Teo bloqueou as comunicações com o jovem preceptor. Não entendia direito o influxo dos pensamentos que lhe assaltavam a mente a partir das informações da tela. Achou tudo muito simplificado perante a enxurrada das reflexões filosóficas que vinha desenvolvendo. Quis ensimesmar-se, o que deixou claro a Ari, por meio do recurso de voltar-se para o lado oposto. Não deu importância ao fato de que poderia ser mal interpretado:
— Se o amigo estiver interessado em meu progresso, vai permitir-me ser um pouco desaforado.
Intrigava-o a atitude de descortesia, como se estivesse sendo tão-só um menino mimado, mas não ligava, naquele instante, para o que pudessem pensar dele.
— Se meus pais estão tristes com o meu passamento, melhor dizendo, assassinato, por que é que não se empenham em dar continuidade ao trabalho que encetei? Não têm formação para tanto?! Contratassem pessoas especializadas. O que não poderia era jogar o empenho de toda uma vida de sacrifícios e de concessões.
Notou que faltava caracterizar as ações concernentes aos sacrifícios e às concessões. Precisava reavaliar os tópicos que deram ensejo ao progresso profissional e à construção do pequeno império empresarial.
Perturbava-o a palavra sacrifício. Tudo acontecera de maneira tão natural que os sucessos vieram como conseqüência da aplicação de idéias bem concatenadas, no aproveitamento das faculdades mentais e das habilidades motoras. A idéia de sacrifício parecia equivaler a esforço sobre-humano, quando tudo o que fizera fora realizado com prazer, no desencadear que toda iniciativa propiciava junto às pessoas que nele depositavam confiança.
Lembrou-se dos elevados ganhos financeiros mediante a apresentação das encomendas nos dias aprazados. Jamais falhara nem assumira compromisso que não estivesse em condição de saldar. Cresceu no campo de trabalho pela postura profissional, antes e acima de tudo.
— Isto no aspecto técnico. Terá sido o mesmo no moral?
As recordações se tornavam penosas. Os quadros mentais eram translúcidos, exatos, incorruptos. Entretanto, a imersão no plano das intenções lhe punha o coração apertado.
— Algo me diz que não fui totalmente leal no momento de me desligar dos primeiros patrões. A oferta de trabalho na empresa francesa era irrecusável. Se tivesse contrato com cláusulas restritivas, mesmo assim teria rescindido, pagando todas as multas, para me fixar na nova empresa. Do jeito que fiz, abandonando o serviço em andamento, obrigando a que mandassem outro figurinista para me substituir, talvez me tenha deixado endividado. É verdade que me encontrei depois com os antigos patrões, mas jamais recebi deles o tratamento que merecera anteriormente. Eis questão que devo apresentar como problema, pois não sou capaz de resolver toda a amplitude das implicações de ordem legal, no que concerne às leis evangélicas. Julgava-me no direito de subir na vida, mesmo que às custas de certos arranhões na epiderme da moralidade.
Sentia certo receio de enfarinhar-se no saco das concessões.
— Se não insistisse em bem vestir certas senhoras de extraordinária projeção social, apesar de não muito abonadas financeiramente, dedicando à idealização e à confecção dos modelos muito mais tempo e dinheiro do que o valor fixado monetariamente.; se não afogasse por esse meio a concorrência, que me chamou de ambicioso, na oportunidade, e de outros nomes mais pertinentes às ações praticadas.; se não aviltasse, inclusive, os preços cobrados à clientela estrangeira, diminuindo o pagamento do pessoal envolvido na mão-de-obra e deixando os fornecedores a ver navios, por tempo além do normal.; se não me tivesse valido, mais tarde, do renome e do poder econômico para, de certo modo, obrigá-los a voltar a trabalhar com minhas empresas.; se não me aferrasse à idéia de que deveria passar a imagem de pessoa culta, estudando os gestos pelo figurino dos homossexuais de inócua imersão no seio da sociedade feminina, afastando os maridos, deliberadamente, para melhor manipular a futilidade…
Percebeu que a lista iria forçosamente ter de crescer em itens, o que o fez temer pela segurança emocional. Desviou o padrão das observações íntimas:
— Não deveria estar agora refletindo sobre as lágrimas da família, ao invés de mergulhar tão fundo nos problemas concernentes ao desempenho profissional? Afinal de contas, nada se disse a respeito das lojas e das fábricas e estou empenhado apenas em saber por que razão meus pais se afastaram de mim, no que diz respeito ao que melhor possuía, ou seja, o discernimento profissional. Por que é que não me preocupo em investigar-lhes os sentimentos? Essas pessoas que me acolheram com tamanha felicidade e que me deram condições de me educar e que não me criticaram ferozmente, quando descobriram que dava vazão aos aspectos femininos da personalidade, essas pessoas devem estar presas à minha existência desde há muito mais tempo do que uma única encarnação. Como é que sou incapaz de me lembrar deles e de qualquer outro ser de meus relacionamentos de antes da última romagem terrena?
Notou que, de novo, tergiversava quanto ao mero aspecto sentimental.
— Se tivesse sido meu pai ou minha mãe os assassinados, como é que reagiria? Limitar-me-ia às lágrimas ou iria correr atrás dos bandidos?
A meditação destoava do sentido do perdão que fizera questão de incutir na mente desde os tempos em que se acostumara a pensar nos seqüestradores como pessoas desajustadas dentro do corpo da humanidade, por culpa das injunções políticas e econômicas, culturais e sociais, pessoas forçadas pelas circunstâncias adversas a conseguir recursos pelo modo mais rápido, embora muito mais arriscado.
— Eu não agi de maneira muito diferente, na verdade. A agilidade com que alcancei crescer financeiramente se deu às custas da ignorância, da riqueza, dos costumes e demais tópicos que interagem na sociedade capitalista. Se me tivesse dedicado, por exemplo, à confecção de roupas para pessoas pobres…
Sentiu que entrava no domínio das hipóteses. Não soube precisar o que aconteceria a partir da situação criada pela imaginação. Conhecera vários industriais do setor das roupas populares, muitos bem mais ricos do que ele, nem por isso, segundo o alcance de sua capacidade de observação moral, generosos ou humanitários. O lucro era a mola que unia a todos os empresários têxteis.
— Sinto-me profundamente injusto. Se começar a reconhecer os meus defeitos nos outros, vou concluir que o mundo só é ruim porque existem apenas Teos por aí. Onde se viu generalizar e concluir que a usura é regra para o procedimento dos meus pares?!
Agoniava-o a possibilidade de vir a ser perseguido por desafetos assediados pelas péssimas vibrações que emitia.
— Preciso melhorar o nível de compreensão das pessoas, no sentido de aceitar que todos estamos igualmente navegando pelas águas túrbidas desse mar de lama atual, dentro da sociedade humana, mais especificamente brasileira. Deste lado, olhando a vida com olhos evangelizados, fica-me muito fácil de perceber os erros e defeitos. Contudo, assalta-me o medo de vir a falir novamente, caso me veja encarnado em quejandas circunstâncias.
— Você, caro Teo, está coberto de razão. É preciso enfrentar a realidade com armas mais adequadas. É da depuração da vontade que depende a evolução dos seres.
Teotônio se voltou para encarar Ari. Sentira-lhe a presença reconfortadora, como se os fluidos que recebesse reunissem o magnetismo da fé, da esperança e da caridade. As palavras propugnavam atitude pacífica em relação aos sentimentos de crítica quanto aos outros e também quanto a si mesmo.
— Estive falando em voz alta?
— Nem precisava. O que mais deseja é que alguém lhe dê atenção. Chegou a temer que pessoas mal delineadas física e psiquicamente se tornassem antagonistas suas. Aceite o fato de ter um amigo a filtrar-lhe os anseios de melhoria.
— Por que meus pais foram mostrados chorando? E também minha irmã?
— Porque sentem a sua falta.
— Mas eu lhes espezinhei tanto a paciência, envergonhando-os constantemente…
— O amor está acima das falhas pessoais. Aliás, o que é que os pais fazem desde que os filhos nascem, senão estimulá-los a aprender o que lhes irá fazer bem no mundo?!
— Tenho a certeza de que os desiludi, de que os frustrei, de que os magoei…
— Pois se aprenderam a lição com os pais deles, devem ter reagido em consonância com as leis de Deus, não aquelas que as religiões consignam como sagradas, mas as que se encontram indelevelmente registradas na consciência de todos os seres. Não foi você mesmo que concluiu que Deus só pode ser amor? Pois atribua as lágrimas de seus pais ao amor que lhe têm e que os faz sentir-lhe a ausência, na lembrança dos melhores momentos de suas reuniões familiares.
— Quando vou poder saber quem sempre foram para mim?
— Quando for capaz de se dedicar, com esforço próprio, ao aprendizado das leis universais, lutando para fazer aos outros apenas o que gostaria que fizessem a você, na sábia, na definitiva lição do Cristo e de tantos outros benfeitores da Humanidade e da Espiritualidade.
