Doutora Arlete e me deu este cartão em troca de eu haver cuidado do computador da irmã. Aliás, naquela noite, eu passei mal e desmaiei, porque havia ficado o dia todo sem comer. Por que você pergunta?
Verônica não respondeu de pronto. Antes, deu um tempo para se refazer do susto e, caminhando devagar, apoiada no braço do amigo, de volta à praça esportiva, foi que esclareceu:
— Esse tal de Vivinho foi quem me roubou o Eurico.
— Quem passou-lhe a AIDS?
— É o que consta.
— Você já se encontrou com ele alguma vez?
— Nunca.
— E como sabe que se trata da mesma pessoa?
— Pelo nome. Eurico me repetiu várias vezes o apelido acompanhado do nome verdadeiro. Isso eu não ia esquecer jamais.
— Mas ele lhe disse claramente que Vivinho era aidético?
— Na verdade, não. Mas falava dele como a pessoa com quem fora viver e que lhe dera emprego num famoso instituto de reconstituição estética de sua propriedade. Eurico cuidava das finanças, na qualidade de guarda-livros ou de contabilista.
— Você vai me permitir discordar. Mas o Clóvis que eu conheci não tem nenhuma aparência doentia. Se é soropositivo, não desenvolveu ainda a doença. É verdade que tem trejeitos inconfundíveis e gostos requintados. Mas apresenta uma alegria natural e uma disposição para a vida como poucas vezes eu vi.
Verônica se impacientava com os elogios, como se Adolfo estivesse pondo em dúvida a ascendência que exercera sobre o amante aquela pessoa que se rivalizara com ela e que a suplantara no afeto, na benquerença, no amor do homem de sua juventude. Estes sentimentos, contudo, não transpareciam como crítica ao companheiro, que efetuava uma espécie de rememoração da personalidade que mal tivera ensejo de conhecer. Ela, simplesmente, firmava o conceito da perda, como se já estivesse vendo o recente compromissário de sua fé amorosa também se apartar dela, indo freqüentar outras esferas sociais e existenciais. Enquanto isso, segurava aquele braço com força, sem colocar nele o peso do corpo, mas premendo-o contra si, denotando claramente sua intenção de não deixá-lo ir.
Caminharam em silêncio por vários quarteirões. Adolfo ia armando um plano que julgava o mais correto para elucidar de vez aquelas suspeitas. Pensou no encontro com Arlete e imaginou que deveria argüí-la de forma direta e honesta. Foi quando se recordou que os irmãos eram filhos de um casal de espíritas. Aí resolveu enveredar por essa via junto à trêmula parceira:
— Verônica, você está sabendo que os pais do Clóvis são espíritas antigos?
— Estou sabendo agora que a irmã está levando a cabo uma pesquisa a respeito do movimento kardecista.
— Pois eu acho que, se conversar com Arlete com toda a sinceridade, ela vai dizer-me a verdade, se é que está a par do que se passa com o irmão.
— Por que você está insistindo em defender o...
Sustou a palavra ofensiva, com certeza pela proximidade da referência à doutrina cujo manancial de moralidade lhe fora imposto pelos pais, desde que começaram a estudar as obras e a irem ao centro espírita. Mas, desta feita, Adolfo conteve seu ímpeto esclarecedor para reparar, finalmente, que a menção da pessoa em pauta causava extrema perturbação na mente da moça. Encaminhou-se para outro aspecto ligado ao mesmo tema:
— O seu rancor, após tanto tempo, está demonstrando que seu amor pelo Eurico é insuperável. Estou começando a sentir comichões de ciúme e de inveja. Veja como meu braço está ficando todo vermelho.
Naturalmente, Adolfo mostrou o braço que estava solto, em que aplicou umas massagens para causar a impressão que citara. Com isso, amenizou o clima tenso que se criara, tendo Verônica controlado a sua ira, chegando mesmo a mencionar a palavra perdão, acompanhada de uma chuva de bênçãos e de misericórdias do Criador em benefício daquele estranho casal de homossexuais.
Vieram à memória de ambos os nomes dos artistas que representaram a comédia nas telas e ambos concordaram tacitamente em que não havia nenhum perigo iminente de sedução.
Ao chegarem a seu destino, Adolfo já havia atendido no celular a um chamado do irmão, avisando-o para que não se alarmasse ao encontrar o apartamento quase vazio. Houve também uma convocação do Reinaldo para uma reunião do grupo de estudos junto ao caixão de Miguelita, no velório, cujos local e horário ele lhe passava.
Estranhamente, aquela situação havia estressado o moço e ele se sentia mal, como se algo não houvesse ficado resolvido. A próxima hora o casal passaria trabalhando, porque havia uma fila à espera deles para o cadastramento. Afinal, despediram-se, porque estava na hora do encontro e porque era preciso que ambos ruminassem serenamente o que haviam deglutido naquela manhã.
Na última hora, combinaram um encontro à noite. Acertariam os pormenores por telefone.



12. O DERREDOR ERRÁTICO

Vamos penetrar nas sombras do mistério, onde muitíssimas outras personagens estão envolvidas em nossa trama. Para economia do enredo, dispensemos a contribuição dos guias e protetores dos encarnados, pessoal quase sempre dotado de expressivas qualidades espirituais mas que, por isso mesmo, não se deixa contaminar pelas alegrias, dores e mais sentimentos daqueles a quem prestam serviço. Limitemo-nos, então, a conhecer e a seguir as entidades que acorrem ao mínimo sinal de simpatia ou de antipatia, a ver o que se passa, para atuar, conformes às suas tendências atuais, junto ao espectro energético emanado no campo etérico pela formação perispiritual, com o fito de influenciar nas reações psíquicas das pessoas.
Já acompanhamos Benito e Miguelita em seu estágio inicial na erraticidade, de volta de suas campanhas tão diferentes em prol dos respectivos processos evolutivos. Agora precisamos apreciar duas outras criaturas cuja participação na vida de Adolfo e de Verônica foi decisiva num passado não tão recente: Laura e Eurico, os falecidos cônjuges.
Laura, nós já encontramos às voltas com o despertar de Benito, quando participou da ação na qualidade de cunhada amorosa, verdadeira irmã pelos laços afetivos que a ligaram à família do marido. Vimos, então, que, cônscia de sua personalidade etérea, foi capaz de proceder em harmonia com o grupo encarregado de desvencilhar o perispírito do mongolóide dos liames tenazes que o prendiam ao corpo denso material.
Na verdade, atraída por Adolfo, participou ela também do resgate do perispírito de Miguelita, agora na qualidade de mera coadjuvante ou assistente, que diríamos fluídica apenas para satisfazer aos preceitos doutrinários dos espíritas que estão dando-se ao trabalho desta leitura.
Durante a maior parte da manhã, entreteve-se Laura em seus estudos. De repente, viu-se transportada, por um claro enunciado de seu ser, ao lugar em que o casal de encarnados traçava o primeiro esboço de sua convivência terrena. Chegou no momento em que Verônica revelava a existência de um parceiro, quando Adolfo, irresistivelmente, fora levado aos tempos em que convivera com a falecida.
A inclinação do viúvo não lhe era desconhecida, tantas vezes ele a submetera às suas recordações carinhosas, no sentido de tentar amenizar-lhe o impacto de uma espécie de traição, já que se interessara por integrar ao círculo de seu afeto uma criatura que preencheria o vácuo deixado pela morte da companheira.
Laura já se havia acostumado com as investidas naturais do ser revestido de carne às mulheres que foram passando pela vida dele, passageiras eventuais daquele coletivo que servia para levar a algum ponto de interesse, onde desciam voltadas para seus próprios destinos, sem se deixarem prender por quaisquer vínculos, umas e outras reagindo mais ou menos aos parcos estímulos sensitivos.
Já se fora o tempo em que vinha pressurosa orientar o viúvo no sentido de se preservar das doenças e dos compromissos insólitos. Já se compenetrara de que o homem com quem partilhara uma boa parte da vida se tornara um adulto responsável pela própria pessoa, dono de seu livre-arbítrio. Por isto mesmo, sentia agora uma extrema curiosidade em saber por que estremecia ao apelo mais fremente de Adolfo, que a invocava quase completamente certo de que estava alcançando seu objetivo. Mais ainda, roçava-lhe pela sensibilidade a noção de que se estabelecia um contato vibratório entre os dois, fenômeno típico de sua nascente mediunidade.
Descoberto este fator de interesse para as entidades do etéreo, era como que uma obrigação do espírito facilitar o desenvolvimento da faculdade do amigo, mesmo sem se deixar impregnar pelos eflúvios daqueles guias a que acima fizemos referência. Laura já passara pela lição e estabelecera o prisma da importância do auxílio direcionado pelo aprendiz terreno dentro da hierarquia dos benefícios que cabem aos que se ligam afetivamente, malgrado pertencerem os envolvidos a esferas diferentes.
Ao chegar, notou, sem ser pressentida, a presença de Eurico, choroso e transtornado, afagando idealmente os cabelos de Verônica, mas sem nenhum recurso energético que pudesse indicar sua presença para os encarnados, ele mesmo ignorando que poderia fazer-se sentir pelos mortais.
Logo Laura percebeu qual vínculo sentimental unia Eurico a Verônica tão fortes eram suas manifestações de dor, de mágoa e de arrependimento. Percebeu também vibrações de terrível teor, uma espécie de contraposição ao sentido positivo da intenção solidária, como se aquela entidade fosse incapaz de se assegurar de sua própria integridade no exteriorizar dos sofrimentos.
Chegou ao espírito dela a clara informação de que precisaria de ajuda para bem interpretar os elementos que captara, bem como que estava resguardada de todo ataque que a envolvesse na turbulência da personalidade de Eurico.
Havendo aceitado a incumbência de conversar com ele para dissuadi-lo de assoberbar a mente da encarnada, tornou-se visível ao infeliz, logo demonstrando que ali estava na condição de esposa do viúvo, o que a tornou, se não simpática, ao menos aliada para efeito do cumprimento dos desígnios de Eurico.
— Você está preparada para entregar o seu homem a outra mulher?, foi logo perguntado ele.
— Se ele fosse meu, eu não entregaria.
— Só porque você está neste outro plano, não quer dizer que perdeu seus direitos, ou vai me dizer que casou por ele sem se interessar pela companhia dele em quaisquer circunstâncias?
— Vejo que você está contornando a condição maior do matrimônio, ou seja, que os cônjuges são separados pela morte.
— Isto vale para eles, mas não para nós. Eles permanecem com a presença da morte na mente.; nós já sabemos que continuamos vivos.
— Considero seus argumentos muito bons. No entanto, por que é que devo sofrer as mesmas vicissitudes onde estamos agora, se é um alívio readquirir a liberdade que gozamos sem o pesado fardo da matéria?
— Isto serve para você. Eu carrego comigo a responsabilidade de haver deixado uma impressão de profundo ressentimento naquela criatura, embora, veja bem, eu não me culpe de tudo quanto sou acusado.
Era o momento em que Verônica revelava a Adolfo a condição homossexual de Eurico.
Laura sentiu a observação como relativa àquele fato e questionou-o:
— Esclareça-me a razão de ela pensar que você era o que está afirmando não ter sido.
— Está certo que eu morri em conseqüência da AIDS, mas meu amigo Vivinho, com quem residi durante meus últimos anos de vida, não foi jamais meu amante. Ao contrário, ele me amava e eu a ele como dois irmãos, ele mais velho e mais forte que eu, amparando-me em minhas fraquezas.
Laura não estava satisfeita com a desordem do relato. Passou, então, a mentalizar as questões de seu interesse, tentando reproduzir os fatos em ordem cronológica. Não lhe foi difícil influir na manifestação de Eurico.
— Nós nos conhecemos quando eu procurei emprego numa firma de contabilidade e me indicaram para servir de elo entre o comércio dele e o escritório que me indicou. Era funcionário dele, de modo que, na qualidade de patrão, tínhamos encontros demorados todos os dias. Ele logo percebeu que eu era viciado em cocaína, fruto da desilusão dos tempos de desemprego. Verônica, coitada, vivia imersa no trabalho, naquele tempo fazendo ainda seu nome, traduzindo páginas e mais páginas para ganhar o sustento dela e mais o meu e, em seguida, do meu vício. Mas eu não deixei transparecer o meu barato, porque não queria perder o afeto da minha menina nem a confiança de sua família. Que fez o Vivinho? Ele me internou para me desintoxicar. Como corria na voz do povo que ele era homossexual...
— Não era?
— Nunca me importei em saber. Ele representava muito para mim e eu não me considerava em condições de julgá-lo. Poderia até ser, mas comigo nunca foi. Aí fiz a bobagem de desaparecer da casa de Verônica sem dar notícia, como se tivesse ido viajar. O primeiro exame de sangue constatou a presença da doença. Corri a avisar a minha parceira e deixei subentendido que fora contaminado por um suposto elemento de meus relacionamentos. Em minha confusão daqueles dias, preocupava-me muito mais com minha saúde. Avisá-la fora um dever de consciência. Você deve concluir o resto.
Naquela altura, Verônica revelava a Adolfo quem era a figura a quem atribuía a infelicidade do namorado.
Laura deduziu que a mencionada carta que Verônica destruíra sem ler deveria conter a real história de Eurico. Assim mesmo, insistiu:
— O seu dever de consciência, diante da iminência da morte, deve tê-lo levado a esclarecer a inocência do seu patrão e a verdadeira causa de sua desgraça. Estou certa?
— Mais ou menos. Eu menti na carta dizendo que uma única vez que me piquei adquiri o vírus. Mas isentei de culpa o Vivinho.; digo mais, enalteci todo o trabalho que tão despojadamente ele fizera questão de me prestar.
— Você está contando-me todas estas coisas com o coração na mão. Sente-se que está desejando ser correto, embora sofra por perceber que nem sempre o consegue. Sendo assim, aceitaria uma ajuda superior, estaria disposto a se recolher num sanatório apropriado para entidades com seus problemas, especificamente no que tange à sua necessidade persistente de consumir drogas, ainda que por via indireta?
— Está tão visível assim?
— Você admite que sua perspicácia seja maior que a de muitos outros seres?
— Sim.
— Então, deve admitir também que existam espíritos mais evoluídos, pois não?
— Perfeitamente. É o que me mantém muitas vezes lúcido o suficiente para analisar os fatos que observo. Eu sei que um dia irei superar os meus problemas. É uma questão de tempo.
— Se fosse só de tempo, ninguém iria preocupar-se com ninguém, deixando tudo para depois. Trata-se também de uma questão de trabalho, de esforço, de coerência com os desejos mais íntimos de se conquistar o respeito alheio, para que se tenha uma condição de equilíbrio e se possam auferir prazeres e gozos mais sutis, mais perfeitos. Você acha que se trata puramente de uma forma de dizer, de uma simples expressão, quando se diz que o reino do Senhor é o das bem-aventuranças eternas?
— Nunca pensei seriamente nisso.
— Pois é este o caminho que estou indicando-lhe. Se eu pudesse, eu o arrastava comigo à força. Mas, se eu não lhe respeitar a vontade, com que direito depois iria solicitar que a minha fosse respeitada? Então, eu lhe pergunto de novo: Você está disposto a encarar os sacrifícios obrigatórios que se exigem para se limpar a alma das cracas que vão acumulando-se, quando a gente permanece por muito tempo atolado em um ambiente impuro? Se responder que sim, saiba que irá tornar muita gente ainda mais feliz, porque estará dando oportunidade que exerçam seu dever de socorristas, ou seja, de entidades que estão passando por uma fase de crescimento espiritual através do auxílio incondicional aos semelhantes.
— Sim. Eu estou disposto a experimentar, com a condição de utilizar-me da porta da rua, caso não veja utilidade em ser desintoxicado, sem nenhuma compensação.
— Não sou eu quem irá decidir a respeito disso. Primeiro é preciso que você se predisponha a tratar-se. O mais decorrerá naturalmente, pois o pessoal é altamente especializado e saberá caracterizar o seu problema e enfrentá-lo corajosa e honestamente.
Eurico abaixou a cabeça. Notou que desde algum tempo perdera de vista os encarnados, que se deixaram envolver por uma grossa neblina. Demorou um tempo que lhe pareceu enorme até decidir-se, finalmente:
— Estou pronto para segui-la.
— Na verdade, eu só fui a porta-voz da turma que irá ajudá-lo. Espere só um instante que logo eles chegarão para transportá-lo.
De fato, embora já lá se encontrassem desde o início da conversação, os enfermeiros, paramédicos e médicos da assistência referida só agora tiveram permissão para se revelarem.
O numeroso grupo assustou um pouco o paciente, mas não fez nenhum gesto de rejeição. Antes, considerou que as fisionomias apenas lhe transmitiam a serenidade de quem está de bem com a existência, nenhum esgar de ódio, nenhum gesto de maldade, nenhuma atitude agressiva. Pediram permissão para sedá-lo, afirmando que seria muito mais fácil agasalhá-lo em tal condição, explicando que iriam passar por regiões cujos atrativos poderiam iludi-lo quanto ao nível de felicidade oferecida. Era melhor confiar em quem somente lhe passava uma vibração de muita paz e de conforto mental.
Em breve, o cortejo seguia em frente com o despojo perispiritual do pobre obsessor, até sumir da visão de Laura.
Mas do grupo ficou um integrante que, respeitosamente, aguardou que Laura o notasse. Verdadeiramente, a moça havia ficado imersa em seus pensamentos e emoções, analisando o quanto havia de seu e o quanto fora inspirada nos dizeres que dirigiu a Eurico. Sabia que havia sido conduzida mentalmente, mas não distinguiu nenhuma idéia que não teria dito, se tivesse refletido maduramente a respeito.
Era o momento em que Adolfo e Verônica combinavam que se encontrariam à noite.
Notou então a personagem que se mantivera afastada, reconhecendo o sogro, com quem havia estado recentemente quando do regresso de Benito. Por sinal de consideração, Laura aguardou que ele se manifestasse, muito embora ela estivesse, na escala espírita, um ponto acima.
O Senhor Oliveira dirigiu-lhe timidamente a palavra:
— Nós temos estado juntos a cuidar de Benito. Vejo que seu interesse se desdobra pelo meu filho Adolfo, por razões que me parecem óbvias, pois sei o quanto de amor você lhe dedica. Eu me encontro preparado para segui-lo mais de perto, muito embora não lhe sinta os sinais de um vínculo afetivo maior. Eu estava entre os que se ofereceram para o resgate de Eurico. Acha você que eu devo acompanhá-la, que eu devo atender ao Benito, que eu preciso aprender a cuidar do Eurico ou que eu posso me dar melhor assistindo às minhas filhas? Que devo fazer para aproveitar melhor as circunstâncias que se criaram em torno de todos estes seres de quem me considero devedor?
Laura, antes de responder, definiu a necessidade de ser guiada em sua orientação, por isso solicitou o amparo de seus mestres. Ciente de que estava sob proteção, respondeu:
— Quem o senhor acha que irá rejeitá-lo mais asperamente?
— Não tenho a mínima idéia. Neste setor, venho surpreendendo-me com as reações mais inesperadas, uns desiludindo-me, outros maravilhando-me.
— Então, fique ao meu lado até considerar que Adolfo esteja bem encaminhado no campo da mediunidade. No entanto, preste bastante atenção aos reclamos de todas as outras criaturas, porque o senhor poderá ser requisitado por alguém que nem lhe passou pela lembrança.
— É essa uma sugestão para me intrigar ou se trata de um simples modo de dizer?
— Entenda como quiser, ou melhor, como lhe parecer mais útil, ou examinando a memória, para se recordar de todos que compartilharam da existência consigo, ou para se aperfeiçoar na compreensão dos mecanismos mentais ou psíquicos de seu filho Adolfo.
— Haverá interesse em acompanhá-lo ao velório e ao enterro de Miguelita?
— Vamos juntos para saber.



13. ADOLFO MOBILIZA-SE

Ao chegar ao cemitério onde estava sendo velado o corpo da esposa de Dario, Adolfo ia determinado a colocar a situação de Eurico em pratos limpos. Não admitia a hipótese de que Vivinho fosse aidético e de que aquela família, que tão bem o recebera, que demonstrara tanta inteligência e cultura, pudesse agasalhar seres moralmente tão vis, porque punham em risco a integridade física das pessoas que atraíam a seu círculo.
Lá estavam muitos parentes, amigos e vizinhos do infeliz viúvo, cercando-o junto ao féretro, pois ele se manteve de pé, com a mão sobre o cadáver, desde que este fora liberado pelas autoridades.
Ao ver o colega do centro, Dario se afastou do grupo e Adolfo pôde observar que os olhos estavam vermelhos e o rosto inflamado, muito embora naquele instante já não corressem lágrimas.
— Venha ver, meu irmão, como está sereno o rosto de minha companheira.
De fato, ao afastar o véu branco e transparente que cobria a cabeça, apareceu aquela fisionomia de cera, algodão nas narinas, os olhos cerrados, mas absolutamente fixa, numa expressão longínqua de paz.
Sem dar tempo para uma prece ao recém-chegado, Dario foi puxando-o pelo braço até onde estavam os três filhos, apresentando-os e declarando-lhes as profissões: um detetive, outro escrivão e o terceiro sargento, lotados na polícia civil e militar da cidade.
Adolfo foi apresentado como colega do centro espírita e logo posto na condição de possível arrolado para as investigações.
Mas os filhos não estavam para grandes expansões, de modo que Dario levou o amigo para o corredor, onde, com muita emoção, pôs o outro a par do resultado dos exames de corpo de delito que acusaram espancamento seguido de sufocação.
Numa enfiada, Dario terminou resumindo o que lhe dissera há pouco Reinaldo, antes de sair:
— Não é para me deixar embalar pelo ódio. Os criminosos responderão perante a própria consciência, mesmo que não sejam presos, julgados, condenados e encarcerados. Se eu desejar o mal a eles, com certeza vou ter de me justificar também perante mim mesmo. Mas eu acho que Miguelita não deve ter chegado bem do outro lado, embora Reinaldo tenha garantido que ela foi vítima e que deve estar recebendo toda a atenção dos guias e protetores. Tenho orado muito para isso. Que você acha?
A pergunta remeteu Adolfo diretamente para os estremeções que sentiu no local em que a mulher fora dependurada. Reavivou a sensação desagradável, mas foi apenas o produto de sua recordação e não um novo sentir mediúnico. Fez um esforço muito grande para ser sincero:
— Eu penso como você: ela deve ter passado para o outro lado ainda sofrendo o impacto tremendo da tragédia, ainda mais que agora estou sabendo que teve traumatismo craniano. No entanto, caso ela não tenha sentido um terrível desejo de vingança...
— A bem da verdade, ela não estava gostando nada daquelas pessoas. Ela bem que me pediu que não levasse ninguém para casa. Eu é que fui teimoso e me sinto responsável pelo latrocínio. Mas um desejo de vingança, eu não creio que ela tenha sentido.
— Em suma, se eu fosse vidente, faria um esforço para ver como andam as coisas no plano espiritual.
— Sabe quem é vidente no nosso grupo? A Regina. Quando ela chegar, eu vou pedir que, se for possível, entre em transe mediúnico para ver como está minha mulher.
— Isso é possível?
Adolfo tentava mudar o rumo da conversa.
— Reinaldo me disse que Kardec fazia esse tipo de experiência nos velórios, nos cemitérios, nos teatros, na rua, sempre que podia levar junto um médium vidente. O Chico, o nosso Chico Xavier, ele também me disse, nem sabe direito se as pessoas que vê são encarnados ou espíritos.
— O que seus filhos policiais pretendem fazer?
— Eles querem trancafiar os assassinos.
— E o senhor, onde vai ficar?
— Eu não saio de casa. Já arrumaram o telhado e puseram uns móveis, pelo menos uma cama, uma mesa e um fogão. Meus filhos vão mandar um armário, umas roupas e uma geladeira usada. Para mim, está muito bom. É pena que o meu dinheiro da aposentadoria vai todo agora para montar de novo a casa, em lugar de servir para os flagelados.
— O senhor não vai ficar incomodado naquele lar, onde a figura de sua esposa deverá aparecer-lhe a todo momento?
— Que bom se ela me aparecer de fato. Se a gente não conhecesse o espiritismo, talvez sentisse medo. Mas a doutrina conforta e assegura a nossa paz interior.
Mais teriam conversado não tivessem sido interrompidos por Reinaldo e Eduardo, que chegavam juntos.
Logo que se deram as mãos, Adolfo pediu licença para retirar-se, queria respirar o ar mais fresco da entrada. Na verdade, queria ser o primeiro a receber Arlete, desejoso também de se encontrar com Edna e o marido.
Enquanto não chegavam, observava as fisionomias dos que vinham aparecendo para os diversos velórios, que o corredor comportava uma boa dezena de repartições para os adeuses derradeiros.
Ali havia várias pessoas a se refrescarem, de modo que ele se afastou um pouco, buscando a sombra de uma árvore, alta mangueira carregada de frutos ainda bem verdes.
Ao longo da rua estendia-se um comprido muro que escondia o cemitério, incapaz, no entanto de competir com alguns monumentos mais grandiosos, ressaltando-se a figura de um anjo com suas asas agora manchadas pela poeira levantada pelos veículos, que passavam em desembaladas carreiras. Havia também, ainda acima do anjo, uma figura de Jesus com o olhar embebido no céu, numa atitude rogativa pela alma do morto ali enterrado.
Distraiu-se Adolfo em seus pensamentos e quase perde a chegada dos pais de Verônica. Aliás, se eles não no tivessem visto, teriam entrado sem chamar a atenção do amigo.
Após os cumprimentos de praxe, logo Adolfo quis investigar o quanto havia de repercussão de seu namorico com a filha deles:
— Verônica lhes contou que almoçamos juntos?
Edna foi logo esclarecendo:
— A moça teve uma grave decepção na vida. Veja lá, Adolfo, se ela não vai ter outra. Ela nos contou tudo, porque nunca nos escondeu nada, inclusive a respeito do fato de que Arlete é irmã do sujeito que, ao que tudo indica, infectou o meu genro.
França é que se viu incomodado e foi propondo que entrassem, que era preciso dar conforto a Dario, que a perda por assassinato, por causa da brutalidade do ato, é sempre muito pior do que ver definhar um parente que se sabe condenado a morrer. Referia-se a Benito mas Adolfo quis enxergar Eurico naquela lembrança. Então, acrescentou, com evidente intuito de provocar o casal:
— Eurico morreu longe de vocês, de modo que nem Verônica pôde testemunhar o sofrimento final daquela criatura. No entanto, ela me disse que ele estava acabado quando veio avisá-la para realizar os exames de sangue. Vocês estiveram presentes ao encontro?
De novo Edna se antecipou ao marido:
— Claro que estávamos. Ele bem que pediu para que ela fosse encontrar-se com ele, mas eu não deixei. Ele tinha de enfrentar as pessoas que tanto havia magoado.
França não se conteve:
— Teria sido melhor que a gente não tivesse visto a que farrapo humano ele se havia reduzido. O homem era só pele e ossos. E tinha umas manchas por toda a pele dos braços, do pescoço e até no rosto. Se fosse hoje em dia, os remédios estão aliviando bastante o ataque do vírus e as pessoas estão resistindo bem mais. Eu acho que a cura deve estar próxima.
Adolfo considerou que seria inútil falar da saúde de Vivinho, pois estavam preparados para atribuir aos medicamentos a sua resistência à doença. Então, dispensou-os:
— Eu já entrei. Vão vocês que a sala está cheia. Eu vim respirar um pouco aqui fora. Assim que chegarem os outros, o Reinaldo já está lá dentro, eu volto a entrar que para mim foi muito importante quando todos do nosso grupo me vieram trazer suas condolências.
Nem bem o França empurrou a cadeira de rodas rampa acima para alcançar o corredor, chegaram Arlete e Vivinho, vindo os dois, passos firmes, na direção do jovem senhor.
Foi Vivinho quem primeiro deu um longo abraço no amigo, apertão seguro que a figura franzina e delicada não fazia suspeitar:
— Parece que estamos fadados, meu caro, a nos encontrarmos nos campos santos desta metrópole desalmada. Um assassinato, uma dor, um sofrimento, uma violência a mais a somar-se na infindável lista de crimes desta urbe entregue a toda espécie de desvario. Je suis desolé. Que digo? Transtornado, aflito, angustiado, perdido em minhas ânsias por justiça, apelando pela comiseração de Jesus, pela misericórdia do Pai, certo de que as coisas ruins só haverão de ter cobro quando sairmos do Umbral.
Adolfo nem teve tempo de responder pois já estava recebendo outro demorado abraço de Arlete, tão ou mais poderoso que o do irmão. Ela também vinha cheia de conceitos:
— Um furacão não bastava para atormentar o povo. Quatrocentas e tantas mortes, milhares de desabrigados e uma horda de vândalos a saquear, a matar, a pilhar impunemente. Eu nunca vou chegar a entender exatamente a forma de pensar, a maneira de raciocinar de quem mata um irmão, uma irmã, tão pobre e tão sem recursos quanto eles. Só se, atrás de tudo, estiver o narcotráfico, o vício, a droga, porque tanto distúrbio de personalidade só se o indivíduo estiver absolutamente alheio aos mais comezinhos processos de gregarismo humano.
Adolfo viu uma brecha para falar o que tanto queria. Não esperava que Vivinho viesse. Encheu-se de coragem e lançou a primeira questão:
— Clóvis, era você o amigo de Eurico, o parceiro de Verônica, filha de nossos companheiros de estudos, a Dona Edna e o Senhor França?
O interpelado fixou o olhar no rosto do inquiridor, buscando sentir com que ânimo a questão estava sendo posta. Percebeu apenas que havia uma ânsia tão grande como se o rumo de sua existência estivesse em jogo. E respondeu, com toda a serenidade:
— Sim, era.
Adolfo talvez esperasse um jorro de palavras, um delíquio emocional, uma expressão de surpresa, pois aquela singeleza o desconcertou. Estava, porém, disposto a proteger sua intuição:
— Eu não consigo entender como é que...
De repente compreendia que estaria realizando uma tremenda imprudência, ao mesmo tempo que profunda indiscrição, se terminasse afirmando que o outro era aidético. Mas Vivinho foi extremamente compreensivo:
— Eurico foi um funcionário que admiti na minha antiga casa de tratamento, a que deu origem à clínica atual. Amei-o com todas as forças de meu ser, o que não significa que nos tenhamos dado a práticas homossexuais. Minha formação espírita foi responsável por toda minha contenção neste campo. Ele chegou doente e eu cuidei dele desde o começo. Levei-o para minha casa, depois de uma temporada de desintoxição no hospital, e Arlete me ajudou a superar todas as crises e sofrimentos. Foi ela quem fechou os olhos ao cadáver. O que me intriga é a sua pergunta, ou melhor, o seu interesse, pois tudo quanto aconteceu Eurico revelou à namorada numa carta que me ditou e que eu enderecei a ela logo após o passamento do infeliz. Os pais dela deviam saber que foi por intermédio do vício da cocaína que ele adquiriu a doença que o matou, e isso aconteceu antes de nos conhecermos. Se nós nos tivéssemos relacionado intimamente, ele me infectaria, pois desconhecia, naquele momento, que havia contraído o vírus fatal. Ou será que a missiva jamais chegou às mãos deles?
A clareza da exposição foi imprimindo ao coração de Adolfo batidas cada vez mais fortes, a ponto de estimular-lhe o cérebro em ondas de sangue. Ele quase agarra Vivinho efusivamente, desejoso de demonstrar-lhe que estava felicíssimo, porque sua intuição estava confirmando-se integralmente. Apressou-se em informar:
— A carta chegou mas Verônica a destruiu sem ler. Para ela não existiu cocaína nem vício. Eurico lhe passou a idéia de que fora num relacionamento anormal que...
— Por isso eu o obriguei a escrever-lhe a história toda, que o meu nome estava sendo envolvido num sério caso que me desonrava, muito embora tivesse sido exatamente o contrário que eu desejava que houvesse acontecido.
A confissão fez que Adolfo concentrasse sua atenção na fisionomia do amigo, percebendo que as recordações lhe haviam desfeito a máscara de juventude que sua expressão habitual lhe pregava no rosto. Envelhecera subitamente, readquirindo os quarenta e tantos de sua contagem etária.
Mas Vivinho estava raciocinando mui celeremente, chegando logo à conclusão do que deveria realizar para repor as coisas no lugar:
— Vou precisar desfazer as impressões erradas, já que a carta não fez isto por nós. Eu não vim ver nem o cadáver nem o viúvo.; vim acompanhar Arlete e rever você. Cumpri ambos os desígnios. Se você não tiver mais nenhuma revelação, eu me retiro agora mesmo.
Adolfo nem pensou no que iria fazer.; simplesmente, abraçou o outro com a mesma afetividade do abraço que recebera anteriormente, dizendo-lhe ao ouvido:
— Muito obrigado, meu amigo. Você não sabe o bem que me fez. Você nem imagina o bem que me está fazendo.
O sussurro foi percebido por Arlete, sem, contudo, ter sido decifrado. Talvez por isso, ela se aproximou e abraçou os dois homens, como a lhes dar cobertura a toda uma série de emoções que se desencadeavam.
Assim que se desfez o amplexo demorado, foi ela quem primeiro se manifestou:
— Eu não acho que nenhum de vocês dois está em condições de conversar com os pais da moça. Eles já chegaram?
— Chegaram.
— Eu vou entrar e conversar com eles. Enquanto isso, vocês tratem de imaginar uma boa saída para comprovar tudo quanto eu vou asseverar-lhes.
Enquanto ela entrava, Adolfo pegou a mão de Vivinho, com medo, talvez, de que ele o abandonasse ali. Vivinho se deixou empolgar pelo amigo, estremecido e fremente para dar vazão a seus sentimentos. Mas conteve-se, que a história de sua paixão resolveu que deveria guardar para si mesmo.
Perguntou-lhe Adolfo:
— Você seria capaz de mandar examinar seu sangue para demonstrar que não é soropositivo?
— Eu não sabia, positivamente, que havia criado vários inimigos.
— São pessoas mal informadas. Se souberem a verdade, como são boas e caridosas, até se envergonharão por haverem pensado o pior a seu respeito. Eu é que não me deixei seduzir pelas conclusões óbvias baseadas apenas em opiniões.
Vivinho colocou o dedo sobre os lábios do amigo:
— Não vá adiante. O mundo está cheio de pessoas que praticam as piores ações por pensarem que tudo sabem ou que tudo podem. Eu faço qualquer exame que o meu amigo me sugira, mas vou antecipando-lhe que nem tudo irá acontecer do modo mais sereno e tranqüilo. Se os corações não estão em paz...
Foi a vez de Adolfo fazer o outro calar-se:
— Eu respondo por Verônica.
— Com certeza?
— Sim.
— Como é que tudo veio à tona?
Em breves palavras, Adolfo contou a respeito do cartão da clínica e da oferta, explicando por que a moça havia engordado e que estava iniciando uma luta contra a obesidade. Escondeu a razão emocional do desejo de emagrecer, muito embora lhe viesse à ponta da língua a descrição do enleamento afetivo que principiava entre os dois.
Mas Vivinho colocou as recordações em dia e se lembrou de como Eurico falava bem da companheira, de suas prendas morais e físicas, de que não se cansava de lamentar ter de afastar-se dela. Então, perguntou de chofre:
— Quer dizer que o meu amigo Adolfo está caído de amores pela mulher do Eurico?
Falou e se arrependeu, porque a expressão saíra grosseira e destoante de sua habitual amabilidade.
Adolfo reconheceu a má vontade em relação à jovem senhora, atribuindo o fato aos transtornos que ela causara pela suspeita descabida e pela atitude impensada de deixar de ler a missiva. Mas respondeu:
— Caído de amores é uma exageração. Confesso que me simpatizei e que gostaria de manter a sua oferta de pé.
— Assim que tudo for colocado em pratos limpos, acho que não haverá nenhuma dificuldade em atendê-la. Seria uma forma de compensá-la pelo tremendo estresse por que passou, em parte por minha culpa.
— Eu lhe ficarei imensamente grato.
— Você irá receber o resultado do exame de sangue o quanto antes. Mando pela Arlete, caso você não vá trabalhar lá em casa.
Bem que Adolfo quis segurar o amigo mais um pouco, mas este se despediu secamente e se foi. Quando passou com o carro pelo local em que estava Adolfo, nem se dignou acenar em despedida, passando sem virar o rosto.
Naquele momento chegavam os outros componentes do grupo espírita e Adolfo se viu engolfado pela necessidade de ir confortar Dario novamente.
Ao entrar no corredor, observou que Arlete, sentada no banco, segurava a mão de Dona Edna, tendo o França a seu lado. Ao se aproximar, viu que havia lágrimas envolvidas naquela reunião, tudo muito discreto e absolutamente enquadrado no ambiente fúnebre do velório.



14. ARLETE ASSUME O COMANDO

A presença de todo o grupo de estudos inibiu a expansão dos que teriam tanto a contar a Adolfo. Após a confraternização circunspecta, entraram todos onde o cadáver jazia sobre as essas, as velas desprendendo sua luminosidade contida sobre empertigados candelabros, sob a proteção de um dourado crucifixo, pobre pompa de encomenda que se escondia um pouco atrás das escassas flores e coroas.
Dario se levantou à entrado do grupo, com a idéia fixa em interrogar Regina a respeito da situação da esposa no etéreo. Mas, com os abraços dos homens e os respeitosos pêsames das senhoras, ficou sem jeito, esperando o desenrolar dos fatos a ver se aparecia a oportunidade da pergunta.
Reinaldo fez as honras da recepção e apresentou os recém-chegados aos familiares da falecida. Em seguida, elevou a voz e realizou uma rápida oração em que solicitava a proteção dos beneméritos guias de cada pessoa da família enlutada para que insuflassem os sentimentos de piedade, de comiseração e de perdão no coração de cada qual, porque, dizia ele, a justiça de Deus é inexorável.
Para imprimir um cunho de mais autêntica amizade, solicitou a um membro do grupo que falasse em nome de todos, ao que se apresentou Arlete, que se via estimulada a falar pelo impulso das revelações daquela última hora:
— É preciso, irmão Dario e mais familiares presentes, principalmente os filhos da Senhora Miguelita, meditar profundamente sobre as verdades contidas nas palavras de nosso querido dirigente e amigo Reinaldo. De fato, todos nós estamos passando por uma crise nas relações sociais. O governo e as forças de coação da violência, que os senhores três representam na qualidade de policiais, não têm tido condições, apoio e mesmo incentivo financeiro para refrear os criminosos, que, cada vez mais, se organizam e atuam com desprezo às leis e aos mínimos padrões de cidadania. E o que este estado de coisas vem gerando? Vem gerando a impunidade e, com ela, a certeza que têm os criminosos de que não serão apanhados nem sofrerão o merecido castigo por seus horrendos atos de incivilidade. Pensar nesta condição atual de nossa pátria e de grande parte do mundo é o mesmo que criar defesas e prevenções contra a própria natureza divina da criação do mundo, da humanidade. É imergir profundamente nas idéias materialistas, gerando o profundo egoísmo do “salve-se quem puder”, que cada um de nós temos de nos garantir em nossos lares, em nossos prédios, em nossos quarteirões. Qual é a firma que não mantém um corpo de seguranças, profissão esta que mais cresce entre a população que ainda mantém um certo nível moral de respeito ao próximo, contradição profunda fundamentada nos valores familiares, por amor aos filhos e às esposas? E, quando as mulheres levam as crianças à escola, o que é que elas querem saber em primeiro lugar? Se a professora é boa? Não. Elas perguntam a respeito da presença de policiais ou mesmo do plantão de uma viatura capaz de assegurar aos jovens a permanência de algumas horas sob a responsabilidade do estado. Pois agora nem mesmo o sacrifício pessoal mais digno, a atitude mais coerente com os ditames estipulados pelo Cristo do “amem-se uns aos outros, como eu os amei”, estão na pauta dos que não deixam represar seus instintos mais selvagens, mais primitivos, lesando, assaltando, matando até as pessoas generosas que dão, não do que lhes sobeja, mas do que lhes é necessário. Eu não devia revoltar-me contra tudo isto pela minha formação espírita e também porque, de certa forma, estou contrariando o incentivo à paz que terminamos de ouvir pela voz do Reinaldo. Mas quem estiver ouvindo-me, e eu sei que existem muitos irmãos desencarnados para cá atraídos pelas mais diversas razões, que tomem a iniciativa, em qualquer campo em que atuem, de levar a palavra de amor de Jesus e, principalmente, os tópicos da doutrina espírita que desenvolvem os princípios da vida após a morte, da reencarnação e da recompensa divina segundo as obras. O nosso centro espírita desabou com o temporal que desgraçou tantas pessoas nesta cidade e em outras vizinhas. Mas isto não nos desuniu. Eis-nos, os amigos de um simples grupo de estudos, reunidos em torno da infelicidade de um irmão nosso. Que esta união possa estender-se a todos os povos, é o que eu peço com toda a minha veemência a Jesus e a seus mensageiros, e que estes trágicos exemplos, ao menos, sirvam para que as pessoas se compenetrem de que não podem ficar indiferentes à dor do próximo. Lembro-me de tanta gente que se empenhou em retirar os sobreviventes dos escombros, mas também não me esqueço dos que, aves de rapina, caíram nos bens alheios, saqueando-os, como se estivessem disputando uma carniça. Eis a nossa irmã com a vida amputada no momento mais sublime de seu carinho e de sua caridade. Dario e filhos, fiquem cientes de que sua alma está sob o amparo dos amigos da espiritualidade encarregados de recepcionar os injustiçados. Sabendo das convicções espíritas dela, posso prognosticar que tenha já perdoado os malfeitores e que agora se preocupa com os sentimentos das pessoas que podem emitir vibrações tenebrosas ao invés de, com lhanura e ponderada fé nos poderes misericordiosos de Deus, estarem orando para que se iluminem aqueles espíritos em função de se arrependerem o mais depressa possível, para que respondam conscientemente por seus atos. Em nome de meus confrades aqui presentes, eu os convido a repetirem comigo a prece que Jesus nos ensinou.
Enquanto recitava o pai-nosso da praxe religiosa, Arlete sentia eflúvios em cada palavra que pronunciava e ia acalmando as batidas aceleradas do coração, verdadeiro efeito dos maravilhosos sentimentos que as sagradas expressões impregnam no corpo físico e também no corpo espiritual dos que se acham estimulados para a descoberta das verdadeiras concepções, as que levam ao conhecimento da existência como obra do Criador e não como efeito desastrado das criaturas.
Ao término da oração, Arlete estava sensibilizada, com os olhos úmidos, querendo deixar de ser o centro das atenções. Dirigiu-se, com os olhos baixos, na direção da porta, discretamente, enquanto Mário, o conciliador, iniciava sua peroração:
— Nossa irmã tem toda a razão em inquietar-se, em desabafar, em indignar-se.; mas sua indignação se volta contra os homens e nunca contra o Criador...
Nesse ponto, Arlete, apoiando-se em Adolfo, saía da sala, sob os olhares compridos de Dona Edna e do marido, que, encostados à parede, sem serem notados, acompanharam a manobra da professora, que se desviou de várias pessoas para aceitar o ombro do amigo de Verônica.
Foi Adolfo quem se manifestou primeiro:
— A sua palavra pegou pesado no coração das pessoas. Aposto que ninguém está, deveras, achando que os criminosos devam ser perdoados. O que eu senti foi, não direi um desejo de vingança, mas uma revolta surda que suas palavras iniciais deve ter estimulado ainda mais. Em todo o caso, fiquei admirando muito sua facilidade e sua expressividade.
Era o máximo que Arlete podia ouvir, pois não lhe estava interessando comentário algum de ninguém. Pusera um ponto final no discurso e na vontade de prosseguir criticando as pessoas, o que percebeu que faria, se desse ouvido ao sentido do que lhe estava dizendo Adolfo. Interrompeu-o, então:
— Vamos deixar para os outros lembrar mais uma vez que a vida está reservada para as nossas expiações e provações, e que temos de cumprir o nosso carma sob a égide da confiança de que o Pai nos está abençoando pela eternidade. O que eu quero saber é o que meu irmão resolveu fazer para contornar o problema que a amante de Eurico lhe causou.
As palavras pareciam a Adolfo vertidas de uma bica de aço derretido. Mas não se deu ao trabalho de explicar o que elas significavam dentro do contexto de suas emoções. Simplesmente, declarou:
— Clóvis concordou em fazer um teste para saber se está contaminado.
Falou e percebeu que havia dado um fora. Tentou emendar:
— Desculpe. Ele quer comprovar que não podia ter passado a doença ao amigo.
Arlete era atilada e não engoliu a solução:
— Eu não precisei esfalfar-me para fazer os pais na moça compreenderem o que havia acontecido. Você mesmo achou muito esquisito que ela ignorou a carta e, sem mais aquela, acusou meu irmão vamos lá saber de quanta inverdade. Quantos dardos venenosos deve ter lançado contra ele no campo das vibrações etéricas. Eu não acho que um exame de sangue possa comprovar coisa alguma, a não ser que estamos dando muita importância à opinião dela. Ela devia condenar o amante, porque foi ele quem a abandonou duas vezes: uma em vida e outra através da morte.
Adolfo preparou-se para uma longa manifestação de desagrado, mas Arlete percebeu que o amigo não merecia ouvir o que ela desejava dizer a Verônica. E calou-se.
Adolfo percebeu que o descaimento moral que tivera Arlete após a manifestação ao pé do féretro estava repetindo-se. Sentiu todo o afeto que suas palavras denunciavam em relação ao irmão e, ternamente, encostou-lhe a cabeça em seu peito, exprimindo-lhe compreensão e solidariedade.
As mãos trêmulas da professora seguraram as do analista de sistemas e eles passaram um ao outro todas as sensações que lhes iam na alma através daquele contato físico.
Talvez Arlete esperasse uma expansão afetiva maior da parte do companheiro, porque, depois de alguns minutos, desprendeu-se, pedindo que a desculpasse pelo inusitado chilique emotivo. Disse o que pensava com suas palavras magistrais, mas com uma forte tonalidade sentimental.
Pela mente de Adolfo passavam a idéia e a intenção de defender Verônica, mas também um sutil desejo de que as duas se entendessem diretamente, sem que se visse enleado no conflito. Mas tal impressão foi por demais fugidia, porque ele mesmo se surpreendeu afirmando:
— Eu acredito que as pessoas se condenam muitas vezes por instantes de irreflexão. Um ato de muita raiva pode prejudicar todo um relacionamento futuro. Verônica (ele dizia o nome da outra como uma espécie de contraponto para as referências indiretas de Arlete) sofreu o diabo e pagou caro por sua precipitação. Eu a compreendo, como também entendo, como estava dizendo Mário, a sua indignação, o seu desabafo, a sua inquietação. Mas a gente não pode perpetuar os maus sentimentos.; antes, como você mesma afiançou, é preciso que depositemos o coração nas mãos do Senhor, confiantemente.
Arlete sopesou o teor do discurso do amigo, entendeu que ele pretendia aliviar a carga da causadora dos transtornos, considerou que falava com toda a sinceridade, mas percebeu que aquela linha de pensamentos não iria acrescentar absolutamente nada a tudo quanto ela estava cansada de saber. Por isso, desviou abruptamente o assunto:
— Saiba você que meu irmão se apaixonou platonicamente por vários homens, superando sempre a sua homossexualidade por raciocinar em termos espíritas, achando que aquelas pessoas foram colocadas em seu caminho para testar-lhe a força de vontade e a determinação em enfrentar um carma de origem certamente multissecular. Nós conversamos inúmeras vezes sobre as várias facetas do drama e sempre chegamos à mesma conclusão: existem expiações de culpas antigas que se concentram no aspecto das relações humanas impossíveis pelas leis naturais do mundo físico. Muitos homossexuais se deixam enganar pela falácia da concretização de amores improfícuos para a perpetuação da espécie, achando muito belo enfrentar o que chamam de preconceitos e de tabus sociais. Se levassem em consideração que existem outros seres de sua família ou grupo espiritual que os amam e que permanecem na erraticidade, muitos empenhando-se para orientarem os pupilos de forma a não transgredirem as leis morais em evolução para o gênero humano, porque se entregam unicamente aos instintos fundamentados nos prazeres materiais primitivos, haveriam de considerar a possibilidade da luta ainda mais renhida de quem sublima todos os aspectos carnais de sua paixão, para doar-se integralmente e da maneira mais pura ao objeto de seu bem-querer, transformando o sentimento mais cru e mais oneroso em uma amizade que irá transcender quaisquer realizações mundanas para acabar concretizando-se noutra esfera, agora sob as bênçãos de Deus, porque ninguém haverá de censurar que dois espíritos se unam pelo afeto, quando não há mais qualquer resquício sexual envolvido.
Adolfo foi seguindo como pôde a avalanche dos conceitos espíritas que se incrustavam nas palavras. Assim que deu, afirmou:
— Arlete, mestra e doutora, reverencio a sua sabedoria e os seus conhecimentos. Mas, com toda a minha sinceridade, não sei o que dizer em apoio às suas colocações, porque estou muito verde para entender tantos aspectos sutis da doutrina. Compreendi, evidentemente, que Vivinho está vencendo uma fase bastante espinhosa de sua existência. Mas não sei avaliar o quanto de sofrimento tais deliberações morais estão gerando e o quanto de sacrifício pode representar a sufocação de sentimentos dessa natureza. Em todo o caso, aplaudo o seu discernimento e me penitencio se, por acaso, a minha ousadia tenha causado a você ou a ele um acréscimo de dor.
Neste ponto, Arlete compreendeu que Adolfo estava procurando ajeitar as coisas em função de sua própria responsabilidade. Por isso, foi incisiva:
— Com o tempo, você irá tendo uma noção mais exata desse tipo de contenção. Por ora, vamos dizer que o seu sofrimento, com a perda de sua querida esposa e também de seu mano, lhe pode oferecer uma dimensão da angústia de quem se vê frustrado perante a vida. Não é verdade que você está preparando-se para volver de seu calvário, transformando as últimas experiências em algo valioso em função de superar todas as crises?
Adolfo pensou que deveria responder, mas Arlete prosseguiu, como se a pergunta fosse meramente retórica:
— Eu mesma não conheço a total intensidade das emoções que tal luta promove. Qualquer dia, eu lhe contarei a história de minha vida sentimental, que, sem apresentar tão pungentes contratempos, também me fez passar minhas meias horinhas de insegurança e rebeldia. Enfim, conhecer a si mesmo, conforme a recomendação do filósofo, tem de passar necessariamente pelos traumas que nos testam o cabedal de determinação, de energia e de força de vontade, que, se sedimentado numa convicção que só o espiritismo me deu, alcança um grau de realização bem mais seguro do que se fosse simplesmente argamassado nas lágrimas e no desespero.
Mais teriam avançado naquele sentido, não avisasse o celular de Arlete que alguém queria conversar.
— Pronto... Oi, mano... Tudo bem, já estou a par disso... Sei... Sei... Muito bem... Faça como você achar melhor... Posso levar o Adolfo aí para comprovar?... Se ele quiser, vamos já. Se a gente não for, eu aviso... Até logo.
Enquanto Arlete conversava com Clóvis, Adolfo ligava seu aparelho, que permanecera desligado desde que chegara ao cemitério, e ouvia as mensagens contidas em sua caixa postal. Havia um recado de um dos empresários cujo endereço ele havia passado a Arlete. Mas, cedeu a vez à professora, que desejava expor-lhe o que o irmão havia informado:
— Vivinho encontrou, entre os objetos de Eurico que ficaram encaixotados na clínica, o rascunho da carta que a sua amiguinha não leu. Eu acho que isto pode evitar o exame de sangue, muito embora ele não pense da mesma forma. Eu disse a ele que, se você concordasse, nós iríamos até lá para apanhar a carta, que ficaria sob seu poder.
Adolfo meneava a cabeça positivamente. Arlete perguntou:
— Você está de carro?
— Vim a pé. Mas podemos ir de táxi. Desta vez eu pago.
— Vamos já, que a nossa presença aqui não está adiantando mais para nada. Depois eu ligo ou você liga para o França e, se der tempo, a gente volta para o enterro.
Não demorou um instante e já estavam ambos indo na direção do endereço que Arlete passou ao motorista.
Aí, Adolfo mencionou o recado que ouviu no celular:
— Quer dizer que você já foi providenciar o programa para sua tese. Parece que existe a possibilidade de adaptação de um programa de pesquisa de interesse de uma grande loja que implementou a venda pela Internet.
Antes que ele pedisse, Arlete abriu a bolsa e lhe passou um CD-ROM:
— É isto que eu devia entregar-lhe?
— Perfeitamente. Vou realizar um estudo e ver o quanto vai me custar em termos de tempo, porque, às vezes, é preferível fazer tudo novo.
— Não pense em dinheiro. Cobre o preço que for.
— Eu não estou pensando em dinheiro. Mas devo dizer-lhe que estes trabalhos são caros porque demandam um pessoal especializado. Conforme for, eu preciso contratar um grupo para realizar as minhas encomendas, porque é raro que a gente trabalhe sozinho neste tipo de serviço. Mas, para que eu consiga configurar as suas necessidades, precisamos ter uma longa conversa, a fim de que eu possa definir-lhe a metodologia da pesquisa em função dos levantamentos estatísticos a serem realizados eletronicamente. Este é o meu campo e aqui eu acho que é você quem tem de prestar atenção.
Na intimidade do banco traseiro do veículo, Adolfo pôde perceber o delicioso aroma do perfume usado pela companheira, aroma que não notara no corredor do velório, onde o odor das velas e das flores a murchar dominavam a atmosfera.
— Devemos voltar ao meu apartamento, onde está todo o material, isto se você não sentir medo de se ver tête-à-tête comigo.
A provocação surpreendeu o neófito espírita, mas Adolfo não se apertou:
— Se este for um dos tópicos de seu trabalho de livre-docência, eu saberei enquadrá-lo no programa.



15. VIGILÂNCIA CONTURBADA

Enquanto Adolfo e Arlete seguiam de táxi para a casa de recuperação de Vivinho, Oliveira e Laura acompanhavam os dois a distância, como do alto de um prédio a gente vê um carro avançando em seu itinerário. Mas eram eles capazes de sentir as vibrações do protegido, traduzindo-lhe, não só os pensamentos, como também as emoções e sentimentos.
No instante em que Adolfo pôs reparo no perfume da companheira, os dois na erraticidade sofreram um tranco inesperado, como que a reação em cadeia de um fluxo energético fortíssimo que, a partir de um ponto perto do jovem senhor, desferia um golpe para desprendê-lo do contato das entidades bem intencionadas.
Imediatamente, ambos foram capazes de perceber que inúmeras sombras se agitavam em torno do veículo, causando um obstáculo à percepção do que se passava no íntimo de Adolfo.
Laura, de imediato, sem dar tempo a que Oliveira manifestasse sua curiosidade a respeito do fenômeno, concentrou-se, rogando pela presença de seus superiores, passando-lhes a informação de que Adolfo estava sendo assediado por tremendas forças obsessoras, cuja origem e intenção ela não era capaz de distinguir.
Como que por encanto, de onde estavam, ambos viram o carro ser envolvido por uma luminosidade intensa, como se lhe tivessem sido assestados dois holofotes poderosos a desfazer a escuridão. Nesse momento, o carro como que ganhou velocidade do ponto de vista dos observadores do etéreo, já que as informações fluídicas projetadas inconscientemente a eles por Adolfo davam notícia de que voltara a preocupar-se com o que iria receber de Vivinho.
Oliveira, que não conseguira entender o sentido do ataque, ficou ainda mais pasmo ao presenciar a defesa. Então, perguntou a Laura:
— Você pode dizer-me o que ocorreu, na realidade? O que justificaria uma provocação a tanto poder destruidor numa simples anotação psíquica do charme e dos encantos de uma criatura com tantos dotes quanto Arlete? Tantas entidades funestas para um simples toque pessoal. Que pretendem os agressores? Tentam impedir que Adolfo se interesse pela mulher?
— O que me preocupa muito mais é que ele não enviou nenhuma mensagem no sentido de se demonstrar realmente caído pela professora, muito embora se haja admirado muitíssimo com o vigor intelectual que notou e foi capaz de discernir. Por outro lado, se o cerco foi tão forte, a proteção foi bem maior do que poderiam exercer os meus mentores, conforme o apelo que fiz.
Naquele exato momento, chegavam ao destino os encarnados, de modo que as atenções dos dois foi atraída para as novidades que Vivinho teria para mostrar a Adolfo. Sendo assim, desceram de onde estavam e adentraram a esfera protetora que se mantinha, sentindo-se maravilhosamente bem, como se aquele centro clínico cuidasse, além do físico e do psíquico, também do espiritual.
Adolfo entrara com uma expectativa dupla, porque, além da carta ou do rascunho dela, estava querendo sentir o ânimo daquele que fora embora sem lhe dar um aceno de despedida.
Realmente, Clóvis não se compunha com a sua habitual gentileza e natural bom humor. Recebeu a ambos com o cenho fechado, com pouquíssimas palavras, agindo mais por gestos e indicações, alertando a irmã, que sabia da necessidade de uma postura administrativa de patrão, mas que bem conhecia a competência do irmão para recepcionar as pessoas com os vezos de uma cultura adequada ao gênero das personalidades que o procuravam.
Por isso, foi Arlete, que cumprimentava clientes e funcionários com certa intimidade, chamando-os pelos nomes, quem foi explicando a Adolfo que, na parte da frente do edifício, havia uma ala administrativa e um salão com aparelhos para ginástica, espécie de academia aberta ao público em geral, naquela hora bem freqüentada, onde doze instrutores se revezavam, dia e noite, pois o atendimento era ininterrupto. Daqui o intenso vaivém de pessoas a entrar e a sair.
Quando chegaram ao amplo escritório da presidência, sobre a mesa de trabalho havia uma caixa grande, cheia de objetos. Vivinho indicou para o volume, destacando um papel que se encontrava dobrado, ao lado de um envelope, observando:
— Estas são as coisas que guardamos de Eurico. No começo, eu pensava que a esposa viria buscar. Depois, mandei guardar no almoxarifado e me esqueci completamente dela. Quando vinha vindo para cá é que me lembrei do rascunho e fui remexer os pertences dele. Agora você pode levar tudo embora, mas o que importa mesmo é este papel. Você pode ler e ver se vale a pena mostrar à sua amiga.
Adolfo tomou a folha da mão que a entregava e percebeu que o fazia com um estremecimento misterioso, como se o papel estivesse carregado de algum tipo de energia.
Enquanto lia, Laura observava as reações de Vivinho através de suas emanações perispirituais, vibrações de forte intensidade, daquelas que fazem apelo direto aos seres na erraticidade. Era com uma força muito grande que o encarnado demonstrava um vivíssimo apelo à presença do espírito de Eurico mais que suficiente para trazê-lo para junto de si.
Oliveira também percebeu o fato e comentou:
— Laura, será que a turma que levou Eurico terá condições de contê-lo no hospital? Não será essa obsessão do espírito do encarnado que trazia o nosso paciente em permanente estado de submissão?
— Oliveira, não adiante conclusões. Vamos entrar em contato com alguém que nos informe a respeito.
Passados alguns momentos de concentração, Laura recebeu a informação requerida, explicando ao parceiro:
— Meu orientador me explicou que Eurico está capacitado a entender o que se passa consigo e com Clóvis e já não se sente coagido pela aflição psíquica do outro a compartilhar das mesmas vibrações. Foi desfeita a simbiose emocional, pelo tratamento mais abrangente das vibrações com poder humanitário impessoal, pelo conceito inerente do amor que Jesus pregava aos homens pelo próximo, considerando todas as criaturas num pé de igualdade perante o Criador. Claro está que Eurico viria correndo, caso sentisse que Clóvis corresse qualquer perigo. Mas lhe foi dada a permissão de contemplar a distância que o receio que está gerando a emissão fluídica do encarnado também está relacionado ao fato de instintivamente sentir-se ele sem o apoio da presença do desencarnado, além, é claro, de estar prestes a se desfazer de uns objetos que, ao contrário do que afirmou, mantinha guardados com muito carinho.
— Quer dizer, se estou entendendo, que os dois vão passar uma temporada separados para terem oportunidades de crescimento espiritual sob outras impressões?
— Isso, de certa forma, já acontecia, ou ambos teriam enlouquecido de saudade e de vontade de se reencontrarem, ocasionando no encarnado forte tendência suicida, que seria estimulada pelo outro. Mas o desapego às lembranças é função natural da própria natureza terrestre e material do encarnado, enquanto que para nós, cá no etéreo, como você já deve ter sentido, é uma questão de aprendizado das leis universais, o que nos coloca em condições de compreender a existência como cíclica. Aliás, pensando bem, Oliveira, você já fez isto na própria existência carnal, quando abandonou um lar para construir outro, sem considerar as repercussões morais que deve ter sofrido, haja vista todo o cuidado que teve em manter a antiga esposa e filhos sob a custódia de seus haveres.
Enquanto Laura se manifestava, Oliveira esforçava-se para conter as lágrimas, ideal vertente de comoção, agora transformada em puro desejo de superação das recordações dos feitos que um dia considerou desairosos, as quais já admitia como necessárias para a depuração do caráter, uma vez que se iam transformando apenas em material de análise para sua pesquisa íntima superior.
Naquela altura, Adolfo havia terminado de decifrar os garranchos e comprovava que verdadeiramente Eurico eximia o amigo e patrão de toda responsabilidade por sua doença. Ao contrário, enfatizava, em mau português, que havia contraído o vírus pela infelicidade de um único contato com a seringa contaminada de um viciado que conhecera quando ainda vivia com Verônica, que ele carinhosamente chamava de Niquinha.
Ao mesmo tempo, Arlete revirava os objetos, com evidente interesse em descobrir algo que recordava ter visto antes ali. Não achou e olhou significativamente para o irmão, impedida de se manifestar em presença do visitante. Mas Vivinho fez de conta que não entendeu o silencioso apelo e, percebendo que a leitura chegara ao fim, disse a Adolfo:
— Não é verdade que esses dizeres são definitivos? Eu acho que a pessoa a quem você vai levar essa cartinha irá entender o quanto foi injusta em me acusar de algo tão tenebroso e triste. Em todo o caso, quando vinha vindo para cá, parei num laboratório de análises clínicas e retirei já o sangue para o exame que você me pediu. Vamos colocar todas as cartas na mesa.
Adolfo se viu meio sem jeito:
— Não precisava. Eu mesmo levantei a hipótese de que não poderia ter sido você a dar origem à desgraça do outro. Por isso é que chegamos a este ponto: porque eu quis demonstrar a minha intuição.
Naquele instante, soou o chamado de um telefone celular e os três procuraram verificar de quem era o aparelho acionado. Era de Arlete:
— Pronto... Sim... Sim... Agora mesmo?... Vou ver... Está certo... Entendo... Estou saindo. Em uns vinte minutos estou chegando. Até já, professor...
Emendando suas respostas, explicou à dupla:
— Estou sendo chamada à reitoria da universidade. Parece que vão oferecer-me uma cátedra, interinamente. Alguém para preencher um vazio que se deu pela aposentadoria do titular. Pensaram em mim, ou melhor, o chefe de meu departamento pensou em mim, propondo-me que realize logo o meu trabalho de livre-docência para oferecer à banca examinadora. Acho que vou ter de apressá-lo, meu caro amigo. Aliás, hoje não vou poder levá-lo para pegar o que tenho preparado. A gente se entende por telefone, mais à noite. O Vivinho pode levá-lo para casa e vocês me aguardam com uma bela refeição. Que tal?
— Não vai ser possível, infelizmente. Já marquei com Verônica, que está ansiada para ter as minhas notícias. Aceite, Doutora, os meus parabéns. Que tudo possa dar certo. Quanto ao seu trabalho, garanto que fica pronto, no máximo, em uma semana. Até antes, dependendo de a gente simplificar ou não o questionário a ser aplicado na pesquisa.
Mas havia dado pressa na senhora, de forma que estendeu a mão em sinal de despedida, denotando um certo desagrado por seu plano não vingar para aquela noite. Fazendo um sinal ao irmão que desejava as chaves do carro, disse-lhe:
— Eu vou com o seu carro e você volta de táxi. A que horas pretende ir para casa?
— Bem tarde. Hoje vou ficar dando uma geral na contabilidade. Nestes tempos tempestuosos, a falar propriamente, parece que houve uma debandada da clientela. É bom saber a quantas andamos, para não sermos surpreendidos.
Mais teria falado, mas logo a irmã observou:
— Assim que me liberarem, eu ligo para você. A gente combina se eu devo ou não vir buscá-lo. Adeus, querido.
Sapecou um beijo na face do irmão e saiu rapidamente, deixando no ar o singular aroma de seu perfume.
Do outro lado da realidade, Laura e Oliveira puderam observar que a proteção fluídica se desfazia, sem que voltasse nenhuma ameaça aos que ficaram.
Comentou Oliveira:
— Eu acho que a união entre meu filho e a lente universitária é que está provocando forças de grande poderio, para o bem e para o mal.
Laura correspondeu:
— E isso só pode estar ligado ao trabalho que eles estão realizando juntos. Eu sei que vou arriscar-me mas, se estiver errada, sugiro aos meus mentores que me corrijam. Tudo indica que o resultado da pesquisa dentro do movimento espírita capacitará os dirigentes das entidades a trabalharem com mais propriedade em prol da divulgação dos preceitos kardequianos, o que os seus inimigos tradicionais, aqueles seres imperfeitos que vivem nas trevas da ignorância, perceberam.
— Pelo menos, estão unidos, considerou Oliveira. A sua observação tem fundamento, tanto assim que é fácil observar os cuidados com que as entidades protetoras encarregadas da vigilância espiritual cercam os centros espíritas, por mais humildes que sejam, desde que trabalhem ativamente pelos semelhantes.
Calaram-se porque os encarnados prometiam novidades.
Vivinho, ao se assegurar de que a irmã partira, pegou Adolfo pelo braço e o levou ao interior da clínica, atravessando vários corredores, até adentrar numa sala mais resguardada dos olhares dos clientes e dos funcionários. Aí se manifestou:
— Precisamos ter uma conversa que não pode sair deste quarto. Prometa-me que o que vai ouvir vai ficar selado em sua memória para sempre.
— Você está me assustando. Não me diga nada que possa comprometê-lo perante a família França.
— Estou falando de espírita para espírita, pois somos pessoas que sabemos o valor dos fatos da vida, em função do progresso a que almejamos, pois praticar o mal só nos poderá afastar do bom caminho. Sendo assim, o que pretendo revelar-lhe é importante para que você compreenda os acontecimentos que envolveram o meu querido amigo Eurico. Mas nada, você vai ver, irá deslustrar a memória dele nem de mais ninguém. No entanto, se não lhe disser toda a verdade, a minha consciência irá pesar-me daqui para a frente.
Juntando o ato à palavra, retirou de baixo da camisa solta um caderno que estava preso pelo cinto, explicando:
— Aqui está o diário de Eurico. Diário propriamente não: um resumo precário de suas aventuras desde os tempos adolescentes. Não faltam nem os nomes das mulheres com quem manteve colóquios amorosos. O homem era um verdadeiro dom-joão, colecionador de leitos e de corações. O último nome da lista é o de sua amiga Verônica. Eu só guardei esta verdadeira relíquia, quando fui acusado de homossexualismo em relação a ele. Você não encontra aqui nenhum nome de homem, só de mulheres. Eu contei cerca de cento e vinte.
Clóvis suspendeu o relato, a ver se Adolfo se manifestava a respeito mas este se manteve calado. Na verdade, não sabia o que dizer. Era um descalabro, segundo seu próprio ponto de vista. Nunca tivera interesse em saber com quantas mulheres havia saído, mas rapidamente imaginou que não passavam de trinta, contando com todos os relacionamentos platônicos e os outros pagos com moeda corrente. Veio-lhe à mente a figura de Laura, a quem contara todos os seus sucessos amorosos anteriores ao casamento. Recordou-se das casas de tolerância que freqüentara desde a morte da esposa, repetindo sempre as mesmas mulheres, no começo, três a quatro vezes por semana, ultimamente, uma vez a cada dois ou três meses. Agradeceu mentalmente o tempo para meditar que lhe fornecia Vivinho, porque, pensava com propriedade, “nunca é bom precipitar julgamentos sobre as atitudes dos outros, sem avaliar com correção a culpa que a gente mesmo tem no cartório.”
Finalmente, percebendo que Adolfo não diria nada, Clóvis prosseguiu:
— Ficou faltando assinalar um derradeiro nome na lista, penosa recordação que me enche de susto e temor. Faltou acrescentar o nome de minha irmã, que, ela sim, precisou fazer analisar seu sangue, muito embora me garantisse que se prevenira todas as vezes com preservativo. Felizmente, ela escapou da contaminação.
Agora Adolfo não pôde mais segurar-se:
— Santo Deus! Que poder tinha esse sujeito!
Desta feita, a exclamação do amigo causou um estremecimento no narrador, como se despertasse nele a consciência de que seu relato poderia estar provocando um sério distúrbio emocional no outro, a ponto de fazê-lo emitir ondas de vibração desarmônicas, prejuízo certo para as entidades citadas, mas muito maior para o próprio Adolfo. Clóvis emendou imediatamente:
— Se você me permitir uma recomendação oportuna, vamos orar pelas pessoas que venho citando e as demais a que fiz referência, para anular os efeitos negativos de nossas impressões.
Tomando a mão do amigo, que sentiu trêmulas, Clóvis pronunciou em voz alta uma prece que, pela vez primeira, dava conhecimento dela a alguém:
— Meu Jesus, eu lhe peço o mais humildemente que posso para que olhe pelos meus irmãos Arlete e Eurico e mais aquelas tantas pessoas que se deixaram seduzir por uns momentos de paixão material e que se deram aos prazeres voluptuosos do corpo, sem medirem as conseqüências espirituais de seus atos. Faça, Senhor, que cada qual encontre o caminho da regeneração através da pureza de um amor sublimado pela aspiração maior de ajudar, de auxiliar, de agradar e de servir, ampliando em ondas de altruísmo o que um dia furtaram ao mundo em proveito de suas mesquinhas ambições pessoais. Ampare-nos, também, em nossas vibrações, para que não ganhem o tônus da recriminação e da repugnância pelo que os humanos têm de imperfeito em sua miserável caminhada por este mundo de expiação e de provações. Acima de tudo, Nazareno querido, abra os nossos corações para as suas lições de compreensão e de perdão, estendendo sobre nós o seu manto impoluto de virtude e de santidade. Peça, Jesus, ao Pai, que nos abençoe nesta nossa tentativa de superação de nossos defeitos, que outra não há de ser a intenção de nossa prece que não a de aliviar idealmente os sofrimentos daqueles que nos rodeiam.
Tão emocionado ficou Adolfo que ousou abraçar o amigo com muita ternura, ensaiando um pensamento de profunda reverência ao empenho dele de se livrar das garras de um instinto claramente definido como homossexual, conforme se lembrava de ter ouvido Arlete comentar.
Quando saíram do seu retiro para o reino dos viventes, foi como se estivessem mergulhando num mundo de esperanças e de sutis realizações no campo da espiritualidade. Sentiam-se verdadeiramente abençoados.
Oliveira e Laura acompanharam todos os movimentos das duas almas, admirados com a intensidade dos bons propósitos que se traduziam em claras irradiações de boa vontade, eles mesmos desejosos de compartilhar aquele sacratíssimo momento de devoção cristã.



16. VERÔNICA REAGE

De posse da carta, do caderno e da caixa com os pertences de Eurico, da qual Clóvis fez questão de retirar dois ou três objetos que ele mesmo havia dado ao infeliz, e após combinar com Verônica que se encontrariam no ginásio de esportes imediatamente, informando que as notícias eram boas, Adolfo chamou um táxi e partiu, não sem antes verificar que ficara muito tarde para acompanhar o enterro da mulher de Dario.
No caminho, sentiu três ou quatro fortíssimos empuxos para desfazer-se do pacote e do caderno. Mas conteve-se, raciocinando que era preferível que Verônica tomasse a iniciativa.
Perpassou-lhe a idéia de chamá-la de Niquinha, mas se extinguiu tal impulso completamente pela lembrança de Eurico, substituindo por Verinha, idéia que também foi abandonada, ao se recordar de que chamara Laura de Laurinha.
Cismou de percorrer os nomes da extensa lista, examinando, como distração para sua ansiedade, as anotações feitas pelo autor.
Havia, no início da relação, o nome da cidade e a data do primeiro relacionamento. Ora, Verônica havia mencionado que Eurico viera de uma pequena cidade interiorana, aos vinte e dois anos. Então, ele se havia dedicado às mulheres apenas na cidade grande, concluiu Adolfo. Verificou que alguns nomes estavam riscados e outros sublinhados. A ordem das datas não correspondia a um crescendo no tempo, dando a idéia de que as anotações tivessem sido organizadas posteriormente e não à medida que as conquistas se foram sucedendo. No final, ao lado do nome riscado de Verônica, assinalava-se uma data que Adolfo não soube reconhecer como sendo a do princípio do relacionamento ou do término.
Ao chegar, Adolfo entrou decidido a largar o volume na sala dos fundos, mas Verônica, a mãe e o pai estavam no saguão à espera dele.
Assim que o viu, Verônica correu a abraçá-lo, concluindo o namorado que as informações dadas por Arlete aos pais já eram de seu conhecimento.
Mas houve um momento de angústia, quando a moça se apartou dele com um empurrão, enchendo-se-lhe os olhos de lágrimas:
— Que foi, querida? — apressou-se a perguntar o repelido.
— Não é possível que você também tenha sido envolvido por aquele pederasta.
— Não existe nenhum pederasta, Verônica. Clóvis é uma excelente pessoa.
— Esse perfume é inconfundível. Eu o senti em Eurico, naquele maldito dia em que me procurou.; e agora estou sentindo em você.
A reação espantou os pais e muito mais ainda o pobre pretendente, que não sabia o que pensar e ainda menos o que dizer. Aliás, estranhamente, media a reação da parceira, como se lhe interessasse saber em que tipo de criatura se transformaria ela em situação adversa.
Bem que Adolfo se imaginou interrogando-a a respeito de como poderia acusá-lo de algo que ele sabia muito bem que não era verdadeiro. Em vez disso, ocorreu-lhe que a confusão se estabelecia pelo fato do desconhecimento de que quem usava o perfume era Arlete e não Clóvis, fato que Verônica não tinha como saber.
Rapidamente, Adolfo avaliou toda a extensão do problema, primeiro quanto a revelar a origem do perfume, depois como é que se havia impregnado dele e, finalmente, o relacionamento entre Arlete e Eurico. Era o que ele não tinha muita habilidade para contornar, uma vez que sempre jogava limpo, indo diretamente ao centro do furacão. De qualquer modo, resolveu ganhar tempo, retirando do bolso a célebre carta:
— Verônica, você vai ver que tudo tem uma justificativa. Quando a gente não tem base na realidade, tira conclusões precipitadas. Eu já lhe disse isto, tanto que fui atrás de resolver a pendência. Daqui a pouco eu esclareço o perfume. Agora, leia esta carta. Você reconhece a letra de Eurico?
Ao ver a carta, Dona Edna fez um sinal ao marido para aproximá-la do casal. Queria, na verdade, sentir o perfume que emanava de Adolfo. Ao chegar perto dele, o odor suavíssimo foi suficientemente forte para despertar nela a lembrança de Arlete, cujo apoio em Adolfo, ao sair da sala do velório, poderia explicar em parte a situação.
Mas Verônica, ainda excitada pela reação de há pouco, tremia ao manter o papel com ambas as mãos, como se pesasse uma tonelada.
Vendo-se impedida pelas lágrimas de efetuar uma leitura adequada, Verônica estendeu a folha ao pai, que a lesse.
França puxou a filha suavemente para si e foi com ela até o balcão de atendimentos, naquele momento vazio, e ali tiveram um longo colóquio.
Adolfo e Dona Edna, ambos curiosos com as informações que poderiam colher reciprocamente, acharam excelente a oportunidade. Foi a mulher quem se manifestou primeiro:
— Você deve estar querendo saber o que foi que nós contamos a ela...
— Sem dúvida, porque Arlete teve uma conversa séria com vocês e eu gostaria de saber como é que vocês receberam o que ela lhes contou.
— Ela falou que Eurico jamais teve nenhum contato sexual com o irmão, conforme a gente suspeitava. Disse também que ele foi internado para desintoxicação das drogas, o que nós já sabíamos, embora não com a gravidade que ela nos disse. E nos pediu que confiássemos em que o amor do irmão foi absolutamente platônico. Tudo isso é verdade?
— A carta que Verônica destruiu revela grande parte do mistério. Isso de Eurico ser viciado, conforme ele diz na carta, está errado, porque afirma que se drogou uma única vez e contraiu o vírus da doença, o que não corresponde à verdade. Clóvis me afiançou que ele era viciado há muito tempo. Para dizer a verdade, desde que chegou do interior, portanto, antes de conhecer sua filha. Se vocês não perceberam foi porque ele realmente desejou acabar com o vício, entretanto, ao perder o emprego, ficou tão visível o seu desequilíbrio que saiu de sua casa. Naquele momento já estava infectado. Ao realizar o exame de sangue para o tratamento, é claro, todas as doenças ficaram sob suspeita e se deu a confirmação de que era aidético. Pelo que me disse Arlete, ele teve um tratamento de primeira...
Dona Edna era bem capaz de tirar as próprias conclusões, então foi adiantando:
— Pois eu sei qual foi a origem do seu perfume. Nós vimos quando você saiu abraçado com a professora. O que me falta saber é se o irmão usa o mesmo perfume que ela.
— As suas suspeitas, infelizmente, eu tenho de confirmar. Vivinho não usa aquele perfume. E se Verônica sentiu o mesmo cheiro em Eurico, é óbvio...
— ... que ele também esteve com Arlete. Mas...
— Ela não lhe disse que havia uma certa intimidade entre ela e Eurico?
— Disse a você?
— Ela não me disse nada disso, mas...
Adolfo hesitava contar o segredo que lhe confiara Clóvis, entretanto, Dona Edna foi conclusiva:
— Eu não guardo mais nenhuma dúvida a respeito. O que me importa é preservar a minha filha. Por isso, vou confiar em você. Se você acha que dá conta de fazê-la compreender tudo, fica ao seu encargo esclarecê-la. Caso contrário, vou conversar com o França para ver o que podemos fazer para confortá-la.
— Eu não acho que Verônica possa sofrer mais do que já sofreu. Está na hora de ela sair dessa penumbra emocional em que quedou desde a partida e o falecimento de Eurico. Eu compreendo o quanto ela o amou. Compreendo porque eu amei a minha mulher com todo o meu coração. Mas a vida não estacionou para nós. Eu senti que ela é forte e que sua reação de há pouco foi porque pensou que também podia perder a mim. Mas, se a situação está muito clara, o tempo ainda há de passar para que algumas feridas se fechem.
Sentindo que as palavras lhe saíam com muita facilidade, Adolfo calou-se, com medo de pronunciar alguma sentença que o comprometesse perante o destino. Mas encasquetou na idéia que muito do que dissera viera diretamente do plano espiritual.
Dona Edna, procurou a mão do moço e, num movimento rápido, beijou-a, em sinal de agradecimento.
Ele não retirou a mão. Ao contrário, abaixou-se e osculou a testa da mulher em sinal de profunda simpatia.
Dona Edna, após uns instantes, lhe pediu:
— Vá embora. Tome um banho. Ponha o seu perfume. Depois vá buscar Verônica lá em casa. Saia com ela conforme vocês combinaram. Posso dizer-lhe que ela está fortemente impressionada por você e isto eu vejo no esforço que vem fazendo para fechar a boca. Nunca aconteceu nada semelhante. Se der certo, vocês vão encontrar a felicidade de novo.; talvez até maior que a anterior. Quanto a mim, agradeço a Deus esta nova oportunidade que ela está tendo.
Chegou a vez dela hesitar: não sabia se levantava ou não a tese que, com o marido, elaborara, ou seja, de que Arlete estaria interessada em Adolfo. A confirmação tácita de Adolfo quanto ao relacionamento da professora com Eurico, no entanto, deu-lhe coragem:
— Adolfo, eu não tenho nada com sua vida particular. Aliás, nós nos conhecemos há tão pouco tempo que o que eu vou dizer talvez possa ofendê-lo. Mas (não me interrompa) tome cuidado com a Doutora Arlete, que poderá exercer sobre você um fascínio poderoso, por várias razões que eu sei que você, inteligente como é, já percebeu.
Incomodado, Adolfo procurou uma explicação lógica:
— O meu contato com ela é meramente profissional, muito embora eu a estime e admire pelo seu discernimento e sucesso na carreira. Mas eu acho que não estou correndo nenhum risco, apesar de ter notado a mesma coisa que a senhora.
— Então, tome cuidado, por favor, e pelo amor de Deus, não me leve a mal. É que eu amo muito minha filha para não querer que ela passe por outra tremenda frustração.
— Eu posso dizer-lhe que, se ela vencer esta crise (e eu vou ajudá-la quanto a isso), não terá do que reclamar de minha decisão.
A conversa teve de morrer ali porque os outros dois se aproximaram.
Verônica vinha com uma grande interrogação:
— Adolfo, você está gostando da irmã do Vivinho?
— De onde você tirou essa idéia?
— Meu pai me disse que o perfume que eu senti é o dela e que vocês saíram abraçados da sala...
Dona Edna fez menção de apartear, mas um gesto brusco da filha a calou, enquanto todas as atenções se concentravam em Adolfo.
— Eu não estou gostando dela, no sentido que você está emprestando à palavra. Neste sentido, eu estou gostando de você, porém, sinto que as coisas estejam acontecendo deste jeito. Preciso tomar um banho e pensar bastante na vida, que tudo está acontecendo muito rapidamente.
Verônica percebeu que Adolfo estava sendo simplesmente educado.; que não havia gostado de ter sido posto em uma situação delicada, mas também se furtava a manifestar seu desagrado, tanto que não mergulhara seu olhar em seus olhos, como era de seu costume. Então, tomou a iniciativa da reconciliação:
— Adolfo, eu lhe peço que me desculpe o atrevimento. Eu não tinha nenhum direito de questionar os seus sentimentos.
Ela olhava fixamente para ele, buscando seu olhar. Adolfo não desviou a vista mas também não se demorou a fitar o belo rosto da amiga. Pegou-lhe a mão, levou-a aos lábios, prometeu que a pegaria às sete horas e retirou-se, não sem antes cumprimentar os pais da moça.
Assim que ele desapareceu porta afora, Verônica se deixou abater, arrependida de ter cobrado dele uma resposta tão prematura. A mãe censurou-a:
— Você não deu oportunidade a que ele lhe explicasse naturalmente os fatos. Fez como quando destruiu a carta do Eurico. Agora você tem de acreditar no que vou dizer: o perfume de Arlete se impregnou em Adolfo inocentemente, mas não em Eurico. Eu sei que você vai ficar magoada comigo, mas a verdade é que o seu ex é quem se engraçou pela professora.
Verônica, percebendo a provocação da mãe, respondeu-lhe sem fazer cerimônia:
— Que diferença faz se a história de Eurico o retrata desta ou daquela forma? Está morto e enterrado. O que me perturbou, desde hoje de tarde, foi perder mais um afeto para a mesma pessoa. Mas eu precisava saber se Adolfo não está dando trela a uma aqui e a outra lá. Chega uma vez.
França, que examinava o conteúdo da caixa, chamou-lhes a atenção:
— Estes objetos pertenceram a Eurico. Vocês querem ver se existe alguma coisa para guardar?
Dona Edna foi incisiva:
— Jogue tudo isso fora, por favor. Ele está morto e enterrado.
A filha corroborou o pensamento:
— Não quero saber de nada do que está aí. Pode levar para o depósito, que alguém aproveite o que estiver em bom estado.
Ato contínuo, rasgou a carta que ainda mantinha nas mãos. Em seguida, empurrou a cadeira de rodas na direção do interior do ginásio de esportes, depositando os pedaços da carta no cesto de lixo perto do balcão, o pai atrás com o pacote.
Vários paraplégicos vinham em sentido contrário, eles mesmos fazendo girar as rodas de suas cadeiras, todos cumprimentando o terceto, com largos sorrisos de satisfação por terem terminado a faina diária a que seu voluntariado fraternal os obrigava.
Chegados ao salão, havia um casal para cadastrar-se, a mulher entrevada e o marido ansiado por receber logo a cesta básica, que a família estava esperando em casa com fome.
Verônica encostou a mãe junto à mesa, do outro lado do computador, enquanto o pai desaparecia de vista.
— Vocês perderam alguém da família na inundação?
— Perdemos uns parentes distantes. Foram soterrados num deslizamento do morro, respondeu o homem, ao que a mulher acrescentou:
— Graças a Deus que estamos vivos. Nós perdemos só as coisas materiais. Agora é trabalhar para conseguir tudo de novo.
Enquanto o questionário oficial prosseguia, Verônica mastigava a observação do trabalhar para conseguir tudo de novo.
Naquele mesmo instante, Adolfo dava com o caderno de Eurico preso ao cinto.



17. UMA NOITE CHEIA

Faltavam alguns minutos para as seis da tarde, quando Adolfo chegou ao apartamento.
Prevenido de que os móveis tinham sido retirados, ainda assim levou um susto quando percebeu que a sala estava totalmente vazia. Até os quadros não mais estavam nas paredes, restando um foto dos três irmãos de dez anos atrás encostada à parede. Nem televisor, nem estofados, nada denotava que ali fora o seu lar da vida inteira. Preocupou-se com o seu quarto, mas este estava do mesmo jeito. Seu escritório de trabalho também se mantivera intacto, no entanto, os quartos da mãe e de Benito estavam limpos. Foi à cozinha e lá faltavam as cadeiras, a mesa, a geladeira, o fogão, restando um pequeno forno elétrico sobre a pia e mais nada. Ia reclamar a falta de um copo, de um prato, de talhares, mas encontrou-os dentro do forno, bem como dois guardanapos de pano. No armário embutido, nenhum mantimento. No gabinete da pia, material para lavar a louça.
Quando ia examinar o banheiro, notou que o telefone emitia sinais luminosos no fundo da sala, que mal se iluminava pelas frestas das janelas desprovidas das cortinas.
Havia recados na secretária eletrônica. O primeiro era de Arlete, solicitando que ele ligasse assim que chegasse. O segundo era do irmão, avisando-o de que estava a caminho do apartamento. O terceiro era de Dario, agradecendo os móveis. O quarto era de Dona Edna, avisando-o de que Verônica superara a crise.
Adolfo não se abalou com os recados. Imaginou que Arlete queria comunicar-lhe o resultado da entrevista, que Francisco desejava combinar a reforma das dependências, que Dario recebera justamente o que estava faltando ao seu redor e que Verônica ainda teria de enfrentar uma lista tremenda de nomes femininos.
Dirigiu-se ao banheiro, a ver se estava em condições de proporcionar-lhe um banho. Estava como havia deixado, com todos os produtos e apetrechos para lavar-se e escanhoar-se.
Decidiu-se, então, por telefonar a Arlete, prevenido quanto a dar-lhe pouco tempo para as informações.
Ligou e, em seguida, foi declarando:
— Alô, Arlete.; Adolfo. Como foi a entrevista?
— Tudo bem. Deixei o reitor na mão por uns dias, porque desejava estabelecer com você a formulação da pesquisa que devo levar a efeito. Precisamos ajustar os nossos ponteiros o quanto antes. Posso marcar para amanhã de manhã?
— Não. Eu vou ter de avaliar o programa que você me entregou. Tenho também de ler as suas anotações, sobre a pesquisa. Você pode amanhã à tarde?
— Só se for na Universidade.
— Eu sei como chegar ao seu prédio. A que horas?
— Às quinze.
— Feito.
Quando ia despedir-se, Arlete mudou de assunto:
— Suponho que você tenha conversado com a moça.
— Conversei e a convenci de que a causa da moléstia do rapaz fora o sangue das picadas.
— O Vivinho me contou que lhe deu um caderno com uma lista de nomes. Você não mostrou isso à moça...
— Foi por pouco. Se me tivesse lembrado...
— Faça como achar melhor, mas é bom saber que fui eu quem sugeriu ao amante dela que relacionasse todas as mulheres, desde que se viu infectado. Você teve oportunidade de folhear o caderno?
— Sim.
— Então, deve ter notado certos nomes riscados e outros sublinhados, enquanto muitos não apresentavam anotação alguma.
— Sim.
— Os riscados são os nomes das mulheres que foram avisadas de que poderiam estar com o vírus, que fizeram o exame de sangue e que deu negativo. Os sublinhados, que são treze, exatamente, são os nomes daquelas cuja sorologia resultou positiva. Os demais representam as mulheres que não foi possível localizar.
— Santo Deus! São mais de trinta!
— Trinta e sete, precisamente. O que é importante saber é que são todas mulheres de boas famílias, algumas casadas, umas poucas viúvas e muitas solteiras, todas com vida sexual ativa, podendo estar disseminando a doença.
— Não há um modo qualquer de avisá-las, colocando um aviso nos jornais, procurando nas listas telefônicas?...
— Tudo isso já foi feito. Mas, por incrível que pareça, não recebemos nenhuma resposta. Nestes dois últimos anos, já repetimos o anúncio quatro vezes, mas parece que elas não lêem jornal ou já realizaram por conta própria os exames e tomaram suas providências.
— Já se deu algum óbito?
— Oito.
— Algum processo judicial?
— Duas tentativas frustradas pela morte do rapaz.
— Será que eu vou poder fazer alguma coisa a respeito?
— Você deve orar muito para que haja compreensão das pessoas quanto à ignorância do rapaz em relação à sua própria condição de saúde. Mas não se esqueça de um fator importante: não houve nenhuma que, uma vez avisada, se tenha revoltado, porque todas preservaram apenas boas recordações...
— Exceção, se me permite, para Verônica.
— Concordo, mas porque ela era para ele a sua maior paixão, tanto que foi a última da lista, tendo tido muita sorte de se prevenir através de preservativo, uma vez que não desejava engravidar antes de se casar. Talvez ela soubesse que ele já era casado...
Adolfo sentiu a frase como que envenenada, mas Arlete foi condescendente:
— Pois agradeça à filha de Dona Edna o fato de ele ter ficado com ela por mais de dois anos, sem arrastar a asa para mais ninguém.
“Teria Arlete evitado falar de seu caso pessoal por razões íntimas?”, logo se perguntou Adolfo. Mas fez-se de desentendido:
— Arlete, meu irmão está chegando e eu estou precisando preparar-me para recebê-lo. Provavelmente, ele esteja vindo com minha cunhada e meus sobrinhos. Amanhã a gente complementa as informações, porque existe uma história de perfume muito interessante.
— Não me deixe na expectativa. Terá sido o meu perfume a causa de algum problema para você? Olha que se trata de uma legítima essência francesa.
— É por aí.
— Então, o caso é sério. Até amanhã.
Antes que Adolfo respondesse, ouviu desligar-se o telefone na outra ponta da linha.
Buscou uma troca de roupa no armário, encontrando o que desejava. Nesse instante soou a campainha.
Ao chegar perto da porta, sentiu que ela se abria e entrava o irmão, trazendo atrás de si dois funcionários do prédio carregados de coisas, inclusive com um volume bastante grande.
Francisco foi logo explicando:
— Toquei a campainha para não ter nenhuma surpresa. Eu sabia que você havia chegado porque o porteiro me disse. Trouxe para você uma geladeira portátil, elétrica, e alguns mantimentos indispensáveis: leite em pó, café solúvel, pão de forma, margarina e outras coisas mais, como frutas e legumes.
— Você veio sozinho?
— Vim. Mas o tio também vai chegar a qualquer momento. Queremos concluir a conversa de hoje cedo. Em primeiro lugar, é bom saber que quase tudo ficou com seu amigo Dario. Ele não ligou agradecendo?
— Ligou. Eu achei que foi uma excelente idéia, bem melhor do que a que me veio de trazê-lo a morar comigo. Depois que eu vi que ele tem filhos bem postados na sociedade, achei até esquisito pensar nele aqui no apartamento. Mas é bom você ficar sabendo que, às sete, eu tenho de estar na casa da Dona Edna. Prometi sair com Verônica.
— Quanto tempo leva para chegar lá?
— No máximo, quinze minutos.
— Você vai buscar a moça e volta para cá. É sempre bom ouvir a opinião feminina.
— Eu ia tomar um banho.
— Não se acanhe. Enquanto isso eu dou um jeito na cozinha. Você pensou que ia ficar sem ter o que comer?
— Eu ainda não tive tempo para pensar em nada. Mas estou com fome.
— A gente manda vir uma pizza.
— Nem pensar. Verônica está de regime. Eu não vou querer que ela passe um aperto.
— Quer que eu lhe prepare uma salada de frutas? Laranja, mamão, pêra, banana e abacaxi. Trouxe um pouco de cada.
— Faça isso.
Quando ambos se cruzaram, Francisco observou:
— Essa sua Verônica usa um perfume de primeira, certamente francês.
Adolfo sorriu mas escondeu a verdade. As explicações demandariam muito tempo.
Assim, os próximos vinte minutos se empregaram como planejado, inclusive com a chegada de Eduardo, que logo foi ajudar Francisco na cozinha.
A ligeira refeição foi acomodada na escrivaninha do escritório, onde havia quatro cadeiras e duas poltronas. Ali ficaram bem à vontade.
Os três se serviram calados. E comeram as primeiras colheradas saboreando.
Eduardo foi o primeiro a falar:
— Eu não acho que vá dar tempo de explicar tudo nestes próximos dez minutos. Adolfo, ligue para Verônica, peça para ela estar pronta logo e vá buscá-la imediatamente. Enquanto isso, eu e seu irmão vamos ajustar as idéias sobre o que fazer no apartamento.
Adolfo concordou com a cabeça mas indicou que desejava comer mais um pouco, concluindo:
— O meu almoço foi muito frugal e depois não comi mais nada, a não ser um chá de camomila com três biscoitinhos que o irmão da Arlete me serviu.
Os próximos minutos foram gastos na explicação, sem muitos detalhes, de como foi ele parar no spa.
Tendo ligado para Verônica, esta lhe disse que poderia ir buscá-la, fazendo um trejeito na entonação da voz, como que estivesse amuada por ter Adolfo prevenido sobre a reunião em família, encerrando:
— Eu gostaria de jantar aqui em casa, porque estou controlando as calorias, os lipídios, os glicídios etc.
— Aqui só temos algumas frutas. Se você ficar com fome, não vai quebrar o regime. Até logo.
— Tchau.
O querido da intimidade acabou engasgado na garganta dela.
Enquanto dirigia, Adolfo meditava a respeito de ser ou não conveniente mostrar-lhe a lista dos nomes. Contrariando seus hábitos, acabou deixando para uma inspiração oportuna, caso seu guia ou protetor espiritual determinasse qual a melhor decisão.
Encontrou Verônica à porta, com um embrulho na mão. Logo ela se acomodou no carro e Adolfo não teve oportunidade de cumprimentar-lhe os pais. Mas trocaram um beijo protocolar de bons amigos.
— Este seu pacote está muito cheiroso. Que é que você tem aí?
— É uma torta de palmito. Eu furtei de casa para vocês três. Quando se precisa restaurar as forças de um dia exaustivo como foi o seu, só as frutas não vão dar.
Adolfo deixou o assunto morrer. Prestava atenção no trânsito e na criançada que se aproximava do carro a cada semáforo. Não era amigo de dar nada aos pedintes, mas, naqueles tempos de calamidade, distribuía todos os trocados que fazia questão de portar.
Passaram por uma avenida sob um viaduto em cujo vão se estabelecera uma verdadeira favela, com seus casebres precários de tábuas e até de papelão. Várias pequenas fogueiras indicavam que se cozinhava por ali mesmo, ao relento, sob a proteção da marquise.
No próximo sinal, ao se aproximar uma senhora carregando uma criança, em um ato reflexo, Adolfo abriu o vidro e passou o embrulho que estava no colo de Verônica.
Ambos seguiram silenciosos até o prédio. Verônica admirando a sensibilidade do amigo.; este sem saber como explicar a própria generosidade.
No saguão do edifício, Adolfo fez questão de apresentar a companheira ao porteiro, perguntando se o irmão e o tio ainda estavam lá. Era uma formalidade para não dar nenhuma impressão equivocada aos outros moradores.
Subiram de mãos dadas, cumprimentando os passageiros do elevador que entraram no térreo e saíam a cada andar.
Por brincadeira, Adolfo tocou a campainha e abriu a porta que estava apenas encostada.
— Não se preocupem, somos nós. Toquei para evitar surpresas.
Falou e se arrependeu, recordando-se que fora a observação que Arlete fizera em relação ao Vivinho. Mas Verônica não tinha como decifrar tal enigma.
Feitas as apresentações, logo sentiram Francisco e Eduardo que havia um forte vínculo sentimental a unir os mais moços.
Eduardo foi logo colocando a jovem senhora a par do que sucedia:
— Você sabe que perdemos o nosso Benito há quatro dias. Francisco fez questão de levar a mãe para viver com ele. Agora Adolfo vai ficar com o apartamento só para si. Como havia uma questão de herança, tivemos a idéia de reformar tudo, que o dinheiro vai servir para alguma coisa importante, tanto que os móveis foram dados ao Dario.
Francisco cortou a longa digressão com que o tio ameaçava a convidada:
— Em suma, temos de discutir que fazer para tornar tudo bem mais adequado a uma pessoa que vai viver sozinha.
Falou a sondar a reação de ambos, mas não obteve nenhuma notícia subliminar. Prosseguiu:
— Esta sala é suficientemente grande para dois ambientes, como havia antes. Mas estamos pretendendo colocar aqui apenas uma mesa comprida o suficiente para reunir até quinze ou dezesseis pessoas, enquanto o centro espírita que vocês freqüentavam não arrumar um local próprio para continuar suas atividades.
Verônica observou:
— Eu não freqüentava aquele centro. Eram meus pais que iam lá. Mas eles vão ficar contentes em vir reunir-se com os amigos aqui.
Era a primeira informação que Adolfo recebia da parceira quanto à idéia religiosa. Buscou encará-la com ar interrogativo, mas Verônica prestava atenção em Francisco, que prosseguiu:
— Meu irmão não vai ficar sem um bom aparelho de televisão, porque vamos transformar o quarto do Benito em uma sala de som e vídeo, tudo de primeira e topo de linha, isto, é claro, se ele concordar.
— Eu concordo, muito embora faça bastante tempo que não sigo os lançamentos cinematográficos.
Francisco esclareceu para Verônica:
— Adolfo cuidava do irmão, que exigia muita atenção. Por isso, ele só trazia filmes bem infantis, que era como Benito se divertia. Mas agora ele vai poder pôr-se em dia com as produções. Mas isto é o de menos. Nós ainda temos de discutir se vamos pintar ou colocar papel de parede, se vamos carpetar ou cuidar do assoalho, se vamos dependurar cortinados ou persianas, se vamos transferir os móveis do seu quarto para o quarto maior ou montar um dormitório de casal...
A sugestão ficaria no ar. A próxima hora passou muito rapidamente, todos dando seus palpites e oferecendo idéias para a decoração básica, acabando por ficar acertado que seria contratada uma loja especializada que realizaria tudo segundo um critério profissional.
Verônica custou um pouco para entrar naquele jogo de segundas intenções, mas acabou dando suas opiniões, chegando mesmo, a certa altura, a iniciar a sua frase com um “se me perguntassem como eu gostaria...”
Aproximadamente às oito e meia, Eduardo se despediu, levando consigo Francisco, pegando o casal de surpresa. De repente, eles se viram sozinhos no apartamento.
Adolfo ficou absolutamente sem jeito. Seu primeiro pensamento foi o que poderia pensar Verônica a respeito da armadilha que lhes foi preparada, porque lhe parecia claro que o irmão e o tio combinaram para aquele resultado.
— Verônica, disse ele, eu não quero que você me julgue mal. Eu não imaginei que iríamos acabar tão cedo numa situação de tanta intimidade.
Verônica sorriu e observou:
— Não tenha medo de nada. Os nossos destinos, eu acredito, estão entrelaçados. Não é preciso que aconteça nada esta noite. Aliás, eu estava contando com um momento a sós, ainda que estivéssemos num restaurante, no jardim do prédio, no ginásio de esportes deserto. Preciso pedir-lhe sua compreensão para o modo como agi hoje à tarde. Era como se nós tivéssemos trocado juras de amor e assumido compromissos definitivos. Além do mais, eu preciso agradecer-lhe o empenho em limpar a memória de Eurico, para que as lembranças dele não incluíssem a grave suspeita do homossexualismo.
Adolfo aproximou-se de Verônica e pôs o dedo sobre os lábios dela, indicando que deveria parar para ouvi-lo. Criou coragem e revelou:
— De qualquer modo, o seu namorado, não sei se você sabe, teve muitos casos antes de conhecê-la. Você sabia que ele era casado?
A moça estava preparada para conquistar a afeição do rapaz e lastimava o rumo que ele estava dando à conversa. Por isso, tentou encerrar o assunto:
— Tenha sido casado ou não, agora está morto e enterrado. Rezemos pela alma dele e prestemos atenção nos vivos.
— Tudo bem, querida, eu não vou ficar enciumado, ainda porque a lembrança de seu amor haverá de despertar para a recordação do meu. Mas, ao contrário de você, eu penso que os espíritos dos nossos companheiros devem estar vagando na erraticidade, talvez desejosos de se reencontrarem conosco, em tempo hábil para reencetarmos a nossa caminhada juntos.
Dessa feita foi Adolfo quem percebeu que batera com a língua nos dentes. Mas Verônica não explorou o titubeio dele, simplesmente acrescentando:
— Digamos que todos nós, um dia, vamos partir para outro mundo, onde viveremos espiritualmente. O que eu temo é não realizar completamente o meu plano de vida, conforme minha mãe tem explicado sob a luz do espiritismo. Existe todo um aparato material a forçar os seres vivos, por exemplo, à reprodução. Você não acha que está passando da hora de termos os nossos filhos?
Adolfo considerou que não era apenas ele quem estava sendo infeliz na exposição dos pensamentos. Assim, desejou emendar:
— Se nós estabelecermos que existe reencarnação, o que não tivermos oportunidade de realizar nesta poderemos efetuar na próxima. Se nos foi oferecida esta chance, é que as condições de nossos familiares permitiram que reingressássemos neste mundo. Afinal de contas, você é espírita ou não?
— Mais ou menos. Eu sou espiritualista. Acredito em um Deus criador, mas acho que a nossa sorte somos nós mesmos quem fazemos e, por isso, cometemos muitos erros, aceitamos situações que aparentemente são esplêndidas e depois nos deparamos com problemas para cuja solução não temos como contribuir. Estou pensando em nós dois, que perdemos os nossos parceiros, aqueles em quem depositamos a nossa fé de vencermos todos os entraves do destino, e agora estamos diante de uma nova decisão...
Não quis prosseguir, dando oportunidade a que Adolfo se manifestasse a respeito. Este não hesitou:
— Eu também acho que nós contribuímos muito para a formulação de nosso dia-a-dia.; no entanto, como você sugeriu, o futuro a Deus pertence, de modo que, muitas vezes, nós colhemos sem que tenhamos realmente plantado, a não ser que a gente possa levar em conta o fato de que existem limites que estamos impedidos de conhecer e, mais ainda, de administrar. Meu irmão Benito era mongolóide, como você deve estar sabendo. É uma circunstância que podemos entender filosoficamente, mas que é impossível de enfrentar sem amor. Meu pai, que depois deu mostras de se haver arrependido, não aceitou o defeito do filho e abandonou a família. De que nos acusava? Não tenho a mínima idéia. A verdade é que constituiu um novo lar e teve mais três filhas, todas sadias. Adquiriu algum débito em relação à minha mãe e aos filhos dela? Tudo leva a crer que sim. Mas, se a gente considerar que cada um de nós tem um histórico existencial, poderemos concluir que precisávamos vencer tais dificuldades, meu pai e nós. Benito, inclusive, pela tese espírita, que mal conheço mas que, neste aspecto, pesquisei, deve ter abusado de algum aspecto de sua intelectualidade em existência anterior, para ter de enfrentar um aleijão mental tão poderoso. E, se não for por isso, é que terá ainda de compreender que em tudo e por tudo Deus é justo, atribuindo-se a necessidade de analisar causa e efeito que redundaram naquele passado na carne.
Verônica parecia estar recebendo todo o influxo das idéias manifestadas pelo amigo, mas sem perder de vista a construção de um futuro feliz ao lado de quem estava pondo o coração e a inteligência à mostra. Compreendeu que precisava volver à expressão vital de seu passado, afirmando convicta de que iria desfazer-se para sempre do maior fantasma que a atormentava:
— Eurico me contou que era casado. Disse ainda que traiu sua esposa e que precisou fugir de sua cidade natal por haver manchado a honra do lar de um de seus maiores amigos. Contou-me que, antes de me conhecer, estivera com muitas mulheres, o que me fez concluir que eu era especial para ele. Quando soube que se hospedara na casa do patrão e que este era efeminado, foi como uma ducha de água fria no meu ego. Agora você e minha mãe estão dizendo-me que era pela irmã dele...
Não conseguiu manter o sangue-frio com que vinha narrando os acontecimentos. Misturara as imagens e sentia ainda o perfume da outra nos dois homens em que depositara sua confiança. Adolfo, contudo, não se aproximou para abraçá-la nem lhe ofereceu o lenço protocolar da circunstância. Apenas manteve-se em silêncio, esperando a conclusão, pois desejava acrescentar o que sabia em relação à vida amorosamente turbulenta do falecido.
Verônica concentrou-se para poder encerrar. Vinha-lhe a idéia de que dissera tudo, mas, ainda assim, completou:
— Infelizmente, eu não fui suficientemente esperta para perceber que Eurico sofria. Vivia uma história de amor desconfiado e egoísta. Acreditava que as pessoas se doavam umas às outras como eu mesma pensava que fazia. De repente, a tragédia chegara ao seu último ato e eu nem prestara atenção no desenrolar do enredo. Devia ter ido atrás dele, de qualquer maneira.; não permanecer encastelada no lar resguardada dos perigos do mundo, enquanto ele travava sua derradeira batalha. Ele precisava de mim e eu não compreendi isso. Foi quando teve necessidade de pessoas desconhecidas. Eis, Adolfo, o que eu tenho guardado comigo, o que me fez desprezar-me a ponto de me tornar este traste de mulher...
Adolfo não deixou que ela prosseguisse agredindo-se. Abraçou-a, dizendo-lhe baixinho:
— Querida, eu entendo o que você está sentindo. De um certo modo, eu também deixei Laura fenecer antes de tomar todas as providências. Paciência. É assim que a vida nos ensina. Como você acha que os sábios aprenderam? Foi padecendo os horrores dos males. Eu poderia citar-lhe tantos homens importantes que, antes de terem sido reconhecidos pela humanidade, passaram por perdas e decepções muito grandes. Mas existe algo que eu gostaria de mostrar-lhe, porque é preciso que lhe diga tudo quanto sei a respeito daquele por quem você chorou tanto.
Desprendeu-se do abraço que ela lhe dava e dirigiu-se para o quarto onde havia deixado o caderno com as anotações. Antes que tivesse tempo de consultar o etéreo, conforme prometera a si mesmo, já estava de volta com a explicação pronta:
— Neste caderno estão os nomes das mulheres com quem Eurico manteve relações antes de conhecer você. Foi organizado por ele em conjunto com Arlete, depois que souberam da doença. Era preciso prevenir a respeito de possíveis contaminações, para que as que contraíram o vírus não o passassem adiante. Na maioria dos casos positivos, já era muito tarde.
Verônica folheou rapidamente o caderno, reclamando que não estava enxergando direito por causa do pranto insistente. Ainda assim, foi capaz de perceber que havia uma quantidade enorme de nomes e de datas, tendo chegado ao final da relação, onde encontrou o próprio nome. A data ali assinalada chamou-lhe a atenção: era a do dia em que Eurico fora avisá-la de que precisava realizar o exame de sangue. Foi o que ela informou a Adolfo.
Compreendia ele, finalmente, por que as datas estavam misturadas e por que muitos nomes não estavam acompanhados dessa indicação.
Verônica, no entanto, não demonstrou reconhecer a culpabilidade de Eurico, afiançando:
— Veja quantas mulheres gostaram dele. Aposto que nem todas reagiram tão mal quanto eu, acusando-o por suspeitarem de que contraíra a doença por se amasiar com um homem. Ele veio dizendo que tinha sido infectado por causa de uma picada. Eu o expulsei da minha frente, considerando que ele me havia deixado por um homem. Se eu soubesse que tinha sido por uma mulher, acho que minha atitude teria sido bem diferente. Que aconteceu entre ele e a irmã daquela pessoa?
— O que o Clóvis me contou é que Arlete correu também o risco de se contaminar, o que me leva a concluir que eles se tornaram íntimos antes do conhecimento da doença, portanto, quando ele estava trabalhando para a firma do Clóvis e poderia apresentar-se a você. Por que não o fez? Porque o vício da cocaína já o dominara e ele precisava tratar-se. Foi quando foi internado para desintoxicação, momento em que realizou o exame de sangue e tudo desmoronou na vida dele. Eu sei que você vai dizer que ele sofreu e já cumpriu sua sentença de morte. Mas é preciso que você considere que ele...
Adolfo entendeu que, se prosseguisse naquele diapasão, iria ser ríspido demais em relação aos sentimentos de Verônica.
“Afinal de contas, pensou, ela precisa tirar as próprias conclusões, para compreender a realidade.”
Por isso suspendeu sua linha de considerações.
Por seu turno, Verônica despertava para a responsabilidade de Eurico:
— Quer dizer que pessoas contraíram AIDS por causa dele?
— Quer dizer que algumas pessoas morreram de AIDS e outras contaminaram seus parceiros sexuais, sem contar a possibilidade de ele ter passado adiante a moléstia através das seringas do vício.
— Santo Deus! Houve quem sofresse muito mais que eu, que me considerava uma vítima e que me acabrunhei quando deveria partir em auxílio das pessoas.
— Você, como disse Arlete, impediu que muitas outras mulheres adquirissem a doença, porque, no tempo que ele passou em seu lar, manteve-se fiel a uma pessoa só.
— E ele não sabia que estava doente.
— Quando soube, tentou evitar desastres maiores. Arlete até hoje se mantém atenta, anunciando discretamente os nomes dos que faltam ser avisados em vários jornais.
— É uma verdadeira epidemia. E eu poderia ter sido vitimada pelo vírus.
— É a necessidade de se prevenir. Vocês, com certeza, utilizavam preservativo.
— Sempre. Eu sonhava com o dia em que ele viria com a notícia de que estava divorciado. Aí pensava num casamento com festa, convidados, bolo de noiva, vestido branco e cerimônia na paróquia do bairro. Eu achava que a bênção do Padre Tibúrcio iria selar em definitivo a minha felicidade e que iria receber o perdão pela condição de concubinato. Só depois é que vinham os filhos.
— Você acha que tais coisas significam tudo? Pois Laura teve isso tudo, inclusive a bênção nupcial pelo próprio Tibúrcio. Mas viu ceifada sua vida ainda muito nova. A infelicidade se veste com as roupas da ocasião.
Gostou de sua última frase. Repetiu-a para si mesmo, a ver se o efeito sobre sua psique se realizava de fora para dentro, porque suspeitou, no mesmo instante, de que ela lhe fora soprada mediunicamente.
Verônica tremia com as idéias que lhe perpassavam pela mente, em catadupas de emoções. Hesitava em revelar seu pensamento mais profundo, mas a frase de Adolfo a encorajou. E ela arriscou repetir em voz alta o que lhe ia pelo íntimo:
— Este mundo é imperfeito, porque a gente cria ilusões, para depois se ver nas garras das desgraças. Veja o sofrimento do povo: não bastava a pobreza generalizada, as graves dificuldades para se conseguir ao menos uma habitação onde se possa dormir, e já cai do céu uma tempestade sem fim, a levar tanta gente ao desespero pela morte dos parentes, filhos, irmãos, cônjuges, pais e mães, principalmente entre os mais miseráveis. Quando minha mãe me disse que existem provações obrigatórias, que a expiação dos erros do passado é inexorável, eu bem que tentei afirmar o contrário, que, se o povo utilizasse sua inteligência com honestidade e discernimento do bem que haveria para a sociedade em geral, se todos trabalhassem em prol dos semelhantes, por mais que houvesse intempéries, sempre conseguiríamos evitar as grandes calamidades. Mas Dona Edna foi dura, foi implacável: ela simplesmente me lembrou as catástrofes naturais, terremotos, maremotos, tufões e furacões, não esquecendo sequer de recordar que, pela queda de um cometa ou de um grande meteoro, quase desapareceu toda a vida na face do planeta. Santo Deus, que migalhinha insignificante representamos no cosmo!
Adolfo pensou em dizer muitas coisas, mas preferiu calar-se. Apenas manteve a companheira abraçada, acariciando-lhe os cabelos. Nessa tristeza permaneceram ambos quietos por mais de meia hora, sem que nenhum dos dois se dispusesse a levar avante a análise da vida terrena, que as mágoas se misturavam na lembrança dos sonhos desfeitos.
Mas a natureza opera suas transformações nos organismos e Verônica precisou abalar para o banheiro, levando a bolsa. Estava na época de menstruar, por isso trazia consigo alguns absorventes higiênicos, os quais lhe foram de muita utilidade naquela circunstância.
Não demorou mais que sete a oito minutos para retornar, mas encontrou Adolfo adormecido. Fora, enfim, minado pelas terríveis pressões emocionais do dia.
A moça foi à sala e ligou para o pai, que viesse buscá-la. Enquanto aguardava, escreveu um bilhete ao amigo, dando-lhe a informação do distúrbio fisiológico, pedindo perdão por toda a sua incompreensão e agradecendo-lhe o empenho com que se entregou para o desvendamento da verdade. Escreveu com sua facilidade de tradutora, de modo que não faltaram sequer algumas imagens literárias, aliviando o passado pela esperança que renasce a cada novo alvorecer. Recordou-se da célebre frase do filme O vento levou e assinalou-a em inglês, como a configurar que se encerravam os tempos românticos e que se iniciaria a época da supremacia dos valores da realidade. Não deixou que uma derradeira lágrima caísse sobre a folha, dobrou-a e colocou-a sobre o teclado do computador. Em seguida, desceu ao térreo, onde ficou na expectativa da chegada do pai.
Duas horas depois, Adolfo, cheio de sono, abriu os olhos, deu com a cartinha, que não leu, e foi acomodar-se no leito, sem se preocupar em absoluto com o que pensaria a moça a respeito de haver dormido.



18. ATOS REFLEXOS

Amanheceu Adolfo lutando contra múltiplas impressões de desgraças que o assustaram em forma de pesadelos. Mas acordou bem disposto, antes que o sol nascesse, de forma que, do alto do vigésimo segundo andar de seu apartamento, pôde observar as nuanças de cores no horizonte, até que o céu se encheu de luz, prometendo um dia glorioso.
Na verdade, o que pensava o jovem senhor era que a população enfrentava carências terríveis, talvez até de esperança, que o simples fenômeno atmosférico de todo dia acabou ficando como uma necessidade, já que representava apenas a confirmação de que as coisas se dispõem naturalmente, apesar de repercutir de forma tão variada na vida de cada um.
De qualquer jeito, extasiou-se com a magnificência da paisagem atmosférica, estabelecendo um contraste de efeitos em relação ao casario em que se apinhava o povo miserável a seus pés, eis que a vista dos casebres e cortiços predominava no vale, ao fundo do qual jaziam as negras águas do rio, águas que uns dias atrás haviam invadido as várzeas e causado mortes e danos consideráveis.
Adolfo não esperou que o sol despontasse e foi ler o bilhete de Verônica. Ao dar com a frase de que o dia seguinte seria um novo dia, em inglês, suspeitou de que ele mesmo estava precisando acreditar em que, como o mobiliário do apartamento, seu coração tinha de substituir as afeições antigas por outras novas.
Imaginou que Francisco logo se apresentaria com o empreiteiro que contratara para consertar ou substituir pisos, paredes, fiação elétrica, sistema hidráulico, e se pôs em dia com a higiene do corpo, após o que pôde realizar uma pequena refeição, a que fez questão de chamar de breakfast, lembrando-se do texto de Verônica.
Era cedo o suficiente para dedicar-se a verificar o que se continha no CD-ROM que lhe fornecera Arlete.
Avaliou toda a extensão da pesquisa, configurando os tópicos que precisariam passar por um tratamento estatístico, para o que dividiu o tema segundo os interesses prioritários das anotações da professora, elegendo três fatores primordiais para a descrição do perfil do público-alvo espírita: econômico, cultural e religioso.
No entanto, apresentaram-se tantas dificuldades para a elaboração do roteiro ideal, segundo o ponto de vista da pesquisadora, que Adolfo se limitou a caracterizar as principais inovações que teria de impor ao programa que tinha em mãos. Por isso, resolveu nada fazer que pudesse representar apenas uma perda de tempo, preferindo esperar a reunião marcada no campus da universidade para sugerir como a informática poderia ser empregada em favor daquela tese.
Enquanto isso, deu andamento a um de seus trabalhos, imergindo nele sua atenção, a tal ponto que levou um susto quando soou o telefone interno no corredorzinho.
Era o irmão:
— São oito horas. Podemos subir?
— Claro que sim.
Três minutos depois, entravam o irmão e mais duas pessoas estranhas que lhe foram apresentadas, um como engenheiro civil, outro como arquiteto. Imediatamente, Francisco facultou que os dois profissionais ficassem à vontade para levantamento das necessidades do imóvel, enquanto, baixando a voz, perguntou ao irmão:
— Verônica não passou a noite com você?
— Eu nem sei a hora em que ela saiu, porque dormi.
Francisco entendeu a observação de forma equivocada e, malicioso, perguntou:
— Vocês marcaram o dia do casório?
Adolfo atinou com sua mancada mas não se perturbou, respondendo no mesmo diapasão:
— Para que casar se está tão bom assim?!...
— Mais respeito, maninho. Vocês, pelo menos, marcaram uma data para o noivado?
— Esses são resquícios de uma sociedade católica. Se você está querendo aprender espiritismo, tem de agir conforme a doutrina, que, segundo sei, não administra sacramentos...
— Mas não proíbe as cerimônias civis, pois não?...
Vendo que a conversa fiada iria longe demais, Adolfo cortou-a:
— Definitivamente, leia o bilhete que ela deixou e se convença de que não aconteceu nada do que você está imaginando.
De fato, estava explícita a ocorrência do mênstruo, de modo que Francisco precisou divagar um pouco:
— Eu anotei todas as opiniões que ela deu. Devo levá-las em conta na reforma?
— E lá eu tenho voz ativa na empreitada? Aliás, também não quero ter. Faça como você achar melhor.
— Do jeito que você está situando as coisas, a única conclusão possível é que sua opinião vale menos que a dela.
— Você tira as conclusões e eu vou fechar-me no meu escritório porque eu tenho de continuar o que estava fazendo.
— Maninho, não estranhe que, daqui a pouco, vamos começar a fazer barulho. Deixe-me explicar-lhe: a firma que contratei trabalha por meio de comunicação a distância, solicitando todo material necessário, o qual já chega preparado, evitando criar um canteiro de obras no local, principalmente quando se trata de não perturbar os moradores de um edifício ou condomínio. Foi o que eles me disseram. Vai chegar tudo em sacos plásticos e logo eles vão encher de pedreiros, vidraceiros, encanadores, eletricistas e peões cada cômodo da casa. E é bom você fechar bem a porta e até calafetá-la, porque vai subir uma grande poeira...
Estava ouvindo as explicações o engenheiro, que interveio:
— Nenhuma poeira, meu senhor, se me permite, pois trabalhamos com aspiradores, caso o umedecimento não seja suficiente para deter as partículas que iriam afetar o conjunto dos serviços.
— É isso aí.
Mal Adolfo se fechou no escritório, foi chamado pelo telefone celular:
— Pronto!
— Adolfo? Aqui é Dario.
— Como está?
— Desculpe ligar de novo, mas eu precisava agradecer pessoalmente.
— Agradeça a meu tio e a meu irmão, pois foram eles que tomaram todas as providências. Na verdade, eu só soube de tudo quando tomei conhecimento de seu recado.
— De qualquer forma, muito obrigado. Só sinto que Miguelita não esteja mais comigo.
— Deve estar aguardando por seu regresso à pátria espiritual. Mas nem por isso não vá se apressar...
— Eu sinto a falta dela, mas só vou conformar-me mesmo quando os assassinos forem pegos. Aliás, estou indo à delegacia para reconhecer os bandidos pelas fotos e para fazer o retrato falado. Eu acho que logo você também vai ser chamado. Se não quiser ir, peço a meus filhos para dispensá-lo.
— Ao contrário, eu tenho até um programa que efetua esta espécie de montagem de elementos. Se você puder trazer o encarregado do retrato falado aqui em casa, acho que vou poder ajudar muito mais. Mas é preciso que você venha junto.
— Vou ver o que vai ser possível fazer. Eu ligo para avisar o que ficar decidido.
— Até logo, então.
— Até.
Com o telefone na mão, veio-lhe a idéia de ligar para Verônica. O quanto antes pedisse para desculpá-lo por dormir, melhor. Como já decorara o número do telefone dela, digitou os números imediatamente.
— Alô!
— Verônica? Adolfo.
— Edna. Espere um pouco que eu vou chamá-la. É bom que você saiba que ela está muito diferente hoje.
— Não é para menos depois de tudo o que ficou sabendo do namorado.
— Ao contrário. Ela está felicíssima. Está achando que sempre foi amada e que não tem nada para reclamar de ninguém. Mas o que mais a entusiasmou foi o seu empenho em esclarecer tudo. E, cá entre nós, o fato de você ter dormido enquanto ela estava fora, ela considerou o máximo de respeito e de consideração, porque você a tratou de modo absolutamente natural, como se já convivessem há muito tempo. Mas não diga nada a ela do que eu contei.
— Pode deixar.
Adolfo esperou um minutinho e logo ouviu a voz de Verônica:
— Como vai o meu amigo Soneca?
— Eu estou bem. E você?
— Se minha mãe não bateu com a língua nos dentes...
— Bateu...
— Então você já sabe de tudo.
Os temas foram desenvolvendo-se em torno dos deveres profissionais que cada um havia reiniciado naquela manhã. Verônica retomara a tradução de uma obra que já estava atrasada, atraso que atribuiu aos dias em que passou com os pais no ginásio de esportes. Adolfo citou de passagem que não avançara no trabalho para Arlete, terminando por convidá-la a ir com ele à Universidade, onde iria encontrar a doutora.
— Você acha conveniente?
— Eu acho imprescindível, mesmo porque é preciso que vocês se entendam e se reconciliem com vistas ao futuro.
— Eu não acho que ela me deva nada. Eu não tenho nada para perdoar como ela não tem nada contra mim.
— Então vá para me fazer companhia.
— Ela não vai gostar disso.
— Paciência.
— A que horas você vai passar?
— Pode ser às duas e meia?
— Combinado.
Foi desligar para ouvir o tilintar de uma nova ligação.
— Pronto!
— Dario, de novo. Podemos ir agora?
— Isto aqui está uma bagunça com a reforma, mas a gente vai ficar sossegado no escritório.
— Estamos saindo.
Cinco minutos depois, começaram a se fazer ouvir as batidas nas paredes. Os operários abriam as canaletas por onde passariam os conduítes da nova fiação elétrica. Nada, no entanto, que pudesse desconcentrar Adolfo.
Vinte minutos depois, apareceu Francisco com a recomendação de que salvasse o serviço porque iriam desligar os disjuntores do quadro de força do apartamento. Seria por pouco tempo.
Adolfo aproveitou para ir à cozinha tomar um cafezinho preto, café solúvel cuja água deu tempo para aquecer no forno elétrico. O irmão acompanhou-o, momento em que tomou conhecimento da vinda de Dario e do filho policial.
— Quer dizer que vocês vão montar o retrato falado dos assassinos?
— É esse o objetivo.
— Na qualidade de espírita, você acha que esse serviço de delação se enquadra na doutrina?
A pergunta surpreendeu Adolfo, que não teve nada a oferecer em resposta. Foi forçado a uma observação genérica:
— O ideal seria que não houvesse assassinos nem vítimas. Você não acha que uma pessoa que estava sendo recebida em casa por um coração generoso e que procedeu com tanta violência será bem capaz de realizar outros despautérios do mesmo tipo?
— Prender os assassinos servirá para proteger a sociedade. Certo?
— Também. Se o sistema penitenciário fosse eficaz, serviria para reeducá-los.
— Em sua pesquisa sobre os espíritas...
— Minha, vírgula.; da Doutora Arlete.
— Que seja. A pesquisa vai procurar saber quantos espíritas prestam serviços humanitários junto às prisões?
— Seria muito importante esse dado em função...
Precisaram interromper porque o interfone avisava que Dario pedia permissão para subir.
Os irmãos foram esperar à porta de serviço da lavanderia, já que os operários ocupavam a sala da frente. Não demorou e chegaram Dario e dois de seus filhos, mais um quarto indivíduo que não conheciam e que foi apresentado como o técnico encarregado dos desenhos sugeridos pelas testemunhas.
Logo se dirigiram ao escritório, ficando Francisco conversando com o engenheiro, porque a energia elétrica permanecia cortada.
Acomodaram-se em torno da mesa do computador, enquanto eram repassados os retratos dos seis suspeitos delineados manualmente. Com os desenhos nas mãos, Adolfo, depois de confirmar certas semelhanças, perguntou a Dario e aos filhos:
— Vocês todos são espíritas?
Dario respondeu:
— Mais ou menos. Eu estava indo ao centro para aprender a conhecer as pessoas, uma vez que minha mulher me havia dito para ter cuidado com quem eu colocava para dentro de casa. Foi de lá que eu trouxe os assassinos.
— Nunca leram nada a respeito da doutrina?
— Na verdade, todos nós lemos uns livros, porque as minhas noras, todas as três, sempre freqüentaram os trabalhos, inclusive na parte mediúnica, incorporando os espíritos.
Adolfo insistiu:
— Eu estou perguntando isso porque meu irmão me fez ver que estamos executando um procedimento de acusação de criminosos, ou seja, não estamos totalmente deixando a justiça nas mãos de Deus. Que vocês pensam disso?
Dario falou pelos outros:
— É estranho perguntar a policiais se o que eles fazem está de acordo com a lei de Deus. Deus, por certo, mantém, se assim posso dizer, o equilíbrio da criação, através dos espíritos superiores, os quais exercem vigilância para que a obra divina não pereça. No entanto, aqui na Terra, os homens são muito imperfeitos e deixar que a imperfeição prevaleça sobre os sentimentos feridos das pessoas vitimadas pelos desequilibrados, pelos assassinos, pelos que ferem o princípio do direito que preserva os limites dos indivíduos, é impedir que o bem assuma o lugar do mal, o que significa voltar atrás no caminho da evolução, já que os espíritas acreditam no contínuo progresso, como lei cósmica, para se deixar para trás este mundo de provações e expiações. Você me perdoe o discurso mal alinhavado, mas quase tudo isso eu ouvi numa exposição do nosso Reinaldo.
Naquele momento, Francisco e o engenheiro vieram informar que os aparelhos já podiam ser ligados.
Enquanto Adolfo se preparava para copiar os desenhos, os recém-chegados examinavam cada um deles.
Foi o engenheiro quem pediu a Adolfo que começasse por um dos homens ali representados:
— Este daqui está parecido com alguém que eu conheço. É possível mudar a fisionomia, acrescentando uma barba rala e cortando rente o cabelo?
Não demorou e a figura que apareceu na tela se apresentava tal qual havia sido sugerido.
— É ele mesmo.
Um dos filhos perguntou a Dario:
— Pai, o que o senhor acha?
— Eu não conheci o sujeito assim. Para mim, está bem diferente.
Adolfo interveio:
— Vou pôr o retrato anterior ao lado do atual. Vejamos as diferenças.
Assim foi feito e o próprio Adolfo sugeriu algumas alterações:
— Vou colocar um nariz um pouco mais afilado e as maçãs do rosto mais salientes, contrastando com as bochechas mais profundas. Também vou aumentar o osso da testa, que é como estou me lembrando do sujeito.
Imediatamente surtiram das transformações dois retratos que foram reconhecidos pelo engenheiro e por Dario, que exclamava:
— É como se eu tivesse tirado uma fotografia dele lá em casa.
O filho-detetive se manifestou bastante excitado pela confirmação do reconhecimento:
— O senhor poderia dizer-nos de onde conhece o elemento?
— É um dos peões da firma. Ele está ajudando a transportar o material justamente para cá.
O filho-sargento perguntou a Adolfo:
— É possível fazer uma cópia dos retratos?
— Quantas queiram.
Enquanto providenciava o impresso, em voz baixa, os irmãos policiais combinaram sua ação para prender o suspeito.
Com as armas nas mãos disfarçadas na roupa e pedindo para que os outros ficassem fechados no escritório, os dois apanharam os retratos e saíram da sala. Os demais ficaram sobressaltados, com medo de que houvesse uma reação e que algum inocente pudesse sair ferido.
Foram dois minutos de expectativa.
De repente, um dos policiais entrou, chamando o pai:
— O senhor pode nos dizer se pegamos o cara certo?
De fato, aquele homem algemado era um dos suspeitos.



19. TERRA DE NINGUÉM

Os acontecimentos precipitavam-se.
Agora era Adolfo quem se via envolvido, malgrado sua vontade, numa algazarra moral que o arrastava para considerações que jamais suspeitara sequer que deveria enfrentar.
Assim que o homem foi levado preso, viu-se sozinho no apartamento, porque ninguém mais se interessou pela confecção dos demais retratos falados, considerando que não seria difícil de obter daquele que estava nas garras da polícia as informações sobre os demais. E lá se foram o pai e os filhos, mais o técnico e o detido. O responsável pela reforma explicou rapidamente o sucedido aos operários e lhes abriu o horário do almoço, já que houve um rebuliço natural para saber o que fizera o colega para ser preso em pleno trabalho. Evitava-se, assim, que o interesse pelo assunto prejudicasse o andamento da obra. Francisco, que não queria perder de vista as transformações do imóvel, convidou o irmão para irem almoçar juntos em sua residência e, à vista do declínio do convite, também se retirou, prometendo voltar no mesmo horário dos trabalhadores.
Eis como pensava Adolfo:
“Gostaria de acompanhar os filhos de Dario para ver se não vão dar uma única pancada no assassino de sua mãe, apesar de ele insistir que não fizera nada, pedindo que acreditassem que o único erro seu fora estar no lugar errado, na hora errada, jurando que fora obrigado a ir atrás do caminhão para o transporte dos objetos roubados, que não tinha ficado com nada, que não recebera nenhum dinheiro mas muitas ameaças, que era um trabalhador, tanto que arrumara aquela colocação na firma no dia seguinte ao do homicídio, pedindo perdão a Dario e chorando copiosamente.”
As idéias e as lembranças se entrelaçavam, principalmente pela sugestão de que o suspeito seria posto sob tortura, muito embora não houvesse sofrido nenhuma agressão da parte de ninguém.
Em todo caso, dançavam-lhe na mente as perguntas que lhe lançara Dario, apontando para o preso:
— Eis aqui alguém de carne e osso que praticou um horrendo crime. Você o reconheceu. Seria o caso de soltá-lo, como se nada tivesse feito? Vamos deixar que a consciência dele o acuse a ponto de fazer com que se arrependa do que fez? Ou vamos dar-lhe a oportunidade de perceber que não devia ter ofendido tanta gente inocente, pondo-o atrás das grades?
Adolfo não queria refletir sobre tal ponto, mas foi incapaz de desviar a atenção para o programa que vinha organizando desde cedo. Tentou imaginar como reagiria na condição de filho que tivesse a mãe morta daquela maneira e não foi sem se arrepiar que se via aplicando socos e pontapés no sujeito dominado.
“Até que os filhos de Dario se portaram com dignidade superior, se a gente pensar que estavam pessoalmente envolvidos, principalmente se levarmos em conta o fato que tinham todo o interesse em pegar os culpados.”
Mas a imaginação o levava para dentro da delegacia, para uma sala resguardada dos olhos do povo, onde amarravam o coitado dependurado num cavalo-de-pau e lhe ministravam choques elétricos, para que apontasse os companheiros de malvadeza.
“O que não se deve passar nesses subterrâneos do poder das milícias...”
Não estava à vontade com o rumo dos pensamentos, percebendo que os sentimentos de revolta pintavam os quadros com as cores vivas e sanguinárias de quem se sente impotente para impedir os crimes, mas que não abre mão do direito, do dever e do prazer da desforra.
Era algo com que não contava, tendo em vista que sempre pautara os procedimentos dentro da legalidade, da honradez, da boa vontade pública e particular, não se sentindo agredido jamais pelos vetores do destino que o levaram a perder a esposa e o irmão.
A presença física do homem em sua casa como que desencadeou seus instintos primitivos, deixando-o perplexo com seu comportamento psíquico e admirado pelo fato de não poder reprimir o ritmo dos pensamentos e emoções.
Foi quando soou o telefone da sala, chamando-o à realidade de seu isolamento.
O mostrador do aparelho registrava o número de Eduardo:
— Alô! É Adolfo, tio Eduardo. O senhor está telefonando em boa hora.
Na verdade, o tio desejava conversar com Francisco, mas prestou muita atenção em toda a história que o sobrinho lhe contou, prometendo ir ao apartamento logo depois do almoço, mais ou menos na hora em que todos estariam retornando.
De novo sozinho, Adolfo acrescentava a figura do tio delegado ao conjunto dos que conduziram o preso, asseverando para si mesmo que os métodos de persuasão para a localização dos demais elementos seriam menos violentos, pois havia recursos psicológicos capazes de induzir à denúncia, entre os quais fazia preponderar o da promessa de que seriam menos duros em relação às acusações de furto e de homicídio.
Percebendo que começava a se esfalfar correndo ao derredor de um tema cediço e sem perspectiva de solução, imaginou Adolfo como faria Reinaldo se estivesse em semelhante conjuntura.
Logo lhe veio à idéia a necessidade de requerer aos amigos da espiritualidade uma orientação, para o que seria necessário limpar a mente através de uma prece. Meio atrapalhado com a situação, já que era bastante positivo em suas divagações, Adolfo entendeu que, além de um rápido pai-nosso, haveria de se concentrar para receber as notícias da outra esfera, caso quisesse verdadeiramente receber um roteiro espiritual para evitar o desconforto das terríveis repercussões que a prisão efetuada dentro de seu lar estava a provocar-lhe.
Muniu-se de um caderno de anotações e de um lápis, predispondo-se a escrever alguma mensagem que lhe quisessem passar os seus guias.
Após pedir muito apreensivo pela ajuda das entidades do etéreo, considerou que a prece que orou em seguida lhe proporcionou uma tranqüilidade muito grande, criando a expectativa de um contato real com criaturas de outro plano bem mais séria e importante do que a impregnação mental a que estava submetendo-se por força dos pensamentos e dos sentimentos adversos de há pouco.
Realizou uma pergunta mas não a escreveu:
“Que devo fazer para superar as más impressões?”
Pensou que escreveria em seguida, mas ia eliminando as possíveis respostas como elaboradas por si mesmo, já que apenas se referiam a hipóteses que rapidamente havia levantado antes. Então, bem no íntimo, quase sem perceber, executou outra pergunta, escrevendo-a automaticamente:
“Como ter certeza de que não sou eu mesmo que estou inventando as respostas?”
Desta feita, o impulso do braço levou-o a continuar escrevendo, sem solução de continuidade e sem ter tempo de refletir sobre as palavras e as frases:
“Você nunca vai ter nenhuma certeza de que não foi você mesmo quem elaborou as respostas que for escrevendo. Mesmo que você o faça com a rapidez dos pensamentos e o resultado seja notavelmente coerente, como que forjado num estilo diferente do seu, ainda assim lhe restará sempre a desconfiança de que, no substrato da consciência, tudo se passa sem que você possa exercer domínio sobre as próprias reações. Você estava preocupado com o fato de sua imaginação fugir-lhe ao controle, mas de tudo deu conta e responsabilidade à própria mente envolvida pelos acontecimentos. Esse mesmo atributo será considerado natural no caso das respostas que for obtendo e que for escrevendo ou falando durante uma reunião mediúnica. Ainda que lhe passemos uma terminologia estranha, fora de seu léxico e dos parâmetros de sua linguagem coloquial ou culta, mesmo assim existe a possibilidade de tudo ser referido aos arquivos da memória, quer pela audição ou leitura uma única vez dos vocábulos em pauta, quer pela criatividade de que é capaz o cérebro, a partir do universo dos recursos disponíveis como subsídios de toda a vida.”
O longo parágrafo extenuou o admirado programador. O punho, desacostumado a escrever, ressentiu-se do esforço, o que o levou a uma nova questão:
“Em lugar de manuscrever, posso datilografar? Eu acho que é bem mais cômodo, veloz e preciso, o trabalho junto ao computador.”
Desta feita, não obteve uma resposta escrita, mas um impulso irresistível de se aproximar do aparelho, que se mantinha ligado, onde abriu um arquivo em que pudesse escrever. Imediatamente, os seus dedos se agilizaram sobre o teclado e ele datilografou rapidamente, corrigindo no ato os defeitos de ortografia que o programa ia assinalando:
“Tudo quanto você escrever manualmente poderá fazê-lo mecânica ou eletronicamente. O importante é que se dedique a este tipo de realização com método e horário, sempre sob um véu de pureza espiritual que se adquire através do puro e simples desejo de prestar um serviço, já que a mediunidade significa tão-somente que a pessoa se põe como intermediador entre os humanos e os desencarnados. Quer dizer isto que este tipo de instrução de hoje dada diretamente ao médium não é a mais importante? Haverá de ter sua importância bastante diminuída se o interessado dedicar-se ao estudo das obras da doutrina espírita, principalmente as de Allan Kardec. Quer dizer que os assuntos pessoais do médium quedarão sem resposta? Para que escrever, se é perfeitamente possível a orientação com base na intuição ou na percepção extra-sensorial alijadas dos preconceitos e dos defeitos mais grosseiros do caráter, como o orgulho, a vaidade etc.?! Então, o que significa esta escrituração? Poderia ser evitada? Estamos efetuando um treinamento e sugerimos que ele se estenda por um bom tempo, até que você adquira segurança no trabalho que começa a executar. Por exemplo, vamos encerrar a nossa contribuição de hoje, suficientemente extensa e positiva para levá-lo a decifrar o que lhe está ocorrendo neste campo novo. O tempo é mestre da experiência e esta é a mãe da sabedoria.”
Adolfo estava extasiado. Perguntava intimamente o que deveria fazer e logo lhe veio a idéia de que deveria agradecer, sem insistir em novas perquirições, orando para que lhe fornecessem inspiração para marcar o horário e a programação de seus exercícios e estudos.
Buscando a primeira virtude a desenvolver, elegeu a humildade como condição essencial do bom médium, recordando-se da figura ímpar de Francisco Cândido Xavier, que vira sendo entrevistado na televisão. Depois de repetir a prece do início, copiou a resposta que manuscrevera, juntando à pergunta correspondente, e reproduziu a pergunta e a resposta que obteve intuitivamente, completando a sua primeira recepção psicográfica. Em seguida, realizou um backup num disquete e imprimiu o texto todo, iniciando sua pasta de conteúdo espírita.
Ao fechar o arquivo e guardar o classificador em que prendera a folha impressa, notou que toda a preocupação anterior havia desaparecido. Estava como que flutuando nas nuvens, um tanto incomodado pela completa absorção de sua mente pelas informações que transcrevera.
Formulou um estranho pensamento, já temendo que provocaria um novo desencadear de intuições ou de impressões subjetivas:
“Os médiuns não ficam totalmente alienados da realidade material?”
Desta feita, porém, a resposta que conseguiu veio depois de muito refletir a respeito, chegando à conclusão de que bem pouco conhecia o espiritismo prático, não só para elaborar uma tese condizente com a realidade, como ainda para entender qualquer manifestação que recebesse do etéreo.
Suas reflexões se voltaram para o teor da mensagem recebida, percebendo que se tratava de uma resposta pura e simples a uma pergunta bem mais genérica que as que realizara: como deixar de ser espírita, quando se está no centro de uma turbulência material e moral, sem perspectiva alguma de solucionar os problemas que afetam à sociedade, aos amigos e aos familiares?
Viu-se na situação de um ser privilegiado a quem o contato com as entidades espirituais dera a tranqüilidade absoluta daquele que adquire a certeza de que a solução requerida existe e será alcançada paulatinamente, à medida que cada um for adquirindo a convicção de que precisa desprender-se das preocupações pessoais para assumir a defesa do bem comum da humanidade.
Pensou em contar tudo o que lhe ocorrera a Verônica, ao irmão, ao tio, a Reinaldo, a Arlete, ao grupo de estudos. Afastou imediatamente a idéia da cabeça, com o seguinte raciocínio:
“Quem elabora um programa, deve testá-lo aplicando-o a situações concretas. É sempre preferível realizar algo a ficar divulgando que é capaz de fazê-lo sem comprovação. O próprio texto tem de se configurar útil para quem lê. Se eu simplesmente contar o que me aconteceu, seria como subir num pedestal, pondo-me em destaque, enquanto os outros vão permanecer ao rés do chão. Se os meus amigos espíritos me pedem para estudar, querem que me aperfeiçoe na teoria, porque a melhora da prática advirá naturalmente com o trabalho. Como é mesmo que eles concluíram? O tempo é mestre da experiência e esta é mãe da sabedoria. Então, eles claramente me ensinaram que eu preciso dar tempo ao tempo, trabalhando em silêncio, até que me veja experiente. Se não for assim, falece-me a sabedoria.”
Avaliou a seguir que precisava dar melhor contextura às idéias, reproduzindo os próprios desenvolvimentos da tese, concluindo sempre pela necessidade de manter o seu nascente poder mediúnico sob resguardo, já que as pessoas sempre teriam algo a lhe dizer no sentido de se precaver quanto à possibilidade de estar sob obsessão.
Estava com a pasta ao alcance da mão. Apanhou-a e releu a curta manifestação, no sentido de descobrir algo que pudesse indicar que aquelas entidades estavam com a intenção de subjugá-lo. Achou que sim, que havia tal possibilidade, no entanto, também percebeu que, caso se oferecesse para trabalhar para os da espiritualidade, em se assegurando de que não fosse tentado a orgulhar-se, não havia o perigo de inflar seu egoísmo, já que a primeira reação sua fora estipular que o principal era dedicar-se a minorar os sofrimentos alheios.
De novo suspeitou de que sua maneira de pensar estava sendo excessivamente pueril e de que a recomendação das leituras das obras especializadas se tornava essencial para a ampliação de seus horizontes doutrinários.
Olhou as horas e calculou que logo as pessoas estariam chegando. Daria tempo para ir almoçar e voltar em pleno bulício dos operários. Foi o que fez. Fechou as portas do escritório e de seu quarto, trancou a lavanderia por dentro e saiu pela porta da sala, passando-lhe a chave. Aí sorriu porque atinou com o fato de que estava fazendo o mesmo com o seu segredo mediúnico.
Caminhava pela rua, quando recebeu uma chamada pelo celular.
— Alô!
Era o amigo que havia cedido o programa para a pesquisa de Arlete. Queria saber se daria certo a adaptação.
— Eu acho que poderemos aproveitar muita coisa, mas ainda necessito caracterizar melhor os ajustes a serem realizados.
Quando chegou ao restaurante, sua atenção estava totalmente voltada para a fórmula a ser aplicada para facilitar o levantamento dos dados que promoveriam o quadro geral do movimento espírita, concentrando-se num aspecto novo, o de quantos médiuns estariam trabalhando nos centros e quantos destes exerceriam a mesma atividade em casa.


20. UM ENCONTRO DE ALMAS

Adolfo decidiu, enquanto meditava, que deveria pôr Arlete a par de sua decisão de levar Verônica ao encontro. Ligou para ela e tiveram uma longa conversa, sem que ela pusesse qualquer obstáculo a receber a visita da moça. Falaram da prisão do criminoso e das novas atribuições da professora.
De volta ao apartamento, encontrou o serviço bem adiantado, que o pessoal havia regressado uma hora antes por causa da saída antecipada.
Eduardo lá estava pondo os temas em dia com Francisco, de sorte que Adolfo se viu livre de dar quaisquer explicações. Apenas opinou que as luminárias da sala deveriam ser substituídas por fontes de luz indireta, no que todos concordaram, tanto que estavam sendo providenciados os focos em torno de toda a parede.
Francisco esclareceu que a remodelação da sala tinha sido orientada por Reinaldo, de forma que a sugestão de Adolfo simplesmente havia coincidido com o que haviam deliberado realizar.
Vendo que a reforma estava em boas mãos, Adolfo se fechou no escritório para fazer uma cópia a mais do CD-ROM de Arlete, muitíssimo preocupado em elaborar um trabalho que pudesse ser valioso como fonte de consulta para os estudiosos espíritas.
Antes de sair, ligou para Verônica avisando-a de que dentro de alguns minutos estaria chegando para apanhá-la, não se esquecendo de preveni-la quanto ao fato de Arlete estar esperando-a.
Pensou em pedir-lhe que levasse algum presente para a outra, mas acabou julgando que essa deliberação caberia a ela. Foi quando percebeu que ele mesmo deveria levar uma lembrancinha qualquer a Verônica, uma vez que ele iria demonstrar uma dedicação pouco comum quanto ao trabalho que estava providenciando para Arlete.
Procurou entre as coisas guardadas em seu quarto e encontrou os pertences de Laura, no meio dos quais estava um lindo colar, fina bijuteria, seu primeiro mimo à esposa ainda quando estavam tão-somente flertando.
Seu primeiro impulso foi escolher uma das jóias, mas atinou, bem a tempo, que não seria de bom-tom agraciar outra pessoa com um adereço da falecida.
Ao sair, estava decidido a parar no caminho para comprar um presente para Verônica. Já havia descido ao térreo quando se lembrou de que possuía um dicionário eletrônico que bem poderia servir à tradutora. Voltou para efetuar uma cópia. Enquanto o seu computador atendia ao comando, veio-lhe claramente ao pensamento o sistema fraudulento que estava aplicando. Raciocinou:
“Isto é pirataria. Como será que os espíritas vêem este procedimento que fere a lei dos homens? Estarei implicando-me em algum artigo da lei de Deus?”
Não resolveu o impasse da consciência. Na dúvida, receou que poderia merecer uma reprimenda dos guias espirituais. Abandonou o projeto de dar a cópia e acondicionou o original na caixa que mantivera guardada com as instruções de uso e demais formulários. Daria o material que havia adquirido, imaginando que, mais tarde, refletiria a respeito de comprar de novo o equipamento ou de utilizar a cópia que fizera, já que raramente precisava dela para o seu trabalho.
Ainda se lembrou de Jesus dizendo aos fariseus que o tentavam: “Dêem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Mas isso não o confortou. Ao contrário, achou que os preceitos espíritas de honestidade e fraternidade, uma vez que precisava respeitar o dos direitos alheios, iriam tornar-se uma peneira cada vez mais fina, por onde, a partir de certo momento, somente iria passar a verdade.
Assim que entrou no carro e acionou o mecanismo para abrir o portão eletrônico, apenas as figuras de Verônica e de Arlete se apresentaram à sua imaginação.
Estando àquela hora o trânsito favorável, não levou mais de dez minutos para chegar.
No portão, Verônica aguardava por ele:
— Que bom que você veio mais cedo. O seu trabalho para a Arlete me lembrou de lhe mostrar o equipamento em que trabalho. Os meus técnicos juram que é de última geração, mas um especialista como você vai poder dar um parecer mais categorizado.
— Verônica, eu me lembrei de que você traduz e lhe trouxe um dicionário eletrônico.
Ao ver o produto, a moça informou:
— Eu agradeço o presente, mas esse dicionário eu já tenho. As editoras para as quais trabalho me fornecem tudo quanto preciso. Venha ver.
Enquanto falavam, foram entrando, passando pela sala e indo até o quarto de Verônica. Era um amplo dormitório, com uma cama de casal encostada à parede, um guarda-roupa, uma cômoda, uma estante apinhada de livros, uma ampla escrivaninha de seis gavetas, sobre a qual se via o gabinete do computador, o monitor, a impressora, a copiadora de textos e demais petrechos. No ar, uma suave fragrância de lavanda.
Chamou a atenção do moço a extrema arrumação de tudo e um porta-retratos com a fotografia de Verônica, magrinha, quase irreconhecível, de mãos dadas com um rapaz alto, bem apessoado.
Vendo o interesse de Adolfo, a moça esclareceu:
— Esse é o Eurico. A foto é dos tempos em que estávamos namorando. Eu a conservei porque me estimula a continuar pensando que as pessoas podem ser felizes na vida e também para me lembrar de que um dia eu tinha uma condição física que condizia com o meu ânimo. Agora, esse corpinho aí está tornando-se o meu objetivo material.
Era evidente que a intenção dela era desviar a atenção de Adolfo da figura do rapaz. Vira a foto de Laura no quarto do moço quando fora ao banheiro. Era natural que ele visse a de Eurico. Mas, diante da possível comparação das aparências, em que, obviamente, Adolfo levava nítida desvantagem, Verônica se constrangeu.
— Você está vendo quantos dicionários eu tenho? Muitos são de edições esgotadas. Naturalmente, no meu arquivo, se encontram os dicionários e enciclopédias que me facilitam o trabalho.
Adolfo sentou-se à frente do computador e ligou-o, atento para as informações que rapidamente iam passando pela tela. Em três tempos, abriu o setor de configurações e mergulhou no esquema do equipamento.
— Você está muito bem servida. Não precisa nem de memória nem de velocidade. Quem é o técnico que lhe dá cobertura?
— Na verdade, são vários, os mesmos que dão assistência às editoras.
— Eu não tenho nada a sugerir.
— Será que estou aproveitando bem os recursos tão adiantados?
— Aí depende de como você está utilizando os programas de tradução instantânea. Como é que você produz o seu texto?
— Antes eu manuscrevia. Depois passei a datilografar ou digitar, como você preferir. Com o tempo, adquiri muita facilidade, de modo que o meu trabalho sai revisado e formatado para a editora, faltando apenas elaborar a diagramação.
Adolfo instintivamente recordou-se do que escrevera de manhã e anotou mentalmente que bem poderia fazer o mesmo, caso sua mediunidade lhe propiciasse textos que pudessem ser convertidos em livros. Mas algo passou a incomodá-lo: o estilo dos autores em função de seu acervo lingüístico. Com Verônica, que apenas traduzia, o problema se contornava naturalmente, mesmo porque ela deveria conhecer muito mais a fundo que ele a língua portuguesa.
Foi por um triz que não contou que recebera a mensagem de seus guias. Quando ia revelar o fato, chegaram Dona Edna e o França, a comentar o noticiário do jornal televisivo, que informava a prisão da quadrilha que matara a esposa de Dario.
A conversa foi dominada pelo relato de Adolfo a respeito do retrato falado e como o engenheiro reconheceu a pessoa em questão. Ao final, perguntou aos demais:
— Quem poderia dizer-me se não houve uma ajuda da espiritualidade, para que tudo levasse o infeliz a estar exatamente onde não devia para sua infelicidade... ou felicidade, afinal?
Edna se antecipou:
— Eu acho, com perdão do achismo, que não existem coincidências. Tudo ocorre na vida segundo um plano superior, inclusive quando se dá algo absolutamente por acaso. É que o acaso está nos planos da Providência, uma vez que todas as coisas concorrem para o mesmo fim, qual seja, o aperfeiçoamento incessante dos espíritos. Veja bem que não estou dizendo que os nossos guias é que dispõem para que as coisas nos aconteçam. Talvez eles até tentem fazê-lo, com a melhor das intenções. O que estou dizendo é que eles mesmos estão sob o efeito das mesmas leis que nós, um pouco mais aptos a empregar seu livre-arbítrio em função das leis cósmicas do progresso, do amor, da caridade e da justiça, principalmente. Em todo o caso, o que eu penso não é definitivamente o que se deve ter em conta como a expressão mais profunda da doutrina da verdade derivada do espiritismo. Estou presa a esta cadeira de rodas, mas foi este fato que me levou a considerar muitos aspectos da existência em que não teria sequer cogitado, caso andasse livre e solta por aí. O principal na vida, e acredito que depois dela também, é enquadrar tudo o que acontece segundo um plano geral mais amplo em que o nosso egoísmo, necessariamente, fique em segundo plano, de forma que nossos desejos e preocupações se voltem constantemente para a resolução dos problemas alheios, sejam individuais, sejam coletivos. Desde ontem venho pensando seriamente na disseminação da AIDS pelo meu infortunado genro. Sei que pessoas morreram por causa dele. Aí fico imaginando se essas mesmas pessoas não deveriam enfrentar esse tipo de problema, como a nossa população vem sofrendo com as enchentes, levando todo o povo a ter de se precaver quanto às epidemias que nos ameaçam. Em suma, para não aborrecê-los mais, o bandido foi preso, confessou o crime, denunciou os comparsas, apontou onde estavam e a polícia deteve a todos, conforme a entrevista do delegado. Agora é esperar que tudo se esclareça e que o sistema judicial puna, dentro do rigor da lei, cada criminoso, conforme sua participação no delito. Para nós, espíritas, a pena e o castigo de Deus, ou melhor, segundo as leis de Deus, é inexorável e alcançará a todos nós, na medida certa de nossas necessidades, a uma entrevando, a outra levando o namorado, a um terceiro enviuvando, a outro fazendo empurrar vida afora uma cadeira de rodas.
Foi França quem acrescentou:
— E pela mesma lei, Deus nos permite compreender o que se passa conosco e ao derredor de nós e nos concede a oportunidade de resgatarmos os nossos débitos, prosseguindo vivos ou levando-nos a errar em outra esfera, com certeza dentro de princípios existenciais coerentes com o nosso adiantamento. Talvez quem empurre a cadeira de rodas nesta vida, na outra mereça empurrar um carrinho de sorvetes, distribuindo felicidade a todos os irmãos.
Todos sorriram, mas Verônica lembrou a hora:
— Meu amigo Adolfo vai me levar até a amante do meu ex. Eis algo que não vai ocorrer por acaso, nem com o desconhecimento de ninguém. Eu acho que, nesta altura dos acontecimentos, mesmo que ele não me leve, eu vou procurá-la, ou ela a mim. Está na hora de nosso encontro.
Tomou Adolfo pelo braço e foi levando-o para fora, sem dar-lhe oportunidade de apertar as mãos aos anfitriões.
Já no carro, Verônica sapecou um beijo na face do moço, sem dizer palavra.
Adolfo interpretou a manifestação de carinho como uma forma de agradecimento por tudo quanto ele houvera feito pela memória de Eurico, ficando muito longe de perceber que ela, simplesmente, estava construindo um halo de amor e de amizade entre os dois.
Antes de dar a partida, o moço concentrou seu olhar nos olhos dela, a ver se as impressões do primeiro dia voltavam. Sentiu um forte estremecimento, como se aqueles olhos estivessem revelando um passado de outra era ou de outra vida, reminiscência de alguns dias que se fixava na mente como uma realidade perene. Mas essas idéias não se desenvolveram, fugidias que eram, e momentâneas. Havia o objetivo imediato de ir ao encontro de Arlete. Adolfo tomou a mão da moça e retribuiu o carinho, levando-a aos lábios e afagando-a sobre o banco.
Ao pôr o carro em movimento, ensaiou um pedido de desculpa:
— Ontem eu dormi, estando você comigo. Perdão pela grosseria. Você há de compreender que eu estava exausto. Foi um dia cheio. Hoje, parece que não vai ser diferente.
Verônica manteve-se calada, mas passou a mão pela nuca do rapaz, clara demonstração de que tudo aquilo era de menos. Entendiam-se pelos gestos. Não estavam precisando de palavras.
Em silêncio, cada qual pensando no encontro de logo mais, chegaram à Cidade Universitária, ambos apontando os prédios onde haviam logrado seu título acadêmico.
Não foi difícil encontrar o edifício em que se achava Arlete, a qual, avisada de que estavam chegando, os aguardava na calçada, rente do gramado com os arbustos que protegiam os ambientes escolares da visão e dos ruídos dos carros.
Não podendo estacionar naquele local, Adolfo deixou Verônica descer e foi procurar uma vaga. Quando regressou, encontrou as duas mulheres muito emocionadas, olhos úmidos, de mãos dadas, trocando confidências.
— Se vocês acham que vou atrapalhar, disse ele, eu espero a minha vez.
Foi Arlete quem se manifestou:
— Vamos entrar. Tenho um material que consegui hoje de manhã junto à Federação Espírita, uma extensa relação de nomes e endereços de sedes filiadas ao kardecismo. Você vai ver se pode extrair alguma idéia, enquanto Verônica e eu nos entendemos.
De fato, enquanto Adolfo se mantinha ocupado com um grosso volume preso por uma espiral de plástico, ambas as mulheres desapareceram de vista, buscando um local tranqüilo onde pudessem conversar.
— Você entendeu, Verônica, que eu não lhe roubei o Eurico?
— Perfeitamente. O que eu tenho a lamentar é que pensei o tempo todo que ele fosse gay, que estivesse vivendo com seu irmão.
— Você leu a carta que ele lhe deixou?
— Só ontem, assim mesmo porque Adolfo diligenciou para que tudo se esclarecesse. Eu destruí a cópia que seu irmão me enviou.
— Eu estou sabendo. E quanto ao caderno de nomes?
Verônica abriu a bolsa e retirou o pequeno volume.
— Foi você quem teve a idéia de registrar todos estes nomes?
— Eu tive a idéia de certo modo, porque foi Eurico quem insistiu, quando a doença foi descoberta, que a gente avisasse as possíveis portadoras do vírus.
— Deve ter sido um desespero.
— Deve ter sido, não: foi. Eu testemunhei. As primeiras mulheres foram avisadas por ele mesmo, como ocorreu com você.
— Como é que ele se portou quanto a mim?
— Você quer saber se ele a amava. Mais que a todas as outras.
— Como é que vocês se aproximaram?
— Problemas de carência afetiva de ambos. Ele estava um trapo e eu quis consolá-lo. Criamos uma intimidade perigosíssima. Ele ainda não sabia da doença. Estava deprimido porque o período que passou desempregado foi terrível quanto ao vício da cocaína. Você está sabendo que meu irmão o internou?
— Estou sabendo. Adolfo me contou muita coisa.
— Em suma, para encurtar, ao descobrirmos a AIDS e ao ser diagnosticado que a doença havia avançado sem possibilidade de recuperação, nós até deliberamos dar-lhe pequenas doses da droga, que era um meio de atenuar-lhe o sofrimento.
— Você chegou a amá-lo?
— Com certeza, não tanto quanto você. Mas, no fim, eu agradeço a Deus ter ficado com ele nos últimos momentos, embora, durante os desfalecimentos, ele me confundisse com você.
— Você está dizendo isso para me confortar.
— Eu estou dizendo a verdade.
O perfume de Arlete estava incomodando Verônica desde o primeiro abraço. Lembrava-lhe não apenas os acontecimentos mais tristes de antigamente como também os fatos recentes com Adolfo. Então, Verônica desfechou um golpe inesperado:
— Você pretende seduzir Adolfo também?
A doutora não esperava pela estocada. Mas, inteligente e cheia de experiência, não se apertou:
— Vejo que você o está amando.
— E você, não?
— Quer que eu lhe diga tudo o que sinto?
— Você é quem está afirmando dizer a verdade.
— Pois eu olhei para ele como uma possibilidade, num momento em que esteve em casa, no dia mesmo em que o irmão faleceu. Se Vivinho não cuidasse dele quando desmaiou, por certo eu iria fazê-lo e poderia ter ocorrido uma aproximação afetiva. Estaria eu errada?
Verônica refletiu por instantes e respondeu:
— Sendo do mesmo modo sincera, devo dizer que você chegou antes, porque, naquele momento, eu não o conhecia ainda, a não ser por ouvir minha mãe falar dele, de você e dos demais do seu grupo de estudos.
Arlete concluiu:
— Portanto, se você não estiver sendo correspondida, pode estar acontecendo de que Adolfo tenha tido uma queda por mim.
Falava para provocar Verônica, mas esta não se deu por achada:
— Vamos colocar as coisas assim: se você não o ama, não se intrometa entre nós. Se você o ama, vamos deixar que ele escolha uma. Afinal de contas, não estamos comprometidos.
Depois de refletir um instante, acrescentou:
— Não é uma fatalidade que nós nos interessemos pelos mesmos homens?
Arlete não respondeu de imediato. Mas, afinal, disse:
— Eu não sei se o que vou falar espelha a verdade. Mas tudo me leva a crer que nós duas nos enleamos em conflitos em existências anteriores. Estamos tendo uma oportunidade de ouro para nos ajustarmos e nos entendermos. Se Eurico nos separou, Adolfo está unindo-nos. Que mistérios o passado está guardando?!... De qualquer modo, temos de aproveitar este encontro para firmarmos um objetivo único quanto ao nosso futuro imediato na Terra. Se eu devo abrir mão de Adolfo, pela simpatia que ele me causou, em prol de sua felicidade, eu o farei. Pode estar certa disto. E, se ele me escolher, eu gostaria de que você não interviesse.
— Quer dizer que você vai lutar por ele?
— Quer dizer que eu e ele temos um trabalho comum e que nós iremos encontrar-nos ainda várias vezes. Se ele me quiser, será espontaneamente, porque eu não vou forçá-lo a nada.
— Você não terá uma outra pessoa para efetuar o trabalho dele?
— Eu tenho, mas me parece que ele está interessado em contribuir com seus conhecimentos técnicos para o sucesso de minha tese.
— Se eu comparecer a suas reuniões de trabalho, você ficará perturbada?
— Em hipótese alguma. Ele nem precisa convidá-la. Sou eu quem a convido e farei questão de ligar-lhe toda vez que ele vier ajudar-me. Está bem assim?
Verônica hesitava em revelar o que a estava preocupando, mas venceu os pruridos de sua sensibilidade e confessou:
— Vendo a sua beleza e seu porte físico, em comparação comigo, eu me sinto como que diminuída.
— Pois aproveite a oferta de meu irmão e vá fazer uma temporada no nosso spa. Você irá recuperar a sua forma antiga, voltando a ser aquela mocinha da foto que Eurico carregava na carteira.
— Posso contar com a sua lealdade, Arlete?
— Eu não estou apaixonada por Adolfo.
— Tanto pior. Você seria muito mais perigosa se agisse friamente.
— Pelo que entendi, você se emocionou muito mais quando tratamos de Eurico do que quando nos referimos a Adolfo. Isto não será um sinal de que está agindo, como você disse, friamente?
— Eu acredito que você teve outros namorados desde que Eurico morreu. Pois eu tive, mas nenhum me levou a estes extremos de cuidados pessoais. Se eu não estou apaixonada, com certeza estou querendo ficar. Você entende isto?
— Compreendo perfeitamente. E digo mais: se ele pretender se engraçar comigo, se arrastar as asas, você sabe, eu vou mandar que ele o faça por você. Pode contar comigo.
— Posso mesmo?
— Claro, querida. Se eu sofri com a perda de Eurico, você sofreu muito mais. A situação agora se repete, com a diferença de que estamos entendendo-nos antes que aconteça algo mais sério. Aconteceu?
— Por pouco.
O relato dos acontecimentos da véspera divertiu a ambas, que terminaram o colóquio entre sorrisos e promessas.



21. CAMINHOS QUE SE AFASTAM

Quando Arlete e Verônica voltaram à sala em que se achava Adolfo, encontraram-no mergulhado na leitura das anotações da professora. Tão entretido estava que não notou a presença das duas.
Foi Arlete quem anunciou:
— Estamos entendidas.
Sobressaltou o jovem senhor mas não perdeu a diretriz dos pensamentos que o conduziram àquele encontro:
— Não tive jamais qualquer dúvida a respeito. Pessoas inteligentes e de bom caráter tendem a superar as crises de relacionamento.
Verônica observou:
— Nem sempre, querido. É preciso que haja uma espécie de desprendimento, para que cada parte ceda um pouco.
Arlete complementou:
— É também necessário que haja muito boa vontade, porque nem tudo fica perfeitamente compreendido, já que os fatores que levaram as pessoas a tirar certas conclusões errôneas devem ser postos de lado, vencidos pela maior importância dos fatos da realidade.
Adolfo aproveitou a deixa:
— É precisamente o ponto que estou enfrentando nesta sua proposta de tese. Pelo que li no relatório da Federação, existem tantos centros espíritas filiados, com tantos membros e tais departamentos. Muito bem, então, a partir daí podemos chegar a algumas conclusões bem genéricas. Se quisermos, porém, por exemplo, saber quantas pessoas são atendidas pelo departamento social, precisamos voltar a consultar cada entidade.; o mesmo quanto ao número de médiuns e de comunicações espíritas segundo a freqüência com que realizam as sessões. É obra para quem possui muitos recursos, meios de comunicação e tempo, o que não me parece ser o seu caso.
Arlete concordou:
— Eu fui atrás desses dados da Federação exatamente porque estou sendo premida pela questão do tempo. Preciso terminar o trabalho o quanto antes e, se for o caso, em lugar de oferecê-lo como tese de livre-docência, poderei precisar dele como dissertação em que apoiar minha efetivação como catedrática, cargo que estou em vias de assumir interinamente.
Verônica acompanhava atenta o desenvolvimento dos arrazoados, adivinhando que o sentido primitivo da ajuda de Adolfo estava desintegrando-se. De fato, tal foi a conclusão do moço:
— Se você não for elaborar um questionário a ser distribuído a todos os centros, agindo apenas por amostragem, não tem necessidade de um programa especial. Basta elaborar um levantamento simples, porquanto o instrumental de que normalmente você se serve está preparado para executá-lo.
Arlete foi um pouco mais longe:
— Era o que eu vinha fazendo, antes de me interessar por um trabalho que vencesse as barreiras acadêmicas para auxiliar as pesquisas do movimento espírita. Agora, estou fechando minhas atividades dentro dos limites da universidade. Sendo assim, todo aquele rigor da extensão das informações se perde, em função de uma notícia concisa, sóbria e correta de como andam as instituições administrativas ou federativas sob a bandeira erguida por Allan Kardec, ou seja, de como uma parcela da população, cujas características buscarei apontar, ainda sedimenta seus projetos de vida comunitária numa filosofia de caráter cristão, elaborada segundo princípios vigentes em certa camada social européia do século dezenove.
Verônica ficou com vontade de participar mas foi Adolfo quem objetou:
— Pelo que entendi, sua visão histórica haverá de promover uma crítica aos espíritas de hoje.; no entanto, eu estava propenso a dirigir a sua pesquisa para a fenomenologia, ou melhor, para o relacionamento entre as esferas material e espiritual. Não seria bem mais importante saber como e até que ponto ainda os espíritos trazem informações da vida de além-túmulo?
Arlete sorriu condescendente:
— Não me entenda mal. Você acaba de descrever o meu projeto anterior, quando eu pretendia ajudar os que trabalham nos centros, nas uniões de entidades e nas federações. Aí, talvez, até pudessem eles chegar a resultados positivos, quanto a efetuar uma revisão da doutrina de Kardec, tornando-a menos de Kardec e mais dos próprios espíritos. Para tanto, eu precisaria fazer inúmeros levantamentos das mensagens mais importantes, referindo-as àquelas de que dispôs o coordenador do espiritismo. Caso contrário, só o fato de mencionar tal possibilidade iria causar-me inúmeros problemas, já que, pelo que levantei, para os dirigentes espíritas, tudo quanto Kardec escreveu é intocável, apesar de ele mesmo haver estabelecido, quanto aos aspectos científicos e sociais, que a doutrina evoluiria conforme os desenvolvimentos da própria ciência e da sociedade. Evidentemente, sendo a moral espírita totalmente assentada na moral do Cristo, não há nada a acrescentar nem a retirar dela, a não ser uma saudável adaptação aos tempos atuais, evento que deverá repetir-se a cada cem ou duzentos anos, uma vez que a mentalidade das pessoas vai modificando-se, graças a Deus, sempre para melhor.
Verônica seguiu as explicações com interesse e solicitou a palavra:
— Posso colocar a minha colher de pau na panela?
— Claro, querida, assentiu Arlete. Vamos ouvi-la, porque quero saber como é que a minha tradutora e amiga interpreta o meu ponto de vista.
Percebeu Verônica o jogo de palavras relacionado à sua profissão e tentou ser coerente com a expectativa da doutora:
— Eu penso que é preciso certa prudência quando se afirma que a humanidade vem progredindo no aspecto moral. Nós temos visto na nossa comunidade quantos crimes acontecem, quando o povo não se sente refreado pelo poder policial. A impunidade vem gerando verdadeiros monstros, que não se inibem perante a própria consciência, ou melhor, que nem parecem possuir uma. A mesma sociedade européia, que Kardec chamava de civilizada, produziu duas guerras mundiais de extensa destruição, redundando na necessidade cada vez mais aguda de os povos se armarem para colocarem medo nos corações dos mais poderosos. Eis aí a bomba atômica, a de hidrogênio, os artefatos químicos e biológicos etc. Eu não vejo nisso um real progresso humano, mesmo porque, segundo o próprio Kardec e os espíritos que lhe deram subsídios para suas enunciações, quem evolui e alcança um certo nível superior de procedimento moral passa, automaticamente, para uma esfera menos material, indo habitar outros mundos mais adiantados. Se vocês me disserem que as instituições humanas de caráter universalista concentram pessoas com propósitos eminentemente pacíficos, eu aceito. Mas as nações produzem guerras para darem uso às armas que fabricam. Talvez eu tenha ido longe demais, mas não posso aceitar que o espiritismo se imponha apenas através de sua filosofia. Seria preciso que os fenômenos se disseminassem mundo afora, para que as pessoas pudessem perceber com clareza que existe uma vida além desta e fruto desta, para cada alma que desencarna. Eu li vários livros psicografados e sei que muitos deles estão traduzidos para diversos idiomas. Mas onde estão os apóstolos do espiritismo, aquelas pessoas que devem interpretar os dizeres, comprovando-lhes a veracidade? Eis que o problema se amplia para a área da educação, sem que tenhamos uma correspondência necessária com as áreas políticas e econômicas, que dariam embasamento à divulgação da doutrina. Se vocês não me interromperem, eu não vou fechar a minha torneirinha, como diria a boneca Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo, do Monteiro Lobato.
Adolfo se sentiu na obrigação de acrescentar algo em apoio a ambas:
— Eu não tenho conhecimento suficiente para falar a respeito da doutrina nem do movimento espírita. O que eu penso sobre tudo isso é que todos os atos são individuais. Até mesmo quando uma multidão se reúne na praça, para protestar ou para aclamar, para lá foi conduzida por algum líder ou manipulador da opinião pública. Era esse o serviço que eu tinha em vista quando me propus a auxiliar a professora em sua pesquisa. Eu concordo que o mundo está uma bagunça, mas, ao menos, a gente tem tido a possibilidade de acompanhar os acontecimentos ao vivo e em cores pela televisão, muito embora a ninguém seja dado interferir sequer, por exemplo, num seqüestro de avião. Mas podemos perceber quais são as táticas da guerrilha ligada às forças minoritárias. A gente lê nas revistas como é que o tráfico de drogas manipula tantas pessoas de projeção na sociedade, quer pela força das armas, quer pelo poder financeiro. Como o espiritismo pode ajudar as vítimas dos vícios e dos fanatismos? Indo de coração a coração, falando sobre o que se espera de cada um na presente encarnação, enaltecendo o mundo espiritual como a verdadeira pátria de cada ser, de cada criatura. Em suma, realizando uma catequese sem promover a desordem e o desequilíbrio através das ameaças dos castigos eternos. Eu presenciei uma vida inteira contida num corpo deficiente, que foi a vida do meu irmão Benito. Tenho a certeza, agora, de que ele se acha aliviado e preparado para enfrentar outra encarnação, não para expiar os males das anteriores, mas para redimir-se através do bem que possa efetuar para cada pessoa ao seu derredor. Esta compreensão é que eu gostaria de passar às pessoas, para que cada uma delas pudesse suspeitar de que suas existências carnais podem ser canalizadas para a efetivação do amor conforme as pregações de Jesus.
Fez-se um longo silêncio.
Foi Arlete quem resumiu tudo:
— Enfim, estamos aqui salvando a humanidade. Não é bonito isto?
Verônica e Adolfo sorriram meio acanhados, porque entenderam o quanto Arlete estava à frente deles, ela, sim, executando uma tarefa em prol do conhecimento da doutrina. Foi quando Verônica aduziu:
— Arlete, faça a sua dissertação para a conquista de sua cátedra, mas não deixe de utilizar os seus orientandos no sentido de encaminhá-los a uma pesquisa de campo que corresponda aos anseios primitivos.
Arlete acrescentou:
— E aí poderemos usar os recursos da informática, para o que Adolfo estará preparado, porque eu acho que ele irá desenvolver o programa que está em sua cabeça e em sua intenção. Mas, mudando o rumo de nossa conversa, eu lhes sugiro que vão até a clínica e conversem com o Vivinho, já que também com ele é preciso que Verônica se entenda. Ao mesmo tempo, vocês podem combinar como é que será o tratamento a que ela poderá submeter-se para facilitar a perda de peso pretendida.
Não estava nos planos de Adolfo e de Verônica aquela visita, entretanto, pareceu-lhes o caminho natural a seguir.
Para Verônica, o conselho de Arlete refletia dois intentos claros: o de dispensar em definitivo a ajuda de Adolfo e o de permitir a ela estabelecer vínculos afetivos com ele, através daquele contato contínuo.
Quando se despediram, Adolfo observou:
— Arlete, nós vamos reunir-nos de novo para prosseguirmos o estudo de O Livro dos Espíritos. Estamos preparando a sala do meu apartamento para isso. Quando for a hora, eu a aviso.
Mas a professora não era do mesmo aviso:
— Eu compareci ao encontro de vocês por acaso, pois estava apenas pesquisando para a tese. Provavelmente, eu vá declinar de seu convite, conquanto aceite ir tomar um cafezinho, enquanto você irá expor-me como é que estarão andando os seus projetos ou o seu programa de ajuda espírita.
Verônica ficou de sobreaviso esperando uma resposta condizente de Adolfo, mas este limitou-se a acrescentar:
— Com certeza, os companheiros do grupo vão ficar decepcionados. Mas eu entendo a pobreza de nossas inteligências e as limitações de nossas perspectivas.
Arlete não respondeu, Verônica fechou-se em copas e os três se despediram com abraços discretos, principalmente entre Arlete e Adolfo, fazendo Verônica pensar que dessa feita era ela quem iria levar o aroma daquele preciosíssimo perfume francês.



22. CAMINHOS QUE SE UNEM

No carro, antes que Adolfo desse a partida, Verônica suplicou-lhe que a beijasse. Adolfo lhe afagou os cabelos, tomou-lhe o rosto com ambas as mãos e depositou-lhe nos lábios um beijo ardente, selando o convívio daquela tarde.
— Estou carente de afeto, disse-lhe a moça.
Passou pela mente do analista de sistemas que a carência era muito mais pela recordação de Eurico do que o resultado de uma necessidade física. Mas calou a suspeita.
Foi Verônica quem discorreu a respeito:
— Talvez você possa vir a pensar que toda esta correria por causa do meu ex é que esteja causando-me esta sensação de vazio. Devo dizer-lhe que estou recompondo minha afeição por ele, mas como uma sombra do passado. Graças a Deus, eu acho que você é bem capaz de me compreender, bastando pensar em sua Laura e na falta que ela lhe fez ou ainda faz. Se estamos afeiçoando-nos um ao outro, querido amigo, é bom que estabeleçamos de uma vez para sempre que o nosso amor só poderá crescer e impor-se, se soubermos respeitar a personalidade e o passado um do outro.
— Mas você está me pedindo em casamento.
— Você acha que é muito cedo para isso?
— Eu acho, com perdão do achismo, como disse sua mãe. Aliás, eu acho também que, tradicionalmente, a iniciativa cabe ao homem. Você acha que eu estou indo muito devagar?
— Eu tenho medo de que você esteja pensando mais nos problemas do espiritismo e nos programas da Arlete do que em seu futuro, agora que está transformando radicalmente a sua vida.
— Gostei da sutileza com que você me esclareceu sobre seu ciúme da professora. Quer saber a verdade? Se eu não tivesse conhecido você um dia depois de ter estado cuidando do computador dela, provavelmente agora estaria trabalhando ativamente pelo sucesso de sua tese. Mas eu me encantei pelo brilho de seus olhos e não vou ficar satisfeito enquanto não decifrar totalmente o quanto ele deve às lentes de contato e o quanto ele representa o fulgor de sua alma.
As expressões de afeto e admiração provocaram um novo e espontâneo beijo dado pela moça e recebido pelo rapaz, ambos embriagados pelos eflúvios de uma verdadeira felicidade que provinha do âmago de seus espíritos, passando pelas vibrações prazerosas de seus corpos.
Apaixonavam-se e se sentiam correspondidos.
Depois de se olharem durante alguns minutos, Adolfo criou coragem para desfazer aquele encantamento, perguntando:
— Você quer ir acertar os ponteiros com Vivinho?
— Definitivamente.
— Como foi sua conversa com Arlete?
— Foi boa. Como ela disse, nós nos entendemos. Preciso informar-lhe que lhe devolvi o caderno de Eurico. Foi como que o último golpe nos sentimentos de revolta contra o infeliz dom-joão. Foi como depositar a primeira e última flor em seu túmulo. Mas, se ficarmos conversando aqui, jamais chegaremos ao spa.
Adolfo largou as mãos da moça, ligou o motor e partiram para o meio do bulício do trânsito, àquela hora já bastante congestionado, até no sentido do bairro para o centro.
Quando chegaram à clínica, já haviam combinado que se casariam apenas se desse certo um período de experiência matrimonial que iniciariam assim que ela tivesse perdido os primeiros quinze quilos de seu excesso de vinte e cinco. Adolfo ainda tentou dissuadi-la da necessidade do sacrifício, porém, Verônica foi taxativa:
— Para começar, eu já perdi cinco quilos, mas não estou sentindo-me bem assim. Eu sei que a minha felicidade não depende deste excesso de gordura. Mas eu bem preciso achar que estou dando-me por inteiro ao nosso relacionamento. Esta banha (e mostrava o abdômen proeminente) é a imagem de meu fracasso como mulher, diante da suspeita de que Vivinho... Você sabe.
Desceram e foram acolhidos à porta pelo anfitrião, avisado através do celular de que estavam chegando.
Clóvis recebeu-os de maneira formal e obsequiosa:
— Sejam bem-vindos, amigos. Meus respeitos, Verônica.; muito prazer em conhecê-la.
A simpatia e a amabilidade de Vivinho cativaram desde logo a moça, que respondeu visivelmente emocionada:
— A satisfação é toda minha, agora que já me inteirei dos acontecimentos do passado e posso reformular todos os meus sentimentos em relação ao senhor.
— Trate-me por Vivinho, por gentileza.
— É que eu tenho a impressão de estar devendo-lhe um pedido de perdão, por quantos pensamentos errados emiti contra o senhor. Por favor, desculpe-me...
Clóvis impacientava-se e logo pôs um termo aos dizeres protocolares de Verônica:
— Vamos entrar, que eu tenho o resultado de meu exame de sangue...
— Pelo amor de Deus! Isto tudo já foi superado.
— De qualquer modo, minha cara, mandei buscar assim que soube que vocês vinham vindo. Ainda tenho o envelope lacrado. Vocês vão testemunhar que tenho agido com o máximo de precaução, porque aquele meu amor desnaturado não passou de uma paixonite muitíssimo platônica.
Adolfo vinha atrás dos dois pelo corredor, estando Verônica e Clóvis de mãos dadas. Ia refletindo na possibilidade de o resultado ser positivo, o que esfacelaria o amor-próprio do amigo. Mas pensou também que, se o resultado não fosse negativo, o laboratório não enviaria por mãos de terceiros. Pelo sim, pelo não, ficou de sobreaviso para a eventualidade de um delíquio de Vivinho.
No gabinete do presidente, Clóvis acomodou Verônica numa poltrona, indicou outra a Adolfo e pegou de sobre a escrivaninha o envelope. Estendeu o braço para que Verônica o apanhasse, mas a moça hesitou um instante, dando oportunidade a que Adolfo arrebatasse o documento da mão de Vivinho, que não se surpreendeu com o ímpeto nem esboçou nenhuma reação contrária.
— Vamos terminar de uma vez por todas com isto, afirmou Adolfo, enquanto rasgava as bordas picotadas.
Então leu:
— Sorologia para AIDS: negativa.
Verônica, num impulso irreprimível, levantou-se e abraçou Vivinho, mantendo-o junto ao corpo por um longo minuto, enquanto ambos soluçavam.
Adolfo se sentiu meio desprezado diante daquele fraternal amplexo. Nitidamente, criou a imagem de uma esfera de energias emotivas, uma forma de campo de força que o impedia de se aproximar. Passou-lhe pela cabeça unir-se aos dois, mas dançava-lhe na memória a figura de Eurico de mãos dadas com Verônica, na fotografia. Ainda bem que demoraram a se separar, porque teve tempo de acalmar-se e de restaurar a candura de sua fisionomia, através do pensamento de que, acima de seu ego, estavam em jogo, naquele enlace sentimental, muitas esperanças de uma feliz convivência futura para ressarcimento de possíveis débitos do passado.
“Ao menos, raciocinou, se mantiverem este nível de compreensão um do outro, não levarão para o túmulo as promissórias vencidas e não pagas.”
A figura vinculada à contabilidade levou-o a pensar em que Eurico em espírito talvez estivesse presente. Então, como que inspirado, requereu de seus guias espirituais que auxiliassem essa terceira personagem a fazer parte daquele conjunto de almas, sem remorsos e sem receio de ser mal recebido.
“Ao contrário, acrescentou, que ele entenda que são duas pessoas que o amaram e que o amam ainda de todo seu coração.”
Pareceu-lhe sentir a presença de Laura a afagar-lhe os cabelos que começavam a encanecer e não lhe foi possível estancar as lágrimas.
Aí ocorreu de Verônica se desprender dos braços de Clóvis e de se voltar para o amigo, agradecendo-lhe entre soluços:
— Muito obrigado, Adolfo. Nós dois temos de lhe agradecer esta união.
Sem que Adolfo se desse conta, ela lhe pegou a mão e a levou aos lábios. Foi quando, por sua vez, Vivinho também se assenhoreou do amigo e o prendeu fortemente nos braços, afirmando-lhe ao pé do ouvido:
— Eu lhe agradeço, vivamente, sua corajosa atitude e sua lúcida inteligência. Desculpe-me se, no primeiro instante, eu não vi toda a extensão de seu gesto. Ainda agora, sua generosidade foi muito grande, impedindo que nossos corações pudessem deparar-se com uma notícia ruim. Tenho a certeza de que você compreendeu todos os riscos que estaria correndo, mas, mesmo assim, assumiu uma responsabilidade com que só seu espírito altruísta poderia arcar. Deus o ajude e proteja sempre!
Em seguida, Vivinho levou Verônica a conhecer a clínica, enquanto Adolfo ficou a cismar na vida sob o impacto do abraço de há pouco. Considerou que a roupa disfarçava um corpo bem modelado, já que sentiu o poder do aperto do outro em suas costelas.
Enquanto ambos estavam ausentes, imaginou se não seria conveniente praticar alguns exercícios com halteres e foi espiar a malhação na sala de ginástica. Encontrou ali o responsável, este, sim, um homem de atlética figura, cujos músculos se delineavam vigorosos sob a pele.
Foi informado de que, caso se matriculasse, haveria de seguir um rigoroso planejamento, sob a supervisão de um dos fisioterapeutas e sob a orientação direta de um instrutor pessoal que o acompanharia em cada sessão, zelando para que todos os exercícios se realizassem de acordo com o projeto a que se propusessem.
Considerou Adolfo que não iria perder muito tempo, caso ajustasse o seu horário ao de Verônica, e foi realizar a inscrição, preenchendo os formulários com a ajuda da moça da secretaria. Ficou sabendo que deveria submeter-se a exame médico, para o que teve de marcar horário, condicionando-o a possível alteração, tendo em vista o roteiro de Verônica.
Voltou para a sala do presidente com os prospectos na mão, ciente de que só deveria efetuar o pagamento da inscrição após passar pelo consultório médico. O preço das mensalidades o assustou um pouco, pela comparação que estabeleceu com os seus ganhos profissionais. No entanto, recordou-se da herança que recebera e sossegou de vez quando se recordou de que Benito já não mais estava ali para lhe dar gastos extraordinários. Sopesou a ausência da mãe com a possível agregação de Verônica e chegou a um resultado favorável, já que a moça tinha o seu modo de ganhar o sustento.
Entretinha-se a ler as prescrições aos candidatos às aulas, quando voltaram os dois, conversando bem animadamente.
Entusiasmada, Verônica contou-lhe que iria começar o que ela chamou de tratamento do estresse já no dia seguinte:
— Você tem de ver o cuidado que eles têm para com os pacientes. Existem médicos de várias especialidades e até psicoterapia de grupo. Vivinho me disse que, se eu me comprometer a seguir a dieta indicada, não vou precisar internar-me, podendo trabalhar normalmente de manhã, vindo apenas na parte da tarde para o controle do tratamento, para os exames de rotina e para os exercícios físicos. Por que você não vem comigo?
Adolfo mostrou-lhe os formulários e complementou:
— Enquanto você vem em busca de harmonizar sua cabeça com o seu corpo, no sentido de restabelecer os anseios de vida de sua juventude (eu não me esqueço de que você deseja ter filhos), eu quero calçar de músculos o meu esqueleto, mudando um pouco o meu roteiro tendente ao espiritual...
Vivinho, que ouvia como que desinteressado a conversa, acrescentou:
— Mens sana in corpore sano, como diriam os romanos.
Verônica acrescentou:
— Os romanos que citavam Juvenal, pois essa é uma de suas máximas.
Adolfo aduziu:
— Vejo que vocês se entendem às mil maravilhas, graças a Deus! Pois o que devemos fazer agora é ver se conjugamos os nossos horários, para podermos vir juntos.
Quando Vivinho ofereceu gratuidade também para Adolfo, este se recusou a aceitar. Insistiram ambos até concordarem em que os pagamentos se dariam de forma altruísta: se Adolfo pagasse, Vivinho passaria os valores para as obras de caridade que ajudava.; se Adolfo não pagasse, era ele quem faria a doação.
Vivinho, em seguida, encaminhou os dois para os médicos encarregados da avaliação preliminar do estado físico dos candidatos, desculpando-se por deixá-los ali, porque seus negócios o requisitavam em outro lugar.
Durante a viagem de regresso, Adolfo e Verônica sentiam-se acumpliciados na vida. Foi ela quem primeiro se manifestou:
— A médica que me atendeu afiançou-me que perderei os próximos dez quilos em dois meses.
— Isto quer dizer, querida, que dentro de dois meses estaremos juntos. Que tal programarmos uma viagem de núpcias? Você tem algum sonho particular a respeito de algum lugar específico?
— Eu li em uma obra que traduzi que se recomenda que o início da vida conjugal seja na própria residência, para que não haja nenhuma fantasia quanto ao relacionamento futuro.
— Precisamos pensar como é que vai ser.
— Você quer saber se a gente vai morar em seu apartamento ou em minha casa, com meus pais?
— Ou podemos pensar em um lugar sem as lembranças dos que partiram.
— Você acha que Eurico nos perseguiria em minha casa?
— Se for intenção dele obsidiar-nos, ele o fará em qualquer lugar. Eu falo das boas recordações, daquelas que nos trazem saudade.
— Agora é você que está sendo incoerente, pois eu não pretendo perder nenhuma e gostaria que você mantivesse todas as suas. Para onde formos, elas irão conosco.
— Sua mãe precisa de você?
— Absolutamente, não. Meu pai dá conta de tudo. Além do mais, eu me fecho em meu quarto e trabalho praticamente o dia todo.
— Então, o mais lógico é vivermos em meu apartamento, onde existe um quarto em que suas coisas ficarão melhor acomodadas, como em um verdadeiro escritório. O quarto maior será o nosso. O meu lugar de trabalho continuará o mesmo e o quarto do Benito se transformará em sala de televisão, já que a sala principal ficará reservada para as reuniões do grupo de estudos, se você não se opuser a ele.
— Qual o quarto maior: o do Benito ou o seu?
— O meu.
— Então eu fico com o que era do seu irmão, precisando apenas transferir a minha linha telefônica para a Internet.
— Você está pensando em livrar-se do fantasma da Laura naquele quarto...
— Exatamente isso. E também em reservar um espaço melhor para os nossos pimpolhos.
O resto da viagem transcorreu em afagos de mãos e em promessas de felicidade.
Ao chegar a seu prédio, depois de combinarem ir juntos na manhã seguinte realizar os vários exames solicitados e de deixar Verônica em casa, encontrou Adolfo vários repórteres à sua espera. Queriam colher informações a respeito dos acontecimentos da manhã.



23. OS CAMPOS SE VESTEM DE CORES

Quando se encarnam, os espíritos adquirem compromissos diversos com a matéria, inclusive porque se submetem às leis que a regem. Dentre estas, poderosíssima, se encontra a lei da reprodução que, não bastasse todo o aparato físico correspondente, se incrusta na psique dos indivíduos com tanto maior vigor quanto maior sua compreensão da responsabilidade que têm perante os demais seres, especialmente os de sua clã, haja vista que imita a ação do Criador.
Por isso, Adolfo e Verônica estavam destinados a constituir família, ainda que a união de ambos não se consumasse. Mas se consumou três dias depois dos acontecimentos acima narrados. E tão bem se deram que saíram, dois dias depois, em viagem de núpcias, abandonando os projetos de emagrecimento e de aumento da carga muscular, que passaram a segundo plano, mesmo porque os resultados dos exames que haviam realizado indicavam a mais absoluta saúde de ambos.
No etéreo, Eurico e Laura se rejubilaram com o conúbio, deixando Oliveira intrigado com tanta euforia. Desconfiou de que eles aspirassem a reencarnar na condição de filhos, tão grande tinha sido o amor que os unira aos encarnados e que ainda se mantinha vivo na memória de todos. Desconfiou mas não lhes disse nada, prometendo a si mesmo tornar-se um protetor assíduo de ambos.
Quando Benito conversou com o pai a respeito, insistiu com ele que se preparasse melhor para poder entrar em contato com os encarnados, porque, se Laura realmente conseguisse aquele intento, iria deixar vaga tal função. Foi assim que Oliveira, cheio de admiração pelo discernimento do filho um dia retardado, ingressou numa colônia de espíritos como aluno de primeiras letras.
No plano dos mortais, durante a viagem de dez dias dos namorados, os trabalhos no apartamento se adiantaram a tal ponto que até o mobiliário se distribuiu, os cortinados se dependuraram, os apetrechos de cozinha se completaram, inclusive com a transferência da linha telefônica de Verônica e a mudança e arrumação do quarto que se transformou em escritório.
Quando regressaram da lua-de-mel, encantaram-se com o requinte da decoração.
A primeira providência que tomaram, todavia, foi fazer que corressem os proclamas para o casamento, marcado para dentro de um mês.
Mas, em meio ao entusiasmo da descoberta de cada pequenino item da decoração, surgiu uma questão no espírito de Adolfo relativa ao luxo ou, ao menos, à qualidade superior dos móveis, tapetes e tudo o mais:
— Querida, estamos vendo que a natureza está menos agressiva com os nossos concidadãos, parecendo recompor-se para dar oportunidade a todos, para reconstrução de suas casas, de suas vidas. Mas a miséria grassa e nós aqui estamos muitíssimo bem instalados. Não é uma atitude nossa de certo egoísmo? Veja bem, eu digo de certo egoísmo, porque nós trabalhamos como voluntários e doamos tudo o que tínhamos antes. Mesmo assim, será que não deveríamos ter sido mais modestos? Antes que você responda, você reparou na mesa da sala? Viu que se trata de fino lavor de acabamento? Claro que viu.
Verônica não hesitou em responder, dando mostras de que tal preocupação também lhe passara pela mente:
— Vamos começar pela mesa. Trata-se de uma peça maciça de excelente qualidade. É para durar toda a vida e mais um pouco. Aí Francisco e Eduardo demonstraram o quanto estão interessado em que as reuniões de estudos aqui em casa tenham continuidade. Pensando do mesmo jeito, o nosso dormitório nos promete uma convivência bem longa. Na verdade, você vai dizer que as mulheres são bem mais prudentes e conservadoras e que eu vou representar agora o sexo feminino. Pode dizer isso que eu aceito. Você já pensou se, além de doar todos os seus bens e todo o seu dinheiro, você ficasse com dó das pessoas e fosse viver no meio delas, debaixo do viaduto? Será mais um indigente a ser socorrido. Vamos levantar as mãos para o céu e agradecer a nossa sorte de termos meios de exercer as nossas profissões, pois os empregos é que estão faltando para a população mais carente.
— Está faltando tudo.
— De acordo. Mas que podem as pessoas individualmente? As que estão no poder procuram dividir as áreas da cidade, do estado e do país para obterem apoio para sua eleição. Dizem que até o analfabetismo ou a semi-analfabetização é estimulada pelos poderes públicos, para que a inteligência do povo não se desenvolva...
— Acredito que haja muita gente que pense assim, mas duvido que sejam capazes de sustar o progresso, pois naturalmente as pessoas vão descobrindo que estão sendo manipuladas. Se não têm escolas, pelo menos têm os jornais e até a televisão.
— Enquanto isso, os traficantes de drogas mantêm seus redutos sob a força das armas, estabelecendo toque de recolher e mandando a população obedecer à lei do silêncio. As chacinas demonstram que são quadrilhas poderosíssimas e as investigações têm descoberto o envolvimento de muita gente oficialmente no poder.
— Querida, estamos desviando-nos do centro da discussão.
— Não chame esta conversa de discussão. Você não me viu discutir ainda.; nem queira ver. Em todo o caso, eu não acho que esteja desviando-me do ponto essencial que você levantou. Nossa aparente riqueza nada mais é do que um conforto de reclusão. Em primeiro lugar, demos emprego e trabalho a uma porção de artesãos e operários, mantendo as indústrias em funcionamento.
— Explique conforto de reclusão.
— Se nós não tomarmos cuidado, vamos ficar presos neste apartamento, uma vez que temos de tudo aqui, inclusive o contato com nossos empregadores. Através da Internet, fazemos todas as compras, que são recebidas e controladas pelos seguranças do prédio. Nosso aparelho de televisão e nosso vídeo são o que o dinheiro pode comprar de melhor. Nosso fornecedor de filmes entrega em casa e vem buscar. Nós conversamos com nossos familiares diariamente pelo telefone. Só falta comprarmos uns aparelhos de ginástica e não teremos mais necessidade de praticar exercícios ao ar livre.
— Você está esquecida do plano dos condôminos de montar uma academia de ginástica no salão dos fundos.
— Pelo menos as crianças têm seu playground e os adolescentes sua quadra de esportes. Ninguém está precisando sair daqui, a não ser para estudar, o que não é o nosso caso.
— Agora você está afirmando que o nosso egoísmo é a dois, ou melhor, é um egoísmo de uma certa casta social, com um tanto de dinheiro...
— Você deve insistir, em sua pesquisa junto aos afiliados ao movimento espírita, no levantamento de quantos existem que têm este mesmo problema de consciência.
— Não chega a ser um drama íntimo, porque sei que, na hora da precisão, nós vamos partir para o auxílio direto às pessoas necessitadas.
— Meu caro, você me pediu para auxiliá-lo a elaborar o questionário da pesquisa. Se você está tentando motivar-me com tanta sutileza...
— Como você descobriu?
— É que você não podia estar falando sério, tanta é a benemerência de seu coração.
— Mas você se engana. Eu estou, realmente, questionando a riqueza de alguns diante da pobreza da grande maioria.
— Eu acho que em tudo está a sabedoria de Deus. Mas eu não saberia explicar-lhe convenientemente as razões que fundamentam o carma ruim de tantos. Quem sabe a gente encontre alguns textos de Kardec ou dos espíritos que lhe forneceram as instruções para a codificação que possam ajudar-nos.
Aquela conversa morreria ali, Verônica imaginando que seria bem mais fácil perguntar à mãe a respeito.; Adolfo introjetando o tema para argüir, na primeira oportunidade, os espíritos que lhe estavam passando os ditados psicografados.
Aliás, o único segredo guardado pelo jovem senhor foi o fato de se dispor, em certos horários, à recepção das comunicações dos espíritos amigos que o estavam iniciando na mediunidade. Mas, na primeira oportunidade em que se deu ao trabalho, eles o liberaram para informar a Verônica o que lhe vinha sucedendo.
Foi com muita alegria que ele abriu os arquivos em que guardava os textos e foi com muito interesse que ela os leu, estimulando o marido a que prosseguisse na tarefa:
— Se você for persistente e não lamentar como uma perda de tempo as horas destinadas a este esforço de concentração, tendo em vista o resultado nem sempre brilhante das mensagens, irá, ao final de alguns anos, avaliar o quanto terá progredido no conhecimento da doutrina, especialmente se alguma equipe de bom nível se afeiçoar com o seu tipo de abertura psíquica, encontrando reservas de conhecimento adquirido nas leituras que deverão intensificar-se, no sentido de absorver os roteiros seguidos por Kardec e também por muitos dos espíritos que vêm mantendo correspondência com alguns médiuns capacitados. Pelo que entendi, sua mão não é conduzida, mas é conscientemente que você se aplica a digitar os termos que lhe vão surgindo na cabeça como que ditados por alguém. É isto?
— O que me surpreende é você saber tanto a respeito.
— Meus pais é que me forneceram os livros que lhe estou recomendando e que você já teve oportunidade de ver na minha estante. Mas vá com muita calma e se deixe conduzir, confiando em tudo o que lhe ditarem, mas fornecendo o resultado a pessoas capazes de elaborar uma crítica pertinente, capaz de separar o joio do trigo. Para isso, é preciso que Reinaldo assuma o compromisso da análise e do aconselhamento. Caso houver mérito e ele considerar que mais alguém possa aproveitar a leitura, eu conheço muitos editores que não se furtariam a examinar as obras e a considerar a possibilidade de sua publicação.
— Eu mal estou começando agora. Tanta coisa pode interromper o fluxo dos pensamentos alheios!... Vamos dar tempo ao tempo, querida.
— Mas não vamos ficar paralisados diante do fenômeno. Se os espíritos que o visitam têm boa desenvoltura intelectual e sabem conduzir os pensamentos em harmonia com a verdade e de forma agradável ao leitor encarnado, temos de saber logo, porque, como temos tantas vezes debatido, talvez eles mesmos estejam preocupados com os descaminhos dos humanos e queiram contribuir para minimizarem-se os males que estão prejudicando o discernimento de muitos miseráveis premidos pelas necessidades materiais.
— Quando falamos a respeito da pobreza, eu bem que me resguardei de avançar nas conclusões, condicionando minhas reações a possíveis contribuições que receberia por via mediúnica. Agora é você, querida, quem se antecipa e me dá uma resposta clara para o problema, qual seja, a de que o trabalho feito com empenho e de boa vontade jamais irá perder-se, exceto se quisermos ser mais generosos do que deveríamos, como aconteceu a Dario e esposa, naquele bárbaro crime.
— Será que aquelas pessoas, hoje atrás das grades, não estão, também elas, colhendo uns frutos de suas árvores?
— Quem semeia vento colhe tempestade.
— Se os frutos das árvores más fossem bons, quem se preocuparia com as árvores boas?
— Ou seja...
— Eu só posso acrescentar que muita gente está comendo o pão que o diabo amassou.
— Esta nossa divagação sempre termina com a lembrança de que você está fazendo uma dieta rigorosa. Mas você não pode comer nem esse pão aí, que o seu regime é de frutas — só de árvores boas—, legumes e verduras.
— Meu bem, é o seu amor que está alimentando-me: você está vendo o meu corpo diminuir, mas não está percebendo o quanto meu espírito está engordando de felicidade.
Depois de trocarem um beijinho mimoso, Adolfo perguntou:
— Vamos começar amanhã a freqüentar a academia?
— É bom para termos acompanhamento especializado.
Naquele momento, tilintou o novo aparelho telefônico sem fio instalado na sala.
Adolfo logo se propôs a atender.
— Alô?!
— Francisco. Como vão? Gostaram da arrumação das coisas? Se ficou algo que não tenha agradado, a gente troca.
— Por enquanto achamos tudo perfeito. Que manda o mano?
— Em primeiro lugar, os votos de muita ventura da mãe, da cunhada e dos sobrinhos. A mãe quer saber quando é que vocês virão almoçar em casa.
— Espere um pouco.
Adolfo rapidamente consultou a esposa e logo respondeu:
— Hoje é quinta. Amanhã nós combinamos que iremos começar os exercícios na academia. Mas, à noite, toda a turma do centro virá para realizar a primeira reunião aqui em casa. Traga a mãe e a cunhada, que a gente acerta o cardápio para sábado. Está bem assim?
— Perfeito. Agora eu queria saber se posso levar dois ou três convidados meus para a reunião.
— Você sabe quantas pessoas cabem em torno da mesa.
— Por isso estou perguntando, porque Eduardo ou mais alguém pode querer levar outras pessoas...
— Ele não me disse nada.
— Então, reserve três cadeiras para mim.
— Quem você vai trazer?
— É surpresa, mas a verdade é que não sei se eles vão confirmar o desejo que manifestaram de estar presentes. Então, não vou prometer nada. Já temos novidades?
— Não seja apressadinho. Tudo vai ser como Deus quiser.
— Recomendações a Verônica. Até amanhã.
— Agradeça por mim os votos de todos. Está alguém aí do seu lado querendo falar?
— Na hora da novela? Tchau!
— Tchau!
Nem bem Francisco desligou, e o telefone soou de novo.
— Alô?!
— Adolfo, é o Reinaldo. Então, está tudo pronto para amanhã?
— Com certeza.
— Estou ligando para avisar que todos confirmaram presença, inclusive Arlete, que prometeu esforçar-se para levar o irmão. Tudo bem?
— Claro. Ainda há lugar para mais alguns.
— Fiquem na paz de Deus!
— Eu queria saber se o senhor poderia chegar uns minutos antes. Tenho um assunto para tratar a respeito de mediunidade.
— Pode contar comigo. Às sete e quinze, o mais tardar, estarei chegando.
— Obrigado.



24. O GRUPO SE REÚNE DE NOVO

Exatamente na hora prevista, apresentou-se Reinaldo, trazendo consigo Dario e Mário. Lá se encontravam já Dona Isabel, Eduardo, Dona Edna e França, os quais, com Verônica e Adolfo, se empenhavam em preparar um lanche a ser servido após a reunião, enquanto contavam tudo o que se passara na ausência deles.
Deixando Dario e Mário à vontade com o pessoal, Adolfo levou Reinaldo ao escritório, para confabularem a respeito das mensagens que se arquivavam no computador.
Rapidamente, Reinaldo repassou os poucos textos, achou-os interessantes, pediu a Adolfo que os imprimisse, manifestando-se a respeito com seu comedimento habitual:
— Kardec, não sei se você sabe, trabalhava na sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas com diversos médiuns. Não rejeitava, porém, as comunicações que estes traziam de casa, muitas vezes reproduzindo-as em sua Revista Espírita, não raramente após nova evocação daqueles mensageiros para esclarecimentos, em sessões mediúnicas reservadas aos sócios. Veja bem: Kardec, o codificador emérito, era quem analisava as mensagens e se dispunha a argüir os autores espirituais, com todo o seu cabedal e toda a assistência dos protetores, a principiar pelo guia da Sociedade, o espírito de São Luís. Essa maneira de avaliar as contribuições dos médiuns demonstrava extrema prudência e era coerente com as diretrizes da doutrina. Tal roteiro Kardec propugnava que todos os centros seguissem, para não se deixarem envolver por sugestões desastradas de entidades menos adiantadas. Não deve ter sido por outro motivo que Verônica lhe sugeriu que conversasse comigo, no que andou muito bem, dada a minha maior experiência no trato dos temas doutrinários. Contudo, nem eu sou Kardec nem o guia de nossa demolida casa espírita é São Luís. Sendo assim, é preciso que tenhamos muito mais cuidado com os textos que nos são apresentados. Nem precisava dizer-lhe que você tem de ler as obras básicas e de freqüentar as aulas de desenvolvimento mediúnico, em algum centro que apresente trabalhos de categoria, o que não é muito comum, apesar de serem encontradiças muitas peças produzidas em suas sessões, as quais a imprensa espírita mais miúda costuma divulgar. Por mim, eu reproduziria apenas as que tivessem o cunho de espíritos reconhecidamente elevados, através de médiuns de nomeada. Em todo o caso, sempre se há de objetar que, se não se dá oportunidade aos novos, estes nunca adquirirão experiência. Por seguir este parecer é que as melhores redações que apareciam lá no centro eu copiava e exibia no quadro de avisos da entrada. Nunca, porém, me louvei apenas na minha opinião, sempre ouvindo, pelo menos, mais três ou quatro companheiros. Caso um só colocasse alguma dúvida, deixávamos o escrito de lado para avaliação conjunta. Devo dizer que quase sempre aquele que levantava a lebre conseguia demonstrar que tinha razão. Se você me permitir, posso realizar a mesma via-crúcis com os seus trabalhos, lembrando-lhe que a nossa decisão não deve ser acatada por você pura e simplesmente, quer as aprovemos, quer as reprovemos. Se tivermos objeções, iremos apontá-las e você poderá submeter a nossa apreciação aos autores espirituais, que, com certeza, irão manifestar-se esclarecendo o ponto de vista deles ou o nosso.
— Quer dizer que podem ocorrer manifestações de cunho obsessivo, prejudicial a quem ler?
— Kardec diria que nem tudo que os viventes escrevem deve constituir a mais lídima expressão da verdade. Assim também ocorre com os que partiram, os quais, nem por estarem mais firmes em relação à vida após a morte, possuem a ciência infusa. Também eles precisam estudar, vivenciando os conhecimentos. Caso se atrevam a vir ensinar-nos alguma coisa, precisam fazê-lo em termos precisos, coerentes e honestos. Ora, conforme o assunto, é preciso que a gente estude com muito rigor essas comunicações. Você aceitaria, à primeira vista, desenvolvimentos a respeito de informática, de programação de sistemas e demais assuntos de sua área profissional? É o mesmo quando se trata de informações a respeito de qualquer ramo científico, como a física, a química, a biologia etc.
— E se eles ditarem recomendações individuais, direcionadas para esta ou aquela pessoa?
— Cerque-se você, em tal caso, de todos os cuidados, para não passar notícias falsas e descabidas. Evite retransmitir elogios ou censuras. Só aceite mensagens cuja autenticidade possa ser levantada e que contenham conselhos úteis aos destinatários. O seu discernimento norteará seu procedimento. Eu só tenho a dizer que tais comunicações isentariam o médium de responsabilidade, caso se dessem em reuniões e não isoladamente.
— E quando for o médium o destinatário, como estas primeiras que escrevi?
— Estas têm a clara motivação do aprendizado, conforme eles mesmos atestam. Mas pode ocorrer que o médium principiante sinta o assédio dos espíritos em horários diferentes dos estabelecidos pelos orientadores. Neste caso, a prudência recomenda que não se dê vazão aos impulsos, restringindo-se o médium a orar pelos espíritos que lhe solicitam a atenção, marcando com eles um encontro dentro do combinado com os protetores, que estarão atentos para sofrear as vibrações que poderiam ser deletérias para o perispírito ou para a própria vida do médium.
— Quer dizer que a vida do médium corre algum perigo?
— Não diretamente, mas indiretamente, através de mentiras e falsidades que levariam o coitado a proceder em prejuízo de si mesmo ou de seus familiares ou amigos.
— E se quiserem ditar um romance ou obra de ficção?
— Os cuidados são sempre os mesmos, entrando na parada os editores e suas preocupações financeiras. Mas, acredite, não é para já que você vai receber um texto de tanta complexidade.
— Como deverei eu proceder de imediato?
— Quantos romances psicografados você já leu?
— Nenhum.
— Então, trate de ler alguns, variando de médiuns e cotejando uns com os outros. Você verá que existem os populares e os literários. Estabeleça um padrão desde logo, exercendo seu direito à crítica de tudo quanto você considere inferior e enlevando-se com os textos superiores. Não se esqueça de que o médium é uma espécie de instrumento: quanto mais afinado, melhor expressará a melodia do compositor. Estude, estude, estude, é o que lhe posso dizer, imitando o célebre conselho dado a Francisco Cândido Xavier por seu guia Emmanuel a respeito das três regras básicas do trabalho mediúnico: disciplina, disciplina, disciplina. Em suma, isso há de levar algumas décadas.
Quando Adolfo ia agradecer o interesse do amigo, foram chamados para receber os que chegavam, resumindo-se o reconhecimento daquele em um tácito aperto de mão.
Estavam subindo Francisco e seus convidados. Assim, foi com imensa alegria que Adolfo recebeu a primeira pessoa que saiu do elevador, o Doutor Anselmo, o velho materialista. Em seguida, apareceu a figura simpática do Padre Tibúrcio, o que preocupou a todos que aguardavam por eles no vestíbulo. Logo após, surgiu Anita, a mais velha das irmãs consangüíneas de Adolfo. De braços dados, vieram Francisco e esposa, sorridentes, como se estivessem preparados para uma festa.
Imediatamente, foram os introduzidos na sala, enquanto as mulheres se dirigiram à cozinha.
Pensava Adolfo que a situação era de constrangimento, mas Reinaldo se pôs à vontade, sentando-se junto ao médico e ao pároco, dando início às explicações de como seria realizada a reunião, distribuindo os exemplares de O Livro dos Espíritos que havia trazido a pedido de Francisco.
Enquanto os três se entendiam, Francisco fez uma surpresa ao irmão, acionando o aparelho de som por controle remoto, espalhando pelo ambiente uma suave peça de Vivaldi. Também por controle remoto, alterou a luminosidade do ambiente, mostrando como se fazia para intensificar ou diminuir a luz e o som.
— Aposto que você nem percebeu estes recursos.
— Se você não tivesse levado para casa os aparelhos, eu teria descoberto facilmente, porque percebi que existia essa possibilidade. Aliás, bem que eu os procurei, temendo que tivessem sido extraviados na azáfama das instalações.
— Confesse que você não imaginava quem eu traria como convidados.
— Nem que eu tivesse uma bola de cristal. Quando você falou em pessoas que manifestaram vontade de comparecer, eu eliminei os materialistas e os sacerdotes.
— Cá entre nós, fiquei sabendo que tanto um quanto o outro já leram todas as obras de Kardec.
— O que eles vieram fazer aqui?
— Na verdade, eu não sei, mas desconfio que pretendem ouvir as razões que têm os espíritas para aceitar o que o Codificador escreveu.
Teriam avançado no tema, não fossem avisados pelo interfone que estavam subindo outras pessoas.
De novo, Adolfo se postou à porta, agora imaginando quem poderia ser.
O primeiro a sair foi Vivinho, que se afastou, abrindo caminho para as demais pessoas. Então, chegaram Olívia, amparando Regina, e Arlete.
Naquele mesmo instante, Verônica deu o ar da graça, passando na frente do marido, indo diretamente cumprimentar os que chegavam, sendo apresentada às duas senhoras que não conhecia.
Vivinho foi quem primeiro cumprimentou a anfitriã, beijando-lhe as faces e observando:
— Eu soube que vocês estiveram na clínica hoje, iniciando os exercícios supervisionados. Gostaram? Não estão sentindo o esforço?
Verônica, indicando o marido, como a designá-lo para responder, abraçou Arlete e levou-a para dentro, com as outras duas, mal permitindo que trocassem uma palavrinha com Adolfo, que respondia a Vivinho:
— Eu não gostei muito de começar tão levemente. Fiquei muito mais cansado com os exames do que com os exercícios. Mas o roteiro que nos forneceram promete uma progressão rápida. O de que eu gostei mesmo foi de ficar sob o olho atento do treinador. Mas vamos entrando que, como você mesmo disse, agora é hora da mens sana, que o corpus está sano e dolorido.
Ao ver o sacerdote, Vivinho assumiu uma postura mais para Clóvis: deixou os trejeitos que o efeminavam e impostou a voz num timbre mais grave:
— Muito prazer em tê-lo conosco, meu bom padre Tibúrcio. O senhor era a última pessoa que eu esperava encontrar aqui.
— Não se acanhe, meu estimado amigo Vivinho. Há quanto tempo não nos encontramos! Há vários anos, desde a missa de sétimo dia do nosso Eurico, a quem, uma semana antes, eu fora ministrar os últimos sacramentos.
O Doutor Anselmo, apertando a mão que lhe estendia o recém-chegado, observou:
— O pobre moço vitimado pela AIDS. Lembro-me bem dele.
Adolfo ia de surpresa em surpresa, desejoso de montar aquele quebra-cabeças, mas Reinaldo apontou para o relógio no meio da parede do fundo, indicando que estava na hora de se iniciar o estudo da noite.
Sentaram-se todos em torno da mesa sobre a qual se achavam duas garrafas de água mineral e copos descartáveis de plástico. Cada qual portava um exemplar da obra a ser estudada e todos prestaram atenção nas orientações iniciais de Reinaldo:
— Em primeiro lugar, devemos agradecer à família Oliveira por nos permitir que prossigamos nossos estudos de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, já que a tempestade derrubou o nosso pobre prédio. Para quem não ficou sabendo, devo dizer que o nosso amigo Padre Tibúrcio nos ofereceu a casa paroquial como refúgio. Não foi por orgulho que não aceitamos, mas para impedir que os fiéis católicos pudessem colocar o nosso irmão sacerdote para escanteio. Na verdade, eu estou referindo-me ao fato, para lembrar que a presença dele nesta reunião deve ser um segredo que não pode sair desta sala. Dia virá, se Deus quiser, que ninguém será malvisto ou malquerido por freqüentar quaisquer sessões de cunho espírita. Isto posto, quero citar um princípio de nosso centro segundo o qual cada grupo de estudiosos não deve ultrapassar o número de oito participantes, mais o coordenador. Aqui estamos com dezoito pessoas, portanto, com quantidade suficiente para dois grupos. Vocês podem estar estranhando esta deliberação, mas existe um direito inalienável de cada um que os grupos grandes postergam, qual seja, o de que todos devem ter um tempo razoável para expor seus pontos de vista. Considerando que essa duração seja de dez minutos, teremos hoje que reservar cerca de cento e oitenta minutos, ou seja, três horas, sem considerarmos o tempo destinado para a abertura, para os avisos de praxe, para a leitura do texto a ser estudado e para o encerramento. Ora, começando às oito horas, iremos terminar, no mínimo, às onze, o que é muito tarde para muitos que têm de levantar cedo no dia seguinte, apesar de ser sábado. Eu sei que muitos aqui gostariam de não abrir a boca, louvando-se no aprendizado que sentem adquirir através da manifestação dos demais. Mas nós não estaremos, de fato, avaliando o nível ou o grau do conhecimento de todos, ainda mais porque pode ocorrer de alguém estar preocupado com problemas particulares, o que obsta, evidentemente, que sua atenção se faça integral em relação ao tema em pauta. Também, por outro lado, existe a natural perturbação que causaríamos ao casal que nos agasalha, abrindo mais uma sessão da qual eles estariam automaticamente dispensados, a não ser que um queira pertencer a um grupo e outra...
Verônica levantou a mão, solicitando a palavra:
— Creio falar por Adolfo. Para nós, não existe empecilho algum em abrirmos a nossa porta duas vezes ou mais por semana. Raciocinando de modo bem burocrático, basta que Francisco ou Eduardo optem por receberem os companheiros no dia em que estaremos dispensados e tudo se ajeita perfeitamente.
Francisco ia gracejar, dizendo que estava sendo rejeitado, mas calou-se bem a tempo de não causar um tumulto que atrasaria ainda mais a reunião. Decidiu, então, fazer um sinal de aprovação, o mesmo de Eduardo.
Reinaldo retomou a palavra:
— Sendo assim, eu proponho que o grupo antigo permaneça o mesmo, com o acréscimo de Verônica e com a saída de Arlete que, trazendo o irmão, passaria para a outra turma. Todos de acordo, iremos para o assunto seguinte.
Claro está que Verônica ficou bem mais sossegada com a sugestão, ainda mais quando Arlete se manifestou favoravelmente à mudança. Os demais quiseram esboçar uma reação, mas Reinaldo acrescentou:
— Talvez possa parecer que a equipe nova esteja mais fraca, dado que são pessoas menos calejadas nos temas espíritas. Mas vocês podem ter a certeza de que quase todos já leram O Livro dos Espíritos e outros da codificação. Levantem a mão os que não leram.
Apenas Dona Isabel ergueu o braço, aliás, timidamente.
Reinaldo ajeitou as coisas como pôde:
— Sendo a única nesta circunstância, devo solicitar a Francisco e esposa que envidem esforços para acompanharem a leitura da senhora, com o fito de pô-la no mesmo nível dos demais. Ninguém mais ficou sem ler? Você, minha amiguinha, Anita, já leu?
— Eu li e estudei, mas acho que irei ganhar muito com a convivência deste pessoal experiente.
— Ótimo, então você irá ajudar os demais. Resta-me, agora, fornecer o esquema geral da reunião, esquema que é por demais simples: abertura com temas particulares de interesse de todos.; prece pelo orientador ou por alguém por ele designado, conforme a maior ou menor desenvoltura das pessoas, respeitando-se sempre aqueles que se inibem nesse momento de concentração e meditação.; leitura do trecho determinado anteriormente, o que fará com que os que desejarem preparar a lição saibam onde estão.; participação de cada um mediante perguntas do orientador da sessão especificamente relacionadas ao tema.; respostas dos argüidos e debates abertos a todos os presentes. Embora seja de todo recomendável que todos expressem seus pensamentos espontaneamente, cabe ao coordenador dos trabalhos estar atento para que todos exponham seus pensamentos. Na hora determinada, ou seja, às nove e quarenta, mais ou menos, interrompemos o estudo e encerramos a reunião, através de outra prece.
Adolfo sabia qual iria ser a resposta do amigo, mas perguntou assim mesmo:
— Se, dentre os presentes, houver um médium, deve ele permitir que algum espírito se comunique?
Reinaldo sorriu, respondendo com muita afabilidade:
— Sem dúvida, desde que o faça no âmbito da mente do médium, para que este reproduza as idéias que lhe estejam sendo passadas como se fossem dele mesmo. Jamais deve interromper os companheiros, afirmando que está recebendo a comunicação de um amigo da espiritualidade. Isso, no mínimo, retira bastante da expansibilidade dos que desejariam demonstrar raciocínios mais terra-a-terra. Mais alguma questão?
Diante do silêncio geral, Reinaldo perguntou:
— Qual o passo que devemos dar agora? Vamos ver quem estava atento às explicações.
Eduardo se antecipou aos demais:
— Agora é hora de tratarmos dos temas de interesse geral. Por exemplo, em que pé anda a reconstrução do prédio demolido?
Reinaldo preocupou-se com a pergunta que ensejaria um desenvolvimento muito extenso. Então, abreviou o mais que pôde:
— O dono do terreno ofereceu-nos um negócio de ocasião, mas nós precisaremos arrecadar, numa campanha específica, a quantia correspondente. O povo está empenhado em fazer doações pessoais e não institucionais, já que a miséria grassa. Não podemos contar com o tesouro público que se acha altamente comprometido com as obras de cunho social. É quase um beco sem saída. Precisaríamos de um mecenas, ou seja, alguém muito rico que nos desse o dinheiro, o terreno ou um prédio já pronto. Isto significa que estamos de mãos atadas, conseguindo realizar algumas atividades pela benevolência de algumas pessoas e entidades que nos emprestam salas para os estudos e sessões mediúnicas, ou instalações para atendermos os amigos por demais necessitados, quase sempre encaminhando-os para outras instituições oficiais ou particulares. Nesse setor, é bom que se diga, o que mais está fazendo falta ao povo é educação, porquanto há muita gente que sequer sabe ler ou elaborar um pensamento abstrato, para se situar no pandemônio em que virou este nosso mundo.
Enquanto Reinaldo falava, os presentes correram uma lista em que assinalaram algo. O papel deu a volta à mesa e tornou às mãos de Arlete, que logo se manifestou:
— Querido amigo mentor, devo dizer-lhe que dezessete das dezoito pessoas escolheram a sexta-feira como dia mais adequado para estas reuniões. Como vamos resolver o impasse?
— Se pudermos, respondeu Reinaldo, reunir um grupo aqui e outro na cozinha, não se irá obstar a que assim se faça. Resta Verônica opinar.
Desta feita, foi Adolfo quem respondeu:
— Eu sei que minha esposa é cordata, preferindo mesmo que, em vez de dois dias, a gente reúna todas as pessoas num só horário. Haverá mais gente para preparar o lanchinho.
Foi a vez de D. Isabel intervir:
— Por falar em lanche, eu acho que o café deve ser servido uma hora após o início. Vai ser um recreio necessário para todos se confraternizarem.
Arlete aprovou entusiasmada:
— Nada como a experiência para nos ensinar as coisas certas. Eu também acho que se deva fazer um intervalo, pelo menos para animar os mais cansados.
Reinaldo aproveitou a interrupção para pensar a respeito, saindo-se com esta:
— Pois muito bem. Eu aplaudo a resolução e, uma vez que estaremos todos juntos, vou ficar com a turma da cozinha e Arlete fica com a turma da sala. Neste caso, não faz mal separar os irmãos.
Bem que Verônica imaginou que o grupo dela poderia ir para a cozinha, mas não abriu o bico, temerosa de revelar o que quer que fosse de ciúme ou sentimento de inferioridade.
Dario fez menção de falar, mas recolheu o gesto, que não deixou de ser notado por Reinaldo:
— Vamos ouvir o nosso Dario. Eu acho que ele tem alguns esclarecimentos quanto aos delinqüentes detidos.
Dario levantou-se mas logo foi intimado a sentar-se. Que falasse sem constrangimento.
— Eu não queria falar dos assassinos, porque estão presos e confessaram o crime. Meus filhos acompanharam os depoimentos e se condoeram com os bandidos, dizendo que houve mais um acidente que a vontade deliberada de matar minha Miguelita. Disseram que ela foi empurrada numa discussão com uma das mulheres, tropeçou e bateu com a cabeça na quina da mesa. Tentaram acudir e, à vista de não terem conseguido nada, quiseram fingir que ela se havia suicidado. Mas eles não me responderam direito o motivo de terem arranjado um caminhão e carregado tudo embora, vendendo o produto do roubo. Eu não estou engolindo esta de que não houve premeditação. Enfim, que o juiz resolva da melhor maneira. O que espero é que eles não pratiquem mais crime nenhum. Mas o que eu quero mesmo é agradecer de público as doações que esta família me fez. Foi tanta coisa que nem coube tudo lá em casa, sobrando para os vizinhos que perderam seus móveis. Muito obrigado, de coração.
Seja porque ficara Dario prevenido com o assunto da morte da esposa, seja porque sua idade lhe favorecia um domínio maior das emoções, a verdade é que ele não falou sensibilizado, demonstrando sangue-frio nos limites da conveniência.
Foi Francisco quem redargüiu:
— Meu caro, não agradeça a nós, uma vez que foi um conjunto de circunstâncias que nos favoreceu a doação, inclusive porque nós queríamos montar esta sala para justamente recebermos as instruções da obra de Kardec. Houve até uma ligeira malícia no que fizemos, pois adquirimos móveis e utensílios de qualidade bem superior, o que deixou Adolfo bem melhor acomodado, tanto que arrumou uma esposa.
Adolfo ergueu o braço, chamando a atenção para si:
— Quero anunciar que o nosso casamento vai ser no mês que vem, em data a ser confirmada. Todos serão convidados para uma recepção no salão de festas do prédio. Eu não deveria dizer isto aqui, na presença do Padre Tibúrcio, pois eu acho que ele vai querer realizar uma cerimônia religiosa. Aliás, minha mãe também. Vamos ter de pensar muito a respeito, uma vez que esses aparatos, esses cultos de caráter exterior foram abolidos dentro do movimento espírita.
Temeroso de que o tema fosse estender-se, Reinaldo obviou:
— Essa é uma questão de foro íntimo. Nós, espíritas, respeitamos sempre o livre-arbítrio das pessoas. Se se arrependerem, mais tarde sempre haverá tempo para que as coisas se acertem.
Citado, Padre Tibúrcio aproveitou a deixa para colocar a congregação a par de seus pensamentos íntimos:
— Vocês não sabem o quanto de verdade se contém nessas palavras do meu amigo Reinaldo. Quando uma pessoa se arrepende de qualquer ato, é que o tempo do arrependimento chegou. Aí vocês vão dizer que muitos caem em si bem depressa e outros mais lentamente. De acordo, mas só no aspecto da proximidade da ação à reação. O que acontece de fato é que o coração já estava pronto para tomar consciência dos atos falhos, mesmo antes de praticados, ou seja, algo já havia mudado no sentido da compreensão da virtude correspondente àquele. Por que errou, se estava prevenido? Errou porque não estava dotado de integral poder de análise e de crítica, vamos dizer deste modo, nos limites do procedimento prático. Assim que percebe, no entanto, que fez algo que a própria consciência não aprova, desencadeia o processo do arrependimento, do remorso, da revisão dos valores que admitia mas burlou, a ver até que ponto se encontram inseridas em sua moral ou em sua personalidade. Eis o que constantemente estou meditando, quando me preparo para penetrar no confessionário, a ouvir os pecados das pessoas. Ali é que se exerce inteiramente esse princípio. O bom é que quase sempre existe alguém calejado nos temas em apreço, para auxiliar a reflexão dos que vou chamar de penitentes. Isto posto, acredito que tenha ficado bem claro o motivo de eu estar aqui hoje, ou seja, a razão de estar afrontando, de certo modo, as diretrizes de minha religião, para compartilhar idéias com pessoas que as adotam. Arlete acaba de apresentar um trabalho universitário em que aprecia, nos espíritas, a filiação filosófica kardequista, concluindo que, apesar de as idéias terem sido divulgadas em meados do século dezenove, são as mais novas dentre as que correm entre todas as religiões. Foi justamente uma consideração paralela a essa que me trouxe a estes estudos, consideração levantada pelo amigo Anselmo, segundo a qual as ciências caminham à frente de todo o pensamento religioso, menos no que diz respeito aos cânones espíritas, os quais propugnam que o pensamento dos adeptos se sustente pelas descobertas dos cientistas. Parodiando Jesus, eis que as sementes se espalham por toda a parte, mas só vingam as que caem em terreno fértil. Por isso, peço ao Senhor que facilite a abertura das mentes e dos corações humanos, para que as palavras dele surtam efeito em todos, para benefício da humanidade. Tudo, portanto, é uma questão de consciência mais ou menos desperta. Se as consciências dos filhos de Dario estão aptas a compreender que os assassinos da mãe puderam arrepender-se, poderão perdoá-los, deixando à justiça dos homens e à justiça de Deus o encargo de condená-los segundo sua culpabilidade. É isso que dá alívio às pessoas, a par das orações em que pedem por mais luz e compreensão. Verônica e Adolfo não querem a bênção do sacramento do matrimônio, julgando que não seria esta mais que uma atividade puramente de cunho católico, com certeza lembrando-se de que uma parcela muito reduzida dos enlaces matrimoniais é que recebe o alvará dos sacerdotes. Se a Igreja que me ordenou quiser ser universal, não será através da censura aos casais que se formam sem sua aprovação que irá expressar a vontade divina. Quer dizer que estou liberando os meus amigos da cerimônia sob a tutela da Igreja? Não. Quer dizer que estou liberando-os para exercerem seu direito ao livre-arbítrio, como nos lembrou Reinaldo, dando-lhes a oportunidade de, em não aceitando a reunião diante do altar da religião que não trazem mais em seus corações, jamais se arrependerem de não tê-lo feito, ainda que lhes pese a opinião de pessoas de sua intimidade. Da minha parte, considerem-se eles casados, porque têm a minha mais terna admiração pelo amor que sentem um pelo outro. Se me permitirem, vou estender mais um pouco este momento de revelações, referindo-me à nossa irmãzinha aqui presente, Olívia, que envergou o hábito de freira até bem pouco tempo.
Ao ser citada, Olívia imediatamente indicou que desejava falar, ao que acedeu Tibúrcio, com a anuência de Reinaldo.
Disse ela:
— Não precisa, Padre Tibúrcio, ficar preocupado com o que eu penso a respeito de sua opinião. Eu sei que o senhor não compareceria a este recinto, se não estivesse a pique de repudiar seu antigo ideal religioso, cultivado tão ferozmente por uma cerrada propaganda institucional que invoca, inclusive, a palavra e a vontade de Deus. E ela o faz num momento ainda de muita imaturidade, pois os jovens seminaristas são induzidos a cumprir a meta de representarem Jesus, como discípulos e até como apóstolos. São eles os porta-vozes do Senhor. Ora, a imposição das idéias através de dogmas é que tem levado muitos jovens de visão a não se acertarem com os estatutos eclesiásticos, como também têm forçado muitos que acederam, em certa oportunidade, em abrir mão de sua fé em favor de novas convicções, estas fundamentadas em raciocínios lógicos. Devo dizer que não foi isto que me fez abandonar o hábito. Foi o amor que senti por um homem, o que me despertou para a frustração mais completa de toda a minha ânsia natural de ser mulher e mãe. De fato, concordo com que o senhor disse a respeito de a Igreja ser retrógrada, mas isto se analisarmos os seus estatutos. Se voltarmos a nossa vista para o que se passa no seio dos templos e no coração dos sacerdotes, veremos que existe um temor bastante acentuado de que a sua palavra, ou seja, a palavra que lhe disseram ser a de Deus, não esteja penetrando como deveria no coração das pessoas. Daqui as manifestações ruidosas, os padres que transformam sua missa em show...
Neste ponto, Reinaldo fez um sinal à oradora para que suspendesse a peroração, e observou:
— Vocês dois já gastaram no preâmbulo o tempo que lhes estava reservado para o tema da noite. Eu acho que foram muito elucidativos e agradaram aos companheiros presentes. Contudo, se não passarmos para o ponto seguinte de nosso roteiro, não cumpriremos o objetivo da reunião.
Ato contínuo, o coordenador dos trabalhos solicitou a Francisco que aumentasse um pouco mais o volume da peça de Vivaldi, que se ouvia bem baixinho, e determinou que Anselmo se preparasse para efetuar a leitura do próximo texto a ser estudado, bem como que efetuasse o primeiro comentário. Em seguida, perguntou a Dona Edna se queria realizar a prece de abertura, ouvindo dela a seguinte observação:
— Antigamente, eu me atrapalhava um pouco com essa responsabilidade, porque a gente fica sem saber direito o que dizer. Então, eu combinei com o França que a gente deve estar sempre com O Evangelho Segundo o Espiritismo, o qual contém todas as preces preparadas por Kardec para as mais diferentes situações. Eu acho que ninguém tem nada contra o fato de eu ler a prece...
Aguardou um instante que alguém se manifestasse mas, diante do silêncio de todos, começou:
— Em primeiro lugar, solicito ao espírito de Allan Kardec que aceite a nossa manifestação carinhosa de agradecimento por nos ter propiciado obras tão importantes para as nossas vidas. Pudesse ele estar presente e nos inspiraria a todos, com sua sabedoria, a própria verdade. Passo a ler: Nós rogamos ao Senhor Deus todo-poderoso que nos mande bons espíritos para nos assistir, que afaste os que são capazes de nos induzir ao erro e que nos forneça a luz necessária para distinguir a verdade da impostura. Afaste também os espíritos malévolos, encarnados ou desencarnados, que poderiam tentar produzir a desunião entre nós e afastar-nos da caridade e do amor do próximo. Caso alguns consigam introduzir-se aqui, faça que não encontrem acesso no coração de nenhum de nós. Bons espíritos que se dignam vir instruir-nos, façam que sejamos dóceis a seus conselhos.; afastem-nos de todo pensamento de egoísmo, de orgulho, de inveja e de ciúme.; inspirem-nos a indulgência e a benevolência para com nossos semelhantes presentes ou ausentes, amigos ou inimigos.; façam, enfim, que, pelos sentimentos de que seremos animados, nós reconheçamos sua salutar influência. Dêem aos médiuns que encarregarem de nos transmitir seus ensinamentos a consciência da santidade do mandato que lhes está sendo confiado e da gravidade do ato que irão cumprir, a fim de que tenham consigo o fervor e o recolhimento necessários. Se, na reunião, se achem pessoas que para aqui tenham sido atraídas por outros sentimentos que não o do bem, abram seus olhos para a luz e perdoem-nas, como nós as perdoamos, caso tenham vindo com intenções malévolas. Nós rogamos notadamente ao nosso guia espiritual, para nos assistir e velar sobre nós.
Quando terminou a oração, Edna ergueu o olhos e encontrou os das demais pessoas ainda abaixados, puro sinal de concentração. Percebeu, então, que talvez estivessem esperando que recitasse o pai-nosso ou que dissesse o graças-a-Deus da praxe. Não teve dúvida ao acrescentar:
— Assim seja. Graças a Deus!
Aí todos devolveram sua atenção a Reinaldo, que, com um gesto, solicitou a Francisco que parasse a música e, com outro, acionou a leitura de Anselmo. Este estava com o livro aberto mas, à vista de alguns ainda manterem os seus fechados, indicou o número da página, esperando com paciência que todos se aprestassem para acompanhar a leitura.
Leu:
— 2. Que se deve entender por infinito? O que não tem começo nem fim.; o desconhecido.; tudo o que é desconhecido é infinito.
Ia o médico prosseguir a leitura, mas consultou Reinaldo, que o fez sustar o impulso. Achou, então, que deveria realizar uma observação preliminar:
— Eu acho que esta segunda questão se prende à primeira, que foi discutida na primeira reunião deste grupo. Para quem não se lembra dela, eu repito: 1. Que é Deus? Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas. Evidentemente, o autor da pergunta e os autores da resposta tinham em vista realizar uma nítida separação entre o que está na capacidade do ser humano compreender e o que está além de sua possibilidade de cognição. Quanto a mim, velho materialista, não ponho em dúvida o fato de que tudo o que é desconhecido é infinito, mas é preciso entender que se trata do desconhecido de caráter imaterial, uma vez que, por exemplo, desconhecer qual foi o resultado de uma partida de futebol de hoje à tarde constitui mera ignorância. É que, para os autores, quando se trata de Deus, a criatura não pode abranger com sua inteligência a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas, que é Deus, tendo em vista o sentido limitado da primeira e o aspecto absoluto e infinito da segunda. Antes que alguém me lembre, eu vou assinalar que nada do que se disse até este tópico altera o meu ponto de vista materialista da existência. Ao contrário, reforça-o tremendamente, porquanto os raciocínios a que nos levam as observações são o produto da mente humana ou de mentes superiores, se assim quiserem, adaptadas à nossa capacidade de assimilação de idéias abstratas. Por minha vez, apenas para provocá-los, eu posso dizer que os espíritos são sempre alguma coisa, conforme uma resposta dada a Kardec (leiam mais adiante), o que me faz ver neles o seu aspecto material ou semimaterial, se preferirem. De qualquer jeito, trata-se de uma outra esfera, com outra contextura energética (permitam-me a introdução de terminologia científica), mas sempre sob leis que a física daqui não consegue explicar, mas que a física de lá deve elucidar com facilidade. Finalmente, se me disserem que estou abrindo a minha mente para possibilidades que não sejam deste plano ou deste setor existencial, afirmando que eu não mais esteja defendendo idéias puramente materialistas, acusando-me de agnosticismo, eu os aviso que, pela resposta segundo a qual tudo o que é desconhecido é infinito, eu tenho o direito de concluir que seus autores também sejam agnósticos, isto é, seguem uma doutrina que ensina a existência de uma ordem de realidade incognoscível, segundo lemos no dicionário.
Os argumentos do médico pareceram irrefutáveis à maioria. Reinaldo procurou na roda quem poderia opor algo efetivo às observações aludidas e lhe pareceu que apenas a professora poderia fazê-lo. Por isso, chamou-a à liça:
— Doutora Arlete, a palavra é toda sua. Temos de aceitar o que acaba de afirmar o nosso cientista e materialista, perdão, agnóstico? O espiritismo não se afina mais com as teses espiritualistas?
Arlete entretinha-se com o texto seguinte, quando foi convocada para expor seus contra-argumentos. Por isso, não respondeu de pronto, mas imaginou uma circunvolução temática:
— Está claro que o espiritismo é espiritualista. Chegar a dizer que os espíritos exprimem idéias materialistas seria o mesmo que dizer que as nuvens que pairam no céu são formadas de rochedos ou de magma ígneo. Cada coisa no seu devido lugar. Mas, antes de fecundar a minha idéia, vamos ler o item seguinte. Prestem atenção. Kardec perguntou e os espíritos responderam: 3. Pode-se dizer que Deus é o infinito? Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, que é insuficiente para definir as coisas que estão acima de sua inteligência. Lendo-se a resposta do modo a que nos induziu o nosso emérito amigo Anselmo, parece-nos, à primeira vista, que se confirma a ilusão do desconhecido, do, como ele disse, incognoscível, já que as coisas estão acima da inteligência dos homens. Mas Kardec também não deve ter ficado muito satisfeito, tanto que acrescentou a seguinte observação. Leiam comigo: Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é uma abstração.; dizer que Deus é o infinito é tomar o atributo pela própria coisa, e definir uma coisa que não é conhecida através de uma coisa que não o é também. Nesta observação, Kardec acrescenta um conhecimento positivo do conceito de Deus, qual seja, o de suas perfeições infinitas. Sendo assim, ao caracterizarmos as perfeições absolutas, teremos delineado um conhecimento possível da Divindade. Eis como, em termos espíritas, podemos refutar os argumentos do nosso querido Anselmo, ou seja, assinalando que os espíritos não compareceram tão-somente para uma ou duas respostas, mas para milhares, tanto que compuseram, com o auxílio do Codificador, uma obra extensa, a principiar por esta que temos em mãos, fornecendo-nos conhecimentos numa área que só eles tinham como abranger, de um modo efetivo e não por meio da imaginação das pessoas. Sem querer estender-me além da minha quota de tempo, devo alertá-los, meus companheiros, de que apenas estas considerações escritas através da psicografia dos médiuns não pareceu aos espíritos suficiente, tanto que se apoiaram também em outros fenômenos bem mais tangíveis e convincentes: levitação, escrita direta, transporte de material e outros. Sempre que nos encontrarmos diante de uma obra escrita, tenderemos a considerar o quanto de participação teve o intermediário encarnado. Mas, se desconfiarmos de que estamos perante o resultado de uma exposição meramente imaginária, ainda que consideremos possível uma atuação anímica, ou seja, uma composição oriunda do espírito do próprio médium, sem que ele mesmo esteja consciente de que o trabalho que realiza é fruto de sua mente abstraída da vontade, dediquemo-nos a analisar as idéias, os conceitos, o cabedal de informações, buscando integrá-los em nosso conjunto arquetípico a que imprimimos o cunho da verdade ou que admitimos como realidade. Pergunto ao nosso ilustre doutor se gostaria de acrescentar algo de seu interesse. Em que pese sua sisudez e a lhanura de sua peroração, devo levantar o caso muito comum de que os materialistas em geral abusam das palavras e das idéias, porque, à vista de tudo se encerrar definitivamente com a morte, não dão valor transcendental às assertivas que eles mesmos elaboram, já que se perdem. Eis porque apresentam uma fé de muito maior convicção do que muita gente que se diz religiosa.
Haveria assunto para dezenas de reuniões a partir da provocação de Arlete, mas Anselmo refletiu e saiu-se de modo sucinto:
— Eu sou mais por enfiar a viola no saco e ir cantar em outra freguesia. Veja bem, caríssima doutora, por respeito ao grupo, eu não expenderia idéias puramente materiais. Fiz um comentário que considero pertinente, em função de uma questão respondida pelos espíritos. Sabia que o desenvolvimento do livro iria redundar em pleno esclarecimento sobre o ponto que levantei. O que eu gostaria é de abandonar o rótulo de materialista e para tanto é que estou com vocês. Vim para aprender e não para objetar. Tal como todos, espero levar comigo um cadinho de pensamentos que, com certeza, irão acrisolar-se num sistema filosófico, no mínimo, fundamentado na esperança da sobrevivência da alma. Alguém ainda irá acusar-me de ser agnóstico?
Isabel levantou o braço no mesmo instante em que Anselmo realizava a pergunta. Reinaldo estranhou a manifestação, perguntando-lhe:
— Dona Isabel, a senhora pretende acusar o doutor de agnosticismo?
— Não, meu filho, eu levantei o braço porque está na hora da merenda. Se querem saber, não existe pessoa mais generosa do que o nosso médico.; e o futuro dos bons está sempre garantido.
O grupo se dividiu quase a confirmar as duas turmas que prosseguiriam separadas. Como Arlete ficou com o irmão, era como se tivesse bandeado para o outro lado.
Havia uma lauta mesa de frios e doces, além de bebidas quentes e geladas.
O burburinho era contido, todos com medo de chamar a atenção dos moradores do prédio. Assim, sussurravam entre si, levantando os mais variados temas, quase todos em torno das idéias extraídas do texto de estudo.
Quando voltaram à sala, cerca de dez minutos depois, havia uma reivindicação ao coordenador, cuja amável porta-voz era Anita:
— Eu peço ao Senhor Reinaldo, sem ofendê-lo, para que reintegre a Doutora Arlete no nosso grupo, conforme exige o Doutor Anselmo e os demais membros, incentivados pelo Padre Tibúrcio. Eu também acho que os seus antigos pupilos vão ficar contentes em tê-lo por supervisor. De qualquer modo, estando reunidos tão perto, sempre haverá possibilidade de convocá-lo para esclarecimentos oportunos.
Teria Verônica, de algum modo, feito a sugestão da troca de orientadores? Vamos ficar sem saber. O fato é que lhe voltou a tranqüilidade, ainda mais porque a demonstração de poderio racional da professora a havia assustado. Mais tarde, ao confessar seus sentimentos ao marido, Adolfo iria rir dos temores da companheira, observando que, de fato, o brilho intelectual da professora fazia dela uma criatura de exceção.
A segunda parte constou da leitura de mais algumas questões, sem profundos comentários dos presentes, com certeza cansados de um dia estafante. Tratou-se de provar a existência de Deus e ninguém se dispôs a contradizer as várias colocações contidas na obra.
Houve um momento de tumulto emocional, quando Eduardo deixou no ar, em forma de pergunta, se as pessoas que praticam crimes acreditam na existência de Deus. Foi assim que explicou seu interesse:
— Como delegado de polícia, eu vi, não posso dizer que convivi, com muitos criminosos, assassinos e assaltantes impiedosos. Pois eu lhes afirmo que não eram poucos os que citavam Deus e diziam que seriam por ele julgados. Está escrito aí que todos os homens carregam consigo um sentimento intuitivo da existência de Deus. Por que, então, agem como se Deus não existisse? Isto sem citar a bandidagem dita de colarinho branco, que freqüenta os templos e igrejas regularmente.
Fez-se um longo silêncio, ninguém querendo arriscar uma opinião pessoal, todos aguardando que alguém se manifestasse citando algum texto espírita.
Clóvis solicitou discretamente a palavra e comentou:
— Evidentemente, tais pessoas necessitariam discutir seus pontos de vista com toda a franqueza, aceitando ouvir opiniões contrárias a seus estímulos de vida, aos seus ajustamentos às frustrações, porque sua crença em Deus está fundamentada na incondicionalidade do perdão. Nós lemos no Evangelho que Jesus curava e perdoava, pedindo para que o pecador não repetisse mais o seu erro. Jesus mesmo clamou ao Pai que perdoasse seus algozes, afirmando que não sabiam o que faziam. Ora, dedicar-se, como nós estamos fazendo aqui, a adquirir a consciência da verdade, para agir em consonância com os conhecimentos, está muito longe da pretensão de quem imerge na luta pela vida e põe nas mãos dos sacerdotes a responsabilidade por livrarem-nos da sobrecarga das culpas. Caso o espiritismo seja adicionado ao processo de educação das pessoas, elas poderão continuar errando, mas com muito mais dificuldade em encontrar pretextos, porque sua consciência estará muito mais alerta para os próprios fracassos morais. Se eu me atrevi a falar deste jeito, podem acreditar que é o resultado de muitos anos de contenção de meus instintos inferiores. Sendo assim, eu julgo oportuno que cada um de nós elabore uma simples revisão dos atos em desarmonia com os conselhos da própria consciência, não para caírem em depressão psicológica, mas para saberem que nós todos estamos em uma fase específica de crescimento espiritual, por melhor que ajamos perante cada desafio à nossa bondade e espírito de renúncia. Notem a complexidade dos raciocínios expressos pelos membros desta reunião e digam, franqueza-franquezinha, se todas as pessoas estão em condições de acompanhar tais pensamentos.



FECHANDO A PORTA

Se ficamos satisfeitos com a obra que estamos terminando de ditar? Claro que sim.; nem poderia ser diferente. É evidente que muito devemos à supervisão de nosso querido mentor, o Professor Armando, como ainda à atenção do médium. Muito obrigado a eles.
Quanto aos leitores, não podemos frustrar-lhes a expectativa do desenlace dos destinos das personagens, pois muitos problemas ficaram pendentes de suas realizações em coerência com suas personalidades.
Poderiam as tormentas naturais interferir de novo, causando problemas de caráter material, a obrigar cada um a dedicar-se mais profundamente ao auxílio dos amigos e da comunidade. Afinal de contas, as cidades castigadas pelas tempestades o são independentemente dos cuidados das administrações públicas e dos esforços das coletividades. E as doenças costumam atingir os que não se previnem.
Mas os nossos amigos vacinaram-se.
Passado um ano da reunião referida no último capítulo, ninguém sofreu perda alguma de grande importância. Ao contrário, o lar de Verônica e Adolfo acolheu um garotinho cheio de saúde, apesar do temor de que a criança pudesse apresentar defeitos congênitos.
Construiu-se um novo prédio para o centro de Reinaldo, de forma que as reuniões na residência de Adolfo se transferiram para a nova sede, sem a presença do Padre Tibúrcio, que, instado por seu confessor, renegou os estudos das obras de Kardec, mantendo-se fiel ao seu princípio de vida, preferindo continuar exercendo a caridade na paróquia, onde podia realizar muita coisa em favor dos pobres de bolso e de espírito. Deixou para as surpresas de além-túmulo o encontro definitivo com os postulados espíritas.
O Doutor Anselmo, ao contrário, sem ligar muito para as reuniões de cunho mediúnico, passou a freqüentar a casa espírita, dando assistência gratuita às famílias carentes. Contudo, sempre dava uma passadinha pela casa paroquial, esticando uns temas com o amigo sacerdote, sem compromisso com as convicções primitivas, aprofundando suas teses em proveito do equilíbrio psíquico de quem sabe que a prática do bem é a máxima maior do cristianismo, o axioma da salvação.
Quem se manteve fiel às reuniões das sextas-feiras foram os familiares dos donos do apartamento: os pais de Verônica e a mãe, o tio e os irmãos de Adolfo.
Clóvis e Arlete desligaram-se de tudo, ele porque ampliou os negócios, abrindo três filiais de seu spa.; ela porque assumiu o departamento universitário, enchendo-se de responsabilidade. Ambos prometeram seguir procedendo em consonância com os ideais de Kardec, tornando cada vez mais esporádicas as suas visitas aos amigos, principalmente depois que Verônica, sabendo-se grávida, moderou bastante o regime e os exercícios físicos.
Claro está que, após o parto, o corpo da moça ainda se mantinha dez quilos acima de seu peso ideal. Mas quem iria importar-se com isso, tendo o Júnior para lhes dar todas as alegrias do mundo?
Quem partiu para o além foi Dario, não tanto pela ausência de sua Miguelita, mas porque não encontrou mais razão para viver, ainda que participasse ativamente de muitas realizações no centro espírita. Reinaldo sabia de sua intensa depressão e lhe dava muitas tarefas para cumprir. Cumpria-as ele com o empenho de quem presta um favor cujo mérito reconhece, mas sem a alegria de quem vê no que faz o próprio objetivo da vida.
No etéreo, contudo, pôde reavaliar sua fraqueza, cumprindo um extenso rol de atribuições na ajuda que passou a prestar à esposa, que se achava encarregada de analisar os sentimentos próprios e alheios relativos à sensação de frustração existencial, correlacionado-os com as normas superiores da divina justiça.
Segundo Laura, em conversa com o sogro, eles iriam ter de errar por muito tempo até se convencerem de que a Providência lhes estava suprindo a falta de segurança com um trabalho de edificação pessoal.
A uma pergunta de Oliveira, Laura explicou:
— Eles estão dando tempo ao tempo dos encarnados, até que seus desafetos cheguem de volta da Terra. Ainda estão crentes de que irão ensinar a eles o melhor procedimento em conformidade com o direito à vida. Com certeza se surpreenderão com o fato de que todas as suas vibrações serão ignoradas inteiramente pelos recém-chegados, caso estes não mudem sua forma de encarar a existência. Terão a sensação do tempo perdido e ficarão desarvorados, achando-se ainda mais ao desamparo dos guias e protetores.
Benito, que prestava atenção às reações do pai, acrescentou:
— Foi isso, mais ou menos, o que ocorreu ao espírito de Eurico, quando viu rejeitada sua pretensão de ingressar na família de Verônica. Pediu, inclusive, para volver ao plano material com algum aleijão concernente aos defeitos de sua atuação terrena anterior, tanto que provocou certo mal-estar na esposa de Adolfo, que jamais o esqueceu em suas orações. Agora, ele fica a lamentar a pressão que tem sofrido dos seres a quem prejudicou, inadvertidamente. Deixe-me explicar melhor. Quando não se adquire completa consciência dos deveres, apesar do perdão de todos, sempre sobra a necessidade de se conhecerem os mecanismos da reconstrução espiritual. Crescer não é apenas instruir-se quanto à realidade tangível.; é também e principalmente entender as fraquezas pessoais, agindo em função de saná-las, o que incide, necessariamente, no trabalho em prol da evolução dos demais. Bem sei que meu pai está achando que minhas palavras talvez sejam pesadas e desrespeitosas.; creia, porém, que meu intento visa a dar-lhe elementos com que refletir para superar os problemas que o senhor ainda conserva em forma de preocupação. No momento em que se der conta de que está apto a pensar por si mesmo relativamente ao desempenho dos sofredores e infelizes, deixará de ser um deles.
Quando Adolfo pensou em ampliar a pesquisa dentro do movimento espírita, recebeu diversas ofertas de trabalho em seu campo específico de programador de sistemas, abandonando o projeto, ou melhor, referindo-o a diversas a federações espíritas através de contatos via e-mails, as quais nem sequer acusaram o recebimento da correspondência. Tal como Arlete e Vivinho, deixou a iniciativa para mais tarde, para após o término do curso para médiuns, no centro do amigo Reinaldo.
Também o volume das transmissões mediúnicas em casa diminuiu bastante, tendo em vista o fato de que o tempo disponível aplicava ele com gosto à leitura das obras fundamentais da doutrina, conforme recomendação dos próprios amigos da espiritualidade confirmada pelos diversos instrutores do curso. De resto, sua atividade sofria muito com o apelo constante da vida de casado, demonstrando Verônica, pelo menos durante a gravidez, que dependia muito de sua atenção, até mesmo para as traduções, ficando ele encarregado dos contatos com os editores por meio da Internet.
Às vezes, o casal revivia os momentos da suprema felicidade da cerimônia do casamento através dos diversos vídeos e álbuns de fotografias. Faltou o Padre Tibúrcio para a bênção religiosa, mas compareceu em roupas civis para cumprimentar os nubentes, rápida aparição que se perenizava nos registros das fitas e das fotos.
Argüido pelo irmão por que não cederam à pressão dos familiares católicos, Adolfo esclareceu:
— Meu caro, os padres estão, cada vez mais, prendendo os fiéis pela palavra. O que ocorria quando me casei com Laura é que o aspecto social do sacramento preponderava. Hoje, as convicções são exigidas e as orações constituem verdadeiros atos de contrição, no sentido de jungir as pessoas aos dogmas. Seríamos nós maus espíritas e maus católicos, se concordássemos em afirmar uma fé que não professamos.
— E quanto ao batizado de meu sobrinho?
— A própria Igreja está tendendo a tornar esse sacramento uma espécie de propósito pessoal ao nível dos votos que os sacerdotes tomam. Isto significa que o Júnior é quem irá decidir, por livre iniciativa, quando tiver noção das coisas, se vai receber não só esse como também os outros sacramentos. Quem sabe ele não irá tornar-se budista?
Dois dias depois, em nova conversa com o irmão, Adolfo avançou um pouco mais em suas idéias diferenciadas:
— Sabe de uma coisa, Chiquinho.; eu estive pensando a respeito da formação moral das pessoas com base nos ensinos do Cristo e cheguei à conclusão de que, se quisermos servir à humanidade com o interesse de progredir espiritualmente, não só temos de realizar o mais possível em favor do conforto e do bem-estar material e espiritual, como ainda temos de sacrificar muitos direitos que a legislação consigna em favor dos mais fortes, dos mais ricos, dos mais inteligentes e dos mais aptos a ocupar cargos de projeção.
— Diga o que o vem preocupando.
— Eu possuo, como você sabe, um copiador de CD-ROM. Mas me vejo impedido de utilizar-me dele muitas vezes, porque os produtos estão resguardados pela lei dos direitos autorais. Muitos dos meus programas estão sob a proteção dessa mesma legislação, em nome das firmas que os fabricam e vendem. Com isso, eu ganho algum dinheiro e eles muito mais. Por outro lado, tenho colocado outros programas à disposição na Internet, para quem estiver interessado. Sei que muita gente procede como eu. Não está na hora de se mudar essa lei para se dar oportunidade a que a sociedade em geral possa usufruir os frutos que os bem dotados são capazes de produzir? Pense nisto.
— Você está com idéias socialistas, comunistas. O que você diz fere de morte o capitalismo.
— Não terá sido por isso que crucificaram Jesus?
— Mas os países comunistas foram à bancarrota.
— E a grande maioria dos governos se vê às voltas com o crime organizado, cujas leis...
— Não deixe o Tio Eduardo saber dessas suas idéias. Ele não vai poder concordar em que os bandidos tenham leis, uma vez que só o que a sociedade decide em caráter de liberdade, ouvindo o povo todo, é que deve prevalecer como valor para as nações.
Adolfo percebeu que não iria convencer o irmão, que ostentava um rico relógio de ouro maciço no pulso, passando a refletir a respeito de quantos espíritas existiriam no mundo com poder econômico para adquirir os bens de consumo mais cobiçados.
Naquela noite, após realizar extenso exame de consciência, orou uma prece em que pedia para si e para toda a humanidade por mais luz e compreensão dos problemas que impediam o progresso da grande massa.
Quando Verônica veio deitar-se, após acomodar o filho no berço, Adolfo expôs o que o havia preocupado tanto, perguntando o que a esposa achava de eles abrirem mão de todo o supérfluo em favor dos carentes. Verônica o abraçou carinhosamente e respondeu-lhe, simplesmente:
— Vamos fazer o possível para agir em consonância com as diretrizes de Kardec. O movimento espírita prega a caridade como condição indispensável para a salvação. Mas também existem as leis universais de conservação, que até os animais respeitam. Se nós nos destruirmos, quem protegerá o nosso filho?
— Você acha que estou enganado?
— Você está certo.; absolutamente certo. O que temos de fazer é que todas as pessoas pensem desse mesmo jeito e ajam sem egoísmo, sem orgulho e sem vaidade. Não queira, querido, salvar a humanidade. Façamos só o possível. Não se esqueça de que, numa sociedade em que as riquezas e os bens se distribuem de maneira perfeita, some a figura da caridade, mantendo-se apenas a da solidariedade. Vê se dorme, que amanhã o dia é cheio.
De fato, foi ao amanhecer do novo dia que Adolfo, pondo-se diante do computador, recebeu uma orientação da turma de espíritos que lhe presidia a mediunidade, determinando que se dispusesse com regularidade a escrever, porque iriam começar a ditar-lhe seu primeiro romance.
Naquela mensagem inicial, caracterizavam-lhe o modelo narrativo e o estilo, informando-o de que o roteiro da obra seria bastante original e solicitando-lhe que se abstivesse de desejar adivinhar a seqüência dos acontecimentos. Ficasse atento quanto ao vocabulário, o qual poderia atrapalhá-lo quanto a ser o léxico bastante rico e diversificado. Por isso, para que não se perturbasse durante o trabalho, iriam utilizar sinônimos sempre que o primeiro vocábulo e os seguintes não correspondessem exatamente ao sentido pretendido pelos autores. Sendo assim, quando da leitura e correção das imperfeições da cópia, poderia suprimir os termos em excesso, sem interferir no conteúdo.
A comunicação foi rápida, não se ensejando ao encarnado tempo para reflexão a respeito do texto que ia redigindo.
Ao final, pediam-lhe que imprimisse a cada dia o que lhe fosse sendo ditado e que mostrasse à esposa, ao irmão, ao tio ou a quem se dispusesse a acompanhar o andamento da obra, não tanto para que lhes sugerissem como prosseguir, mas para que lhes fornecessem indícios de que havia defeitos na recepção e no resultado do trabalho.
“Você precisa entender”, escreveu, “que as reações que observarmos nos primeiros leitores nos fornecerão pistas de como o povo em geral absorverá a obra, forçando-nos a reconhecer onde se encontram os nossos defeitos, para corrigi-los. Se Deus quiser, ainda alcançaremos efetuar juntos algo importante para a mente e o coração dos encarnados. Agradeça a Deus esta oportunidade, não a nós, que apenas usufruímos uma concessão dos mentores que nos guiam, para que cumpramos os desígnios do Senhor.”
Indaiatuba, de 19.10.99 a 03.03.00.
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