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Teses_Monologos-->O IRAQUE: a vida num país ocupado (2) -- 06/09/2003 - 04:04 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Segunda e última parte do artigo de Ulrich Ladurner sobre o Iraque, um país ocupado. Kirkuk, Kerbala, Najaf, Basra e, por fim, Bagdá, em cada uma das cidades o jornalista do Die Zeit descreve, com riqueza de detalhes, uma situação de desgoverno, que, hoje, algum tempo depois de publicado este artigo, cada vez mais se evidencia como custosa, perigosa e dolorosamente explosiva.

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por Ulrich Ladurner (Die Zeit, 22/2003)
trad.: ZPA
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Kirkuk

Aqui as coisas vão melhor. Era de se esperar, pois em Kirkuk os vencedores foram mais do que bem-vindos: "Vectory!" é o que se lê no alto da estátua queimada de Saddam Hussein. E mais: "Thank you Mister Bosh and Mister Blear!" Uma cordial acolhida, sem dúvida. Por isso mesmo, o exército americano sentiu-se em casa, sobretudo no campo de extração de petróleo Baba Gur Gur.

Nele, de tal modo se sentiram a vontade os soldados, que ninguém obtinha permissão para entrar, mesmo quem quisesse verificar se a indústria iraquiana do petróleo iria ser restaurada.

Os petrodólares, como se sabe, devem reconstruir o Iraque. Era essa, ao menos, a esperança que se alimentava antes da guerra. Mas agora corre a notícia de que os conglomerados americanos hesitam em investir no país. Para eles, a situação é demasiado instável. Até o fim do ano, os ocupantes gostariam de chegar a uma produção a três milhões de barris diários. O que, mais ou menos, corresponde ao nível do período anterior à guerra. Mas alcança para ressarcir os cerca de 400 bilhões de dólares americanos que o Iraque deve ao exterior. Para a reconstrução, não vai sobrar nada.

Não é que os soldados americanos expulsem os curiosos de Baba Gur Gur, senão que os enviam de uma ponta a outra da cidade, de um a outro posto militar, até o fim do dia, quando acabam retornando sem ter colhido informações.

O pessoal da Prefeitura de Kirkuk é mais cooperativo. Na subida da escadaria, quatro escrivaninhas. Atrás de cada uma delas, um homem de uniforme. Junto a cada escrivaninha, um grande cartaz. "Árabes", "Assírios", "Curdos" ou "Turcomenes", é o que neles se lê. Quem se candidata a um posto de trabalho na Prefeitura, pode se inscrever aqui, de acordo com o grupo étnico a que pertence. Importante, pois Kirkuk é uma cidade multi-étnica. Carece de justiça, para não explodir. Nos primeiros dias depois da libertação, havia o perigo de que essa explosão viesse a ocorrer.

Lutas entre curdos e árabes custaram 30 baixas, aproximadamente. Depois da queda da cidade, alguns curdos se dedicaram à expulsão de árabes. Com dinheiro e terras, ao longo das décadas passadas, Saddam atraíra esses árabes para Kirkuk. Era parte dos seus planos arabizar o norte. Na opinião de alguns curdos, portanto, tudo isso teria de ser revogado. Isso, até aqui, não foi logrado, porque o exército americano tornou a repor os árabes expulsos, e de posse de seus direitos. A paz foi reinstalada, e essa é uma pedra fundamental da reconstrução em Kirkuk – pois, sem a coexistência dos grupos étnicos, aqui não vai acontecer nada, e tampouco no restante do Iraque.

Na prefeitura, formado por representantes de três grupos da população, deve haver então um comitê que decide sobre as coisas do dia-a-dia da cidade. Mas quem oferece primeiramente informações nos corredores da prefeitura é o Capitão Cronkey. Quem governa a cidade? "Nós ajudamos os moradores a colocar as coisas em andamento!", ele responde. E se lhe perguntam: "Quer dizer que o senhor dirige os negócios da cidade?", ele diz: "Na verdade, sim...", mas deixa a frase inconclusa. Lamenta ter pronunciado a incorreta verdade e faz referência a um superior que poderia responder a essas questões "políticas". Esse seu superior, é claro, não se encontra em parte alguma da cidade.

E a verdade é que algo caminha adiante em Kirkuk. Diante dos portões do campo de petróleo Baba Gur Gur, milhares de iraquianos estão postados em filas. São empregados das companhias iraquianas de extração de petróleo, à espera do primeiro salário em três meses. São obrigados a atravessar um corredor de arame farpado. Ao final dessa rua entre farpas, dois jeeps e uma meia-dúzia de paraquedistas do exército americano. Num dos veículos, os soldados instalaram formidáveis aparelhos de som. Deles saem os acordes de um rock suave, fazendo concorrência ao Muezzin, que, muito ao longe, em alguma parte no interior da cidade, conclama à oração.

Por que aquela música? Quem dá a resposta é um soldado descomunal, de nome Kurtz: "Ontem começamos o pagamento. Foi o caos. As pessoas quase se mataram, sapateando umas por cima das outras. Foi por isso que trouxemos o arame farpado, e pusemos a música pra tocar".

Arame farpado até dá para entender, mas esse rock baba? "É isso aí", diz Kurtz, "ele amacia as pessoas. A música faz com que elas fiquem mais sossegadas, mais pacíficas". Kurtz faz um movimento com os ombros: "Nosso trabalho consiste essencialmente em learning by doing . Na verdade, é a primeira vez que administramos os negócios de um banco!"


KERBALA

Kerbala é uma cidade sagrada para os xiitas. Aqui estão as suntuosas mesquitas de Imam Hussein e seu irmão Abbas. Reluzem as cúpulas douradas, e os fiéis acorrem às centenas. Sobre a praça que une as duas mesquitas, arde um sol inclemente, e comerciantes-crianças oferecem refrigerantes aos peregrinos, sobretudo Pepsi-Cola.

O exército americano esforçou-se no sentido de poupar Kerbala das ações de guerra. Uma danificação do santuário de Hussein teria incitado os xiitas contra os invasores. Tal não se deu, e os xiitas saudaram a queda de Saddam, seu cruel perseguidor. Um importante pressuposto para a reconstrução. Num primeiro momento, no entanto, impera a desconfiança.

Na prefeitura de Kerbala, Akram Zubaidi ocupa uma cadeira, ele que se autodenomina prefeito. Zubaidi não foi eleito, porque não há eleições. Um comitê de notáveis determinou que ele deveria conduzir a administração da cidade. Primeiro, ele mostra um panfleto: "Por estes dias, um comboio com ajuda humanitária deveria aportar em Kerbala. Os motoristas do comboio, no entanto, venderam as mercadorias aos que operam no mercado negro. Com o dinheiro, eles compraram ovelhas. Os rebanhos foram levados para a Arábia Saudita e para o Kuwait. Isso é roubo. Ovelhas têm muito valor. Queremos que o mundo inteiro saiba que isto aconteceu. Nós exigimos que os EUA fizessem algo contra eles. Em vão!"

Soa mesquinho, mas aponta para um problema fundamental, hoje, no Iraque: as porosas fronteiras do país. O fechamento das fronteiras deveria ser uma etapa da reconstrução – mas, por ora, o Iraque continua sendo um país aberto, com tudo quanto é valioso a escorrer para fora sem impedimentos, como o sangue que vaza de um corpo ferido, dos tesouros do Museu Nacional de Bagdá às ovelhas de Kerbala.


NAJAF

Najaf é a cidade sagrada dos xiitas. Nela está enterrado Ali, o pai dos xiitas. Najaf é hoje uma espécie de república religiosa. Al Havza, o Seminário Teológico dos aiatolás, paga os funcionários municipais, do lixeiro ao policial de trânsito. Tudo funciona, até a legislação. Quem experimenta alguma insegurança a respeito se encontra agora diante da casa do aiatolá Mohammed al-Sistani, o chefe religioso da cidade. É às centenas que os xiitas para cá se dirigem, com suas carências e questões. As respostas do aiatolá al-Sistani estão afixadas numa coluna na frente da casa. Nela, por exemplo, se lê: “Caso, dos nossos mortos, encontremos tão-somente os ossos, existe a necessidade de proceder a uma lavagem do cadáver antes do sepultamento?"

Assunto de extrema urgência nos dias que correm. Perto da cidade de Hilla, encontrou-se uma vala comum com aproximadamente 15.000 cadáveres, todos xiitas, assassinados pelos sequazes de Saddam Hussein. Como guardar luto por eles de forma devida? Também isso faz parte da reconstrução de um país moralmente arrasado por décadas de ditadura. Al-Sistani oferece uma resposta clara, e que faz justiça ao Islamismo: "Eles não precisam lavar os ossos, a menos que, no peito, o corpo ainda permaneça intacto".

Os religiosos governam Najaf. São os interlocutores naturais para quem quer que deseje reconstruir o país. Os EUA preferem não ver dessa forma. Para os americanos, desde revolução no Irã em 1979, os xiitas são fantasmas assustadores, sendo evitados e isolados como se fossem portadores de uma moléstia infecciosa. Exatamente como se os xiitas pudessem produzir um novo Khomeini, capaz de humilhar a potência mundial.
A desconfiança é espantada para fora do coração. Mohammed al-Hakim é descendente da poderosa família dos al-Hakim. Ele se desdobra em multifacetadas explicações sobre o respeito que, agora, os xiitas esperam que haja no Iraque, e sobre a convivência entre etnias e religiões. Tudo razoável, sobretudo são palavras eivadas de autoconsciência: "Não há nenhuma segurança, até hoje não há. Os americanos não oferecem nenhuma segurança. Eles deveriam deixar o país!"


BASRA

É inútil falar sobre reconstrução com o médico Abdel Karim. Melhor falar sobre coisas simples: sobre analgésicos, sobre luvas de borracha, sobre agulhas para injeção. Tudo isso, aliás, está faltando no Teaching Hospital de Basra. E, como tudo isso está em falta, nele as pessoas morrem, quando isso poderia muito bem ser evitado. Por exemplo, Fauzi Saleh. Está ali deitado, só pele e osso, e, em resposta aos cumprimentos que lhe fazemos, esboça um sorriso com o rosto cansado. O médico Karim diz: "Vai morrer amanhã, talvez depois de amanhã". Fauzi tem 23 anos de idade, um estilhaço de bomba arrancou-lhe os intestinos durante a guerra. Seus três irmãos morreram no local. O pai, Maayuf, sobreviveu e está de pé ao lado do leito, esperando a morte do seu último filho. "Num hospital normal", diz o médico Karim, "ele sobreviveria. Mas este não é um hospital normal".

Quem quiser saber o porquê, vai esbarrar bem fundo nas dificuldades que cercam a reconstrução. A Cruz Vermelha Internacional, em Basra, informa ter mandado reparar pela sétima vez o duto principal de abastecimento de água dos hospitais. Pela oitava vez, ele foi destruído. As instalações, que custam milhares de dólares, vão tornar a ser encontradas num dos mercados de Basra – ao preço de alguns poucos dólares. Eis a conseqüência dos saques que ainda estão em curso. Muita gente fala em sabotagem, pois muita gente, aqui no Iraque, quer provar que a vida sob o comando dos ocupantes é pior do que sob Saddam Hussein. Em vez de reconstrução, tem lugar um desmonte.

"O abastecimento da cidade é, do ponto de vista técnico, fácil de comandar", diz o chefe da delegação do IKRK em Basra, Andres Kruisi, "o problema é o completo vácuo institucional". Em outras palavras: Não existe uma nação, não há polícia, nem há soldados, nem juízes e nem prisões. Não há uma base sobre a qual construir.


BAGDÁ

Eis o principal endereço, quando o assunto é a reconstrução. Aqui tem sede o Office of Reconstruction and Human Aid (Orha). Aqui se poderia conseguir a maior quantidade de informações. Um ônibus conduz ao terreno onde se localiza o palácio, cuja extensão é de vários quilômetros quadrados, até chegar ao quartel-general da organização. O ônibus pára diante de um portal. Depois de alguns minutos, sai lá de dentro um homem muito forte. É o Staff-Sergeant J. J. Johnson! É ele quem fala com a imprensa, mas, naquele momento, já ficaram para trás as palavras unívocas. "Orha?", ele repete a pergunta, "o senhor está correto. Mas eu não posso lhe dizer nada, porque nós não funcionamos direito". Em seguida, revela os números de uma série de pessoas, das quais ele próprio diz serem talvez, mas apenas talvez, capazes de saber alguma coisa.

"Mas o que faz afinal o Orha?"

"Pessoas desejosas de realizar algum empreendimento no Iraque", responde J. J. Johnson, "nós as pomos em contato com o governo! Nós, por assim dizer, juntamos essas pessoas".

"Mas não existe, na verdade, um governo?!"

"Existe, claro que existe…", ele responde, mas reflete ainda um momento, para completar: "bem, digamos que existe o esqueleto do que seria um governo!"


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