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cronicas-->JOGO DE ESPELHOS -- 09/12/2005 - 17:58 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Acordei estremunhado e olhei ao redor. Não reconheci o local. Estava deitado numa cama confortável e redonda com quatro espelhos ao redor, numerados de um a quatro. Junto de cada número, um botão fluorescente. Levantei-me curioso e carreguei no primeiro.
Olhando o espelho, comecei a ver desfilar imagens duma viagem que fiz há mais de quarenta anos.
Estávamos em 1963. Partida de Lisboa com destino a Copenhaga. Após a chegada, ida para o hotel e primeiro passeio pela cidade. Estava frio, mas suportável. Almoços à base de sanduíches (Smorrebrod). Havia lojas com mais de 200 espécies diferentes.
No dia seguinte fui ao «Bairro dos Marinheiros», repleto de cabarets e de casas de tatuagem. Longo passeio à beira de água e várias fotografias ao símbolo da cidade - a Sereia. Nevava ininterruptamente. Tudo estava vestido de branco. Num vai-e-vem constante, «roçadoras» automáticas limpavam as ruas para facilitar o trànsito automóvel.
Visita obrigatória ao parque de atracções Tivoli e ao Jardim Zoológico. Não havia que ter pena dos animais pois, também eles, tinham aquecimento. Para variar, almoço num restaurante italiano.
À força de pisar a neve, começou a doer-me um pé e custava-me a assentar o calcanhar no chão. Era tempo de voltar para casa.

Como por encanto, as imagens que estava a ver dão lugar à minha figura actual reflectida no espelho. Apoiei com o dedo indicador no segundo botão e vi-me transportado ao fim da década de 50 e ao serviço militar.
Apresentei-me no «Distrito de Recrutamento» quando completei 20 anos e, no ano seguinte, fui convocado para me apresentar na Escola Prática de Administração Militar. Fiquei sempre em Lisboa. A recruta foi feita no Batalhão de Caçadores 5, onde presenciei o regresso e acolhimento dos prisioneiros da ex-índia Portuguesa.
O começo da guerra em Angola viria a acabar com a calma que se vivia nos quartéis. Vários colegas foram mobilizados, principalmente para a Guiné e para o território angolano. Ao todo, cumpri cerca de três anos de serviço militar obrigatório.

As imagens desaparecem do ecrã e revejo-me agora, quase cinquenta anos volvidos. Que surpresas mais me reservam os espelhos? Dirigi-me para o terceiro botão e carreguei. Aparece-me a figura dum grande amigo que perdi há três anos.
Tínhamos praticado atletismo no Belenenses. Conheci-o precisamente na época em que representámos o clube nos Campeonatos Nacionais de Principiantes. Entretanto a vida decorreu... Eu casei e ele, tempos mais tarde, casou-se igualmente. Por mero acaso veio viver para a mesma rua.
O tempo passa depressa, muitas vezes sem darmos por tal. Reformou-se antes de mim e, porque a sua pensão não era famosa, procurou emprego e foi trabalhar numa agência de viagens. O seu trabalho era apreciado e ganhou mais alguns amigos.
Em Janeiro de 2002, urinou sangue e fez análises que lhe acusaram «valores PSA» superiores ao normal. Começou a sua peregrinação por médicos e hospitais. Certo dia em que eu ia a passar em frente da Igreja de Benfica, vejo-o acompanhado da filha a dirigir-se com um ar apressado, estranho e aflito, na direcção de um táxi. Dei uma corrida e perguntei-lhe o que se passava, oferecendo-me desde logo para o acompanhar ao hospital. Estava há muitas horas sem urinar, com incómodos e dores indescritíveis.
Voltou para casa mais aliviado e deixou de ir trabalhar. Passei a fazer-lhe companhia quase todos os dias, aos almoços, reatando um convívio antigo, mas de forma mais assídua.
Acabou por ser hospitalizado e operado, tendo tudo corrido aparentemente bem. Poucos dias depois, saiu. Eu não lhe tocava no assunto, mas estranhava que ele, ainda por cima hipocondríaco, nunca tivesse demonstrado receio ou preocupação pelo resultado da análise da colheita de «material operatório»...
Tempos mais tarde teve uma recaída e foi de novo hospitalizado. Entretanto, fez duas «ressonàncias magnéticas» e o resultado final da análise do «material pós-operatório» confirmou o que todos temíamos - a doença era maligna. Deveria começar em breve com os tratamentos adequados. Foi-se sentindo cada vez pior, quase paralisou e voltou para o hospital. Só o soube no dia seguinte e comecei a visitá-lo diariamente. Certo dia, avisou-me que «na segunda-feira» seguinte iria começar a ser tratado com Estróncio 89. Assim que voltei a casa consultei a Internet e confirmei que era um tratamento específico para problemas ósseos, decorrentes de doenças malignas da próstata.
Quando voltei, na tal segunda-feira, falava com dificuldade e estava a soro. Sentia-se triste e fatigado. Chorou uma ou duas vezes. À medida que ele piorava, eu ia informando-me junto das equipas de enfermagem e «torciam-me o nariz». A coisa estava negra. Sobre a doença, a vida e a morte, ouvi-o várias vezes chamar pelo meu nome, dizendo « - Vou morrer!» e, mais tarde, « - Nunca pensei acabar assim...».
Apesar de tudo ainda melhorou um pouco, mas uma tarde já o encontrei numa outra sala e sozinho. Tinha deixado a pequena enfermaria onde se encontrava.
No último dia, quando cheguei ao hospital, deparei com ele muito prostrado. Abriu os olhos e reconheceu-me. Quando voltou a fechar os olhos, toquei-lhe em vários pontos das pernas e dos pés e ele não reagiu. Dei-lhe água e ele puxou-me a mão para beber sofregamente. Fiquei mais um pouco e entrou a enfermeira-chefe que lhe perguntou se tinha dores. Ele confirmou que sim, no peito. A enfermeira deu-lhe uma injecção no braço esquerdo (morfina?) que o acalmou rapidamente. Quando voltou, poucos minutos mais tarde, colocou-lhe sondas no nariz e ele já não reagiu. Aproveitei para me retirar e perguntei à enfermeira qual o seu estado. Que estava bastante mal. O organismo não reagia à medicamentação, pouco a pouco ia perdendo as faculdades, estava paralisado da cintura para baixo, não urinava e tinha insuficiência renal.
(Mais tarde, a filha viria a encontrar, entre os seus papéis, o resultado de uma análise que fizera. A verdade estava ali, nua e crua: «metáteses já espalhadas nas ancas e na coluna...». Ele sabia que estava condenado e não o deixava transparecer.)
Ao cair de uma noite quente de Agosto, perdi um dos meus melhores amigos. Acabavam as suas preocupações: o futuro das filhas, a saúde da irmã, as pequenas doenças (escondendo talvez a maior), os remédios naturais, os cuidados alimentares, as leituras sobre doenças e sintomas... O seu Sporting, o Jardel, a política... Tudo se acabou. Em poucos segundos, tudo ficara resolvido para ele. Para mim, o Mundo parece que tinha encolhido.

Olho entristecido para as imagens que desaparecem do terceiro espelho. Agora só falta mais um. Ao lado do quarto botão, uma pequena etiqueta onde se pode ler: «Futuro». Ainda mais curioso e com uma ansiedade crescente, carreguei. Em vez de imagens, ouvi uma voz que me disse: «O Futuro não se pode ver. És tu que o tens de construir!»
O despertador tocou e eu acordei. Tudo tinha sido um sonho. Lembro-me vagamente de um jogo de espelhos...


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