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Artigos-->A imagem do mundo veiculada pela propaganda de veículos -- 21/04/2001 - 20:18 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O mito da marca. A indústria automobilística não vende automóveis, mas manifestações religiosas. Anotações sobre a imagem do mundo veiculada pela propaganda



Martin Mosebach (DIE ZEIT online, 11/03/2001)

Trad.: zé pedro antunes





Os novos prospectos da Mercedes Benz foram concebidos como pequenas obras de arte: belos automóveis sob luz estranha e bela. Mas onde fica o país dos automóveis? Das vítimas da fumaça e das flores sobre os ghats de Benares, da sujeira e do aglomerado de pessoas, nas fotografias selecionadas do material publicitário, não há vestígios, e a verdade é que as imagens, de uma forma indeterminada, fazem recordar as horas sagradas do amanhecer à margem do Gânges. Tão cedo terão os fotógrafos se levantado? Como os peregrinos indianos? Para eles, o ar se tingiu de tons salmão e pêssego. Muito céu nestas imagens. O solo é pobre e desértico, nele nenhuma árvore, nenhuma touceira cresce Uma cabana miserável é salpicada por um brilho celeste.

A terra, vazia de seres humanos. O observador, da escadaria da margem, à espera da aurora que liberta, dirige por assim dizer um olhar que atravessa o rio em direção à magia do outro lado. O que repousa lá adiante, além do cascalho seco e arenoso, à primeira vista quase não se deixa reconhecer, tão difusa e quase desmaterializada é a sua aparência. E eis que se detém em seu movimento um pesado corpo metálico, em cuja pele o rosa do sol se reflete, redondo, lavado como um sabonete, estranho como um objeto voador não-identificado, inteiramente desvinculado do meio-ambiente, caro e ameaçador, e destrona o sol que só agora se mostra, sua aparição suntuosa não possui mais senão a função de um refletor de palco, a produzir o seu efeito.

E ainda estamos em Benares, e tampouco, ao recolocar-se agora em movimento, o veículo além do Gânges produz qualquer ruído que seja, mas é possível pressentir a força descomunal em suas entranhas, como no corpo de uma serpente gigante que irresistivelmente se arrasta pela irregularidade do terreno. Quem fez, ou seria melhor se disséssemos, quem criou afinal esse objeto metálico da nostalgia, na atmosfera matutina, lá adiante, cheia de presságios?

Herzklopfen [bater do coração], assim se chama o dispendioso álbum de imagens da Mercedes, e é verdadeiramente com o coração batendo que se recebe a resposta que ela oferece à questão acima. É uma resposta insinuante, não se abre a todos os observadores como palavra, mas quer mergulhar em profundidade no travesseiro de penas do sentimento. Por sobre os dois lados do álbum, move-se u a mão gigantesca. Acha-se espalmada, mas distensa; os dedos um atrás do outro se escalonam, de modo peculiarmente conhecido, num gesto que aponta e que, ao mesmo tempo, fica pendurado no ar. É Deus, de sua nuvem, que, nas nuvens da Capela Sixtina, estende a mão que a esta se assemelha, para que, das pontas dos seus próprios dedos, possa fluir o espírito em direção a outra mão um pouco mais abaixo, a de Adão.

Há tempos já, através dos métodos da indústria automobilística alemã, ecoa uma argêntea sonoridade longínqua, atmosfera visionária mas inteiramente destituída de ardor missionário, proveniente muito mais do espírito de uma maturidade espiritual que já tudo possui. Por muito tempo, os vendedores de automóveis não tiveram grande merecimento na hierarquia dos comerciantes. Agora são filósofos, psicólogos, na verdade, pastores de almas, parecem galeristas que não comerciam com obras de arte, mas, sim, atribuem a seus fregueses como que ordenações religiosas. Os monges-peregrinos de Benares não devem permanecer, no alvo de sua caminhada, muito mais do que três dias. Pois a persistência do movimento faz parte dos seus princípios espirituais - a sedentariedade, em si mesma, abriga todos os vícios, sendo ela própria o maior de todos eles. O que haveriam de dizer os sadhus, se recebessem, de parte da propaganda de automóveis produzida na Alemanha, o elogio da mobilidade, do "movimento em si"? E se soubessem de uma geral "aspiração à mobilidade"?

A floresta sagrada (Den heiligen Hain) dos automóveis, um lugar no qual harmonicamente se ligam a adoração panteística da natureza e o culto ao automóvel, foi o que a Volkswagen criou em Wolfsburg, junto ao Mittellandkanal. A antiga fábrica do período nazista possui uma violência escura, materializa o gesto de poder, que faz jus à indústria e, logicamente, lhe corresponde. Mas a nova cidade do automóvel, que foi planejada concomitantemente à exposição mundial em Hannover, num certo sentido a supera e, de longe, a ela sobreviverá. É um Jardim do Éden, no qual a cegonha, das actínias que se abrem nos regatos niponizantes, colhe os automóveis.

Velhos salgueiros, amieiros e os taxus baccata verdejam na floresta que se expande e, no inverno, mesmo sob temperaturas primaveris, se transforma em paisagem de neve artificial, pois no paraíso imperam condições climáticas naturalmente diversas das que se conhecem no mundo caído. No paraíso não há ruas, apenas trilhas emaranhadas, que tantas vezes vão dar em lugar nenhum, visando a incitar, no visitante, o pensamento filosófico. Dali, ele dirige então o olhar ao templo dos automóveis espalhado pelo terreno, e na verdade não consegue alcançá-lo pelo reto caminho, um filosofema de profundidade significativa.

Em templos como esse, são venerados os Seat e os Skoda, os Lamborghini e os Audi, os Rolls-Royce e os Volkswagen. O Lamborghini é o minotauro do labirinto de Wolfsburg. "O pavilhão, um cubo negro levemente inclinado, l incubo, parece preencher apenas um objetivo: oferecer proteção aos visitantes diante do Lamborghini enjaulado ... O encontro com o Lamborghini se faz encenar em pura emocionalidade: a música se metamorfoseia no bater do coração de uma fera descomunal, que se transforma no ronco do poderoso motor de doze cilindradas ... Fogo, tempestade, vulcões e raios ... o retumbante desabalar de uma manada de touros gigantesca, elementos aparentemente desconexos agem sobre o visitante, que vivencia, ao final, o renascimento" - um termo recorrente na nova teologia automobilística - "do diablo das arrojadas forças primordiais."

É o que se lê na pasta de imprensa, recheada, que conduz à cidade dos automóveis; em seguida, o caminho do visitante no Pavilhão do Seat é descrito como "saído do universo dos mitos em direção ao mundo da visão". O Skoda se encontra na "floresta encantada" da "Boêmia" (o que, em todo caso, soa mais bonito e mais correto do que a fatal "Chechênia"), e Bentley é esburacadamente pressionado para dentro da terra. Mas o ponto alto em termos de força de expressão, a cidade do automóvel o alcança com os cinemas tridimensionais e os "espaços de vivência", e como isso é barato, no Pavilhão da Volkswagen. Nas palavras do guia da imprensa: "A construção em forma de cubo abriga uma esfera transdimensional, que simboliza a perfeição. Na arquitetura, a esfera é a expressão geométrica do círculo. E o círculo é o símbolo da Volkswagen. Aqui se mostra o mito da marca: spirit of evolution ... Como num movimento circular, a constante transformação da marca se torna ... simbolicamente visível. O objetivo final é ficção - a sempre duradoura melhoria dos caminhos."

Com que freqüência, em fundações religiosas, profetas insinuam contradições na multidão dos rostos, contradições que só podem ser de utilidade para a aspiração universal da doutrina. Se então, na Volkswagen, o indivíduo quer se ver no trajeto circular do eterno retorno do mesmo ou na dinâmica evolucionária do processo dialético que detona o círculo, é por isso mesmo irrelevante. Importante é apenas que, de alguma forma, se faça sentir a apreensão transcendental do freguês.

O Pavilhão da Volkswagen não é uma igreja, mas bem que poderia servir de modelo a uma delas, superando-a em sacralidade: A nova Herz-Jesu-Kirche [Igreja do Coração de Jesus], em Munique, a ele se iguala nos mínimos detalhes; as gigantescas portas de vidro também encontram na cidade dos automóveis, logicamente num outro edifício, o seu modelo. Enquanto, na Herz-Jesu-Kirche, a função litúrgica medrosamente se oculta, no entanto, e se enigmatiza, a ponto de permanecer invisível ao desavisado, o Pavilhão da Volkswagen orgulhosamente oferece o seu caráter cúltico em espetáculo. Alguém se lembra do "Denkmal zum Guten Glück" [monumento à boa sorte] no jardim da casa de Goethe à margem do Ilm, um quadrado de pedra que serve de suporte a uma grande esfera? No quadrado de vidro da Volkswagen, a grande esfera de ouro caiu dentro, e arde para fora qual maçônico-gnóstico Arcano-Sarastro do carro pequeno. Nas torres de vidro, a 50 metros de altura, voltadas para o batistério de Parma, estocam-se os novos automóveis num limbo a-histórico. Se um deles tem de vir ao mundo, viaja de elevador para baixo da terra ("... se o grão de trigo não morre ..."), torna a vir a luz outra vez depois da viagem subterrânea e aparece aos olhos da freguesia cheia de expectativa. A chave é entregue. Ela se ajusta à fechadura. A ligação mais interior possível entre ser humano e automóvel está selada.



Catedrais, dirigíveis e mais valiosas do que as suas precursoras



Na venda de automóveis, mostrá-los e falar sobre eles é, em todo caso, algo já ultrapassado. Christopher Bangle, Design-Chef da BMW, já há anos costumava apresentar os novos modelos, colocando, em vez de automóveis, bailarinos no palco. Assim ele explicava: "Como fazer com que as pessoas, a uma série de catedrais dirigíveis, acrescentem um outra, cada qual ainda mais valiosa do que o modelo precedente? ... Pela emoção. A mais poderosa fonte de motivação sobre a terra ... para o amor e para o ódio, para a alegria e para o medo, para o orgulho e para o remorso. Ao combinar o trio correto de palavras com duas toneladas de aço, alumínio, vidro, couro e borracha, você recebe então a contrapartida emocional ... de três milhões de dólares."

É por isso mesmo que, no mais recente prospecto da Audi, Progresso é uma questão de ponto de vista, ao lado de fotos do espaço sideral, mergulhadoras idosas em piscina azul claro, um robô musculoso e o Pensador de Rodin, se vê uma única imagem, a da oitava parte de um pneu. Misteriosas perguntas acompanham as imagens. "Progresso? Talvez." - "Não podemos ver a distância simplesmente como chance, e não como obstáculo?" - "Não podemos repensar a idéia inteira do que seja u a máquina?" - "Podemos elaborá-la o tempo necessário para que a tenhamos conseguido." - "Já chegamos lá?"

Quem não conhece o universo da propaganda, nunca compreenderá talvez por que a resposta a tais questões deve ser, grosso modo, a compra de um novo Audi. Pois já não era assim nas antigamente famosas viagens do café, nas quais Rex Gildo podia até mesmo cantar as belezas do México, mas as velhas senhoras tinham de ser estimuladas a comprar cobertores quentes e travesseiros aquecidos? Enquanto hoje a tendência é, às invenções das novas campanhas estético-religiosas de vendas de automóveis, subtrair uma certa indiferença ante o sucesso rápido de vendas. A intenção, na verdade, tem por objetivo algo maior. Uma velha anedota brincava com a idéia de que Agnelli teria comprado, junto ao papa, o pedido do Padre Nosso: Fiat voluntas tua. Seria cômico, se os novos anunciantes de automóveis pudessem rir da piada.



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Martin Mosebach é escritor e vive em Frankfurt a. M. Seu último lançamento, pela Aufbau-Verlag é o romance "Eine lange Nacht".

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