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Poesias-->A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO / Castro Alves -- 20/10/2009 - 12:34 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos














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000000>Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites











A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO

( Castro Alves )





Era a hora em que a tarde se debruça

Lá da crista das serras mais remotas...

E d’araponga o canto, que soluça,

Acorda os ecos nas sombrias grotas;

Quando sobre a lagoa, que s’embuça,

Passa o bando selvagem das gaivotas...

E a onça sobre as lapas salta urrando,

Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora em que os cardos rumorejam

Como um abrir de bocas inspiradas,

E os angicos as comas espanejam

Pelos dedos das auras perfumadas...

A hora em que as gardênias, que se beijam,

São tímidas, medrosas, despojadas;

E a pedra... a flor... as selvas... os condores

Gaguejam... falam... cantam seus amores!

Hora meiga da Tarde! Como és bela

Quando surges do azul da zona ardente!

... Tu és do céu a pálida donzela,

Que se banha nas termas do oriente...

Quando é gota do banho cada estrela,

Que te rola da espádua refulgente...

E, - prendendo-te a trança a meia lua,

Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!

Tu me lembras o tempo em que era infante.

Inda adora-te o peito do precito

No meio do martírio excruciante;

E, se não te dá mais da infância o grito

Que o menino elevava-te arrogante,

É que agora os martírios foram tantos,

Que mesmo para o riso só tem prantos...

Mas não m’esqueço nunca dos fraguedos

Onde infante selvagem me guiavas,

E os ninhos do sofrer que entre os silvedos

Da embaíba nos ramos me apontavas;

Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos

De amor do nenufar que enamoravas...

E as tranças mulheris da granadilha!...

E os abraços fogosos da baunilha!...

E te amei tanto – cheia de harmonias

A murmurar os cantos da serrana, -

A lustrar o broquel das serranias,

A doirar dos rendeiros a cabana...

E te amei tanto – à flor das águas frias –

Da lagoa agitando a verde cana,

Que sonhava morrer entre os palmares,

Fitando o céu ao tom dos teus cantares!...

Mas hoje, da procela aos estridores,

Sublime, desgrenhada sobre o monte,

Eu quisera fitar-te entre os condores

Das nuvens arruivadas do horizonte...

... Para então, - do relâmpago aos livores,

Que descobrem do espaço a larga fronte, -

Contemplando o infinito..., na floresta

Rolar ao som da funeral orquesta!!!

Maria

Onde vais à tardezinha,

Mucama tão bonitinha,

Morena flor do sertão?

A grama um beijo te furta

Por baixo da saia curta,

Que a perna te esconde em vão...

Mimosa flor das escravas!

O bando das rolas bravas

Voou com medo de ti!...

Levas hoje algum segredo...

Pois te voltaste com medo

Ao grito do bem-te-vi!

Serão amores deveras?

Ah! Quem dessas primaveras

Pudesse a flor apanhar?

E contigo, ao tom d’aragem,

Sonhar na rede selvagem...

À sombra do azul palmar!

Bem feliz quem na viola

Te ouvisse a moda espanhola

Da lua ao frouxo clarão...

Com a luz dos astros – por círios,

Por leito – um leito de lírios...

E por tenda – a solidão!



O Baile na Flor

Que belas as margens do rio possante,

Que ao largo espumante campeia sem par!...

Ali das bromélias nas flores doiradas

Há silfos e fadas, que fazem seu lar...

E, em lindos cardumes,

Sutis vaga-lumes

Acendem os lumes

P’ra o baile na flor.

E então – nas arcadas

Das pet’las doiradas,

Os grilos em festa

Começam na orquesta

Febris a tocar...

E as breves

Falenas

Vão leves,

Serenas,

Em bando

Girando,

Valsando,

Voando

No ar!...

Na Margem

“Vamos! Vamos! Aqui por entre os juncos

Ei-la a canoa em que eu pequena outrora

Voava nas maretas... Quando o vento,

Abrindo o peito à camisinha úmida,

Pela testa enrolava-me os cabelos,

Ela voava qual marreca brava

No dorso crespo da feral enchente!

Voga, minha canoa! Voga ao largo!

Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos

Como na mata os caititus bravios...

Filha das ondas! andorinha arisca!

Tu, que outrora levavas minha infância

- Pulando alegre no espumante dorso

Dos cães-marinhos a morder-te a proa. -

Leva-me agora a mocidade triste

Pelos ermos do rio ao longe... ao longe...”

Assim dizia a Escrava...

Iam caindo

Dos dedos do crepúsc’lo os véus de sombra,

Com que a terra se vela como noiva

Para o doce himeneu das noite límpidas...

Lá no meio do rio, que cintila,

Como o dorso de enorme crocodilo,

Já manso e manso escoa-se a canoa.

Parecia, assim vista ao sol poente,

Esses ninhos, que tombam sobre o rio,

E onde em meio das flores vão chilrando

- Alegres sobre o abismo – os passarinhos!...



Tu – guardas algum segredo?...

Maria, ’tás a chorar?

Onde vais? Por que assim foges,

Rio abaixo a deslizar?

Pedra – não tens o teu musgo?

Não tens um favônio – flor?

Estrela – não tens um lago?

Mulher – não tens um amor?

A Queimada

Meu nobre perdigueiro! vem comigo.

Vamos a sós, meu corajoso amigo,

Pelos ermos vagar!

Vamos lá dos gerais, que o vento açoita,

Dos verdes capinais n’agreste moita

A perdiz levantar!...

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...

Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos

O céu se iluminou.

Eis súbito da barra do ocidente,

Doudo, rubro, veloz, incandescente,

O incêndio acordou!

A floresta rugindo as comas curva...

As asas foscas o gavião recurva,

Espantado a gritar.

O estampido estupendo das queimadas

Se enrola de quebradas em quebradas,

Galopando no ar.

E a chama lavra qual jibóia informe,

Que, no espaço vibrando a cauda enorme,

Ferra os dentes no chão...

Nas rubras roscas estortega as matas...

Que espadanam o sangue das cascatas

Do roto coração!...

O incêndio – leão ruivo, ensangüentado,

A juba, a crina atira desgrenhado

Aos pampeiros dos céus!...

Travou-se o pugilato... e o cedro tomba...

Queimado... retorcendo na hecatomba

Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha!

A irara – pula; o cascavel – chocalha...

Raiva, espuma o tapir!

... E às vezes sobre o cume de um rochedo

A corça e o tigre – náufragos do medo –

Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...

N’último ramo do pau-d’arco adusto

O jaguar se abrigou...

Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...

E após... tombam as selvas seculares...

E tudo se acabou!...

Lucas

Quem fosse naquela hora,

Sobre algum tronco lascado

Sentar-se no descampado

Da solitária ladeira,

Veria descer da serra,

Onde o incêndio vai sangrento,

A passo tardio e lento,

Um belo escravo da terra

Cheio de viço e valor...

Era o filho das florestas!

Era o escravo lenhador!

Que bela testa espaçosa,

Que olhar franco e triunfante!

E sob o chapéu de couro

Que cabeleira abundante!

De marchetada jibóia

Pende-lhe a rasto o facão...

E assim... erguendo o machado

Na larga e robusta mão...

Aquele vulto soberbo,

- Vivamente alumiado, -

Atravessa o descampado

Como uma estátua de bronze

Do incêndio ao fulvo clarão.

Desceu a encosta do monte,

Tomou do rio o caminho...

E foi cantando baixinho

Como quem canta p’ra si.

Era uma dessas cantigas

Que ele um dia improvisara,

Quando junto da coivara

Faz-se o Escravo – trovador.

Era um canto languoroso,

Selvagem, belo, vivace,

Como o caniço que nasce

Sob os raios do Equador.

Eu gosto dessas cantigas,

Que me vêm lembrar a infância,

São minhas velhas amigas,

Por elas morro de amor...

Deixai ouvir a toada

Do – cativo lenhador –

E o sertanejo assim solta a tirana,

Descendo lento p’ra a servil cabana...

Tirana

“Minha Maria é bonita,

Tão bonita assim não há;

O beija-flor quando passa

Julga ver o manacá.

“Minha Maria é morena,

Como as tardes de verão;

Tem as tranças da palmeira

Quando sopra a viração.

“Companheiros! O meu peito

Era um ninho sem senhor;

Hoje tem um passarinho

P’ra cantar o seu amor.

“Trovadores da floresta!

Não digam a ninguém, não!...

Que Maria é a baunilha

Que me prende o coração.

“Quando eu morrer só me enterrem

Junto às palmeiras do val,

Para eu pensar que é Maria

Que geme no taquaral...”

A Senzala

Qual o veado, que buscou o aprisco,

Balindo arisco, para a cerva corre...

Ou como o pombo, que os arrulos solta,

Se ao ninho volta, quando a tarde morre...

Assim, cantando a pastoril balada,

Já na esplanada o lenhador chegou.

Para a cabana da gentil Maria

Com que alegria a suspirar marchou!

Ei-la a casinha... tão pequena e bela!

Como é singela com seus brancos muros!

Que liso teto de sapé doirado!

Que ar engraçado! que perfumes puros!

Abre a janela para o campo verde,

Que além se perde pelos cerros nus...

A testa enfeita da infantil choupana

Verde liana de festões azuis.

É este o galho da rolinha brava,

Aonde a escrava seu viver abriga...

Canta a jandaia sobre a curva rama

E alegre chama sua dona amiga.

Aqui n’aurora, abandonando os ninhos,

Os passarinhos vêm pedir-lhe pão;

Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos,

Nos seios castos, na pequena mão.



Eis o painel encantado,

Que eu quis pintar, mas não pude...

Lucas melhor o traçara

Na canção suave e rude...

Vede que olhar, que sorriso

S’expande no brônzeo rosto,

Vendo o lar do seu amor...

Ai! da luz do Paraíso

Bate-lhe em cheio o fulgor.

Diálogo dos Ecos

E chegou-se p’ra vivenda

Risonho, calmo, feliz...

Escutou... mas só ao longe

Cantavam as juritis...

Murmurou: “Vou surpr’endê-la!”

E a porta ao toque cedeu...

“Talvez agora sonhando

Diz meu nome o lábio seu,

Que a dormir nada prevê...”

E o eco responde: - Vê!...

“Como a casa está tão triste!

Que aperto no coração!...

Maria?... Ninguém responde!

Maria, não ouves, não?...

Aqui vejo uma saudade

Nos braços dizer tais prantos,

Que rolam tantos, tantos,

Sobre as faces da saudade

Sobre os braços de Jesus?...

Oh! quem me empresta uma luz?...

Quem me arranca a ansiedade,

Que no meu peito nasceu?

Quem deste negro mistério

Me rasga o sombrio véu?...”

E o eco responde: - Eu!...

E chegou-se para o leito

Da casta flor do sertão...

Apertou co’a mão convulsa

O punhal e o coração!...

’Stava inda tépido o ninho

Cheio de aromas suaves...

E - como a pena, que as aves

Deixam no musgo ao voar, -

Um anel de seus cabelos

Jazia cortado a esmo

Como relíquia no altar!...

Talvez prendendo nos elos

Mil suspiros, mil anelos,

Mil soluços, mel desvelos,

Que ela deu-lhes pr’a guardar!...

E o pranto em baga a rolar...

“Onde a pomba foi perder-se?

Que céu minha estrela encerra?

Maria, pobre criança,

Que fazes tu sobre a terra?”

E o eco responde: - Erra!

“Partiste! Nem te lembraste

Deste martírio sem fim!...

Não! perdoa... tu choraste

E os prantos, que derramaste,

Foram vertidos por mim...

Houve pois um braço estranho,

Robusto, feroz, tamanho,

Que pôde esmagar-te assim?...”

E o eco responde: - Sim!

E rugiu: “Vingança! Guerra!

Pela flor, que me deixaste,

Pela cruz, em que rezaste,

E que teus prantos encerra!

Eu juro guerra de morte

A quem feriu desta sorte

O anjo puro da terra...

Vê como este braço é forte!

Vê como é rijo este ferro!

Meu golpe é certo... não erro.

Onde há sangue, sangue escorre?...

Vilão! Deste ferro e braço

Nem a terra, nem o espaço,

Nem mesmo Deus te socorre!!...”

E o eco responde: - Corre!

Como o cão ele em torno o ar aspira,

Depois se orientou.

Fareja as ervas... descobriu a pista

E rápido marchou.



No entanto sobre as águas, que cintilam,

Como o dorso de enorme crocodilo,

Já manso e manso escoa-se a canoa;

Parecia assim vista – ao sol poente –

Esses ninhos, que o vento lança às águas,

E que na enchente vão boiando à toa!...

O Nadador

Ei-lo que ao rio arroja-se.

As vagas bipartiram-se;

Mas rijas contraíram-se

Por sobre o nadador...

Depois s’entreabre lúgubre

Um círculo simbólico...

É o riso diabólico

Do pego zombador!

Mas não! Do abismo – indômito

Surge-me um rosto pálido,

Como o Netuno esquálido,

Que amaina a crina ao mar;

Fita o batel longínquo

Na sombra do crepúsculo...

Rasga com férreo músculo

O rio par a par.

Vagas! Dalilas pérfidas!

Moças, que abris um túmulo,

Quando do amor no cúmulo

Fingis nos abraçar!

O nadador intrépido

Vos toca as tetas cérulas...

E após – zombando – as pérolas

Vos quebra do colar.

Vagas! Curvai-vos tímida!

Abri fileiras pávidas

Às mãos possantes, ávidas

Do nadador audaz!...

Belo, de força olímpica

- Soltos cabelos úmidos –

Braços hercúleos, túmidos...

É o rei dos vendavais!

Mas ai! Lá ruge próxima

A correnteza hórrida,

Como da zona tórrida

A boicininga a urrar...

É lá que o rio indômito,

Como o corcel da Ucrânia,

Rincha a saltar de insânia,

Freme e se atira ao mar.

Tremeste? Não! Qu’importa-te

Da correnteza o estrídulo?

Se ao longe vês teu ídolo,

Ao longe irás também...

Salta à garupa úmida

Desde corcel titânico...

- Novo Mazeppa oceânico –

Além! além! além...

No Barco

- Lucas! - Maria! Murmuraram juntos...

E a moça em pranto lhe caiu nos braços.

Jamais a parasita em flóreos laços

Assim ligou-se ao piquiá robusto...

Eram-lhe as tranças a cair no busto

Os esparsos festões da granadilha...

Tépido aljôfar o seu pranto brilha,

Depois resvala no moreno seio...

Oh! doces horas de suave enleio!

Quando o peito da virgem mais arqueja,

Como o casal da rola sertaneja,

Se a ventania lhe sacode o ninho.

Cantai, ó brisas, mas cantai baixinho!

Passai, ó vagas..., mas passai de manso!

Não perturbeis-lhe o plácido remanso,

Vozes do ar! Emanações do rio!

“Maria, fala!” – “Que acordar sombrio”,

Murmura a triste com um sorriso louco,

“No Paraíso eu descansava um pouco...

Tu me fizeste despertar na vida...

“Por que não me deixaste assim pendida

Morrer co’a fronte oculta no teu peito?

Lembrei-me os sonhos do materno leito

Nesse momento divinal... Qu’importa?...

“Toda esperança para mim ’sta morta...

Sou flor manchada por cruel serpente...

Só de encontro nas rochas pode a enchente

Lavar-me as nódoas, m’esfolhando a vida.

“Deixa-me! Deixa-me a vagar perdida...

Tu! - Parte! Volve para os lares teus.

Nada perguntes... é um segredo horrível...

Eu te amo ainda... mas agora – adeus!”

Adeus

- Adeus - Ai criança ingrata!

Pois tu me disseste – adeus -?

Loucura! melhor seria

Separar a terra e os céus.

- Adeus - palavra sombria!

De uma alma gelada e fria

És a derradeira flor.

- Adeus! - miséria! Mentira

De um seio que não suspira,

De um coração sem amor.

Ai, Senhor! A rola agreste

Morre se o par lhe faltou.

O raio que abrasa o cedro

A parasita abrasou.

O astro namora o orvalho:

- Um é a estrela do galho,

- Outro o orvalho da amplidão.

Mas, à luz do sol nascente,

Morre a estrela – no poente!

O orvalho – morre no chão!

Nunca as neblinas do vale

Souberam dizer-se – adeus –

Se unidas partem da terra,

Perdem-se unidas nos céus.

A onda suspira na plaga...

Porém vem logo outra vaga

P’ra morrer da mesma dor...

- Adeus – palavra sombria!

Não digas – adeus –, Maria!

Ou não me fales de amor!

Mudo e Quedo

E calado ficou... De pranto as bagas

Pelo moreno rosto deslizaram,

Qual da braúna, que o machado fere,

Lágrimas saltam de um sabor amargo.

Mudos, quedos os dois neste momento

Mergulhavam no dédalo d’angústia...

Labirinto sem luz, sem ar, sem fio...

Que dor, que drama torvo de agonias

Não vai naquelas almas!... Dor sombria

De ver quebrado aquele amor tão santo,

De lembrar que o passado está passado...,

Que a esperança morreu, que surge a morte!...

Tanta ilusão!... tanta carícia meiga!...

Tanto castelo de ventura feito

À beira do riacho, ou na campanha!...

Tanto êxtase inocente de amorosos!...

Tanto beijo na porta da choupana,

Quando a lua invejosa no infinito

Com uma bênção de luz sagrava os noivos!...

Não mais! não mais! O raio, quando esgalha

O ipê secular, atira ao longe

Flores, que há pouco se beijavam n’hástea,

Que unidas nascem, juntas viver pensam,

E que jamais na terra hão de encontrar-se!

Passou-se muito tempo... Rio abaixo

A canoa corria ao tom das vagas.

De repente ele ergueu-se hirto, severo,

- O olhar em fogo, o riso convulsivo -

Em golfadas lançando a voz do peito!...

“Maria! – diz-me tudo... Fala! Fala

Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta!

Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo...

A correnteza, estrepitando, arrasta

Uma palmeira, quanto mais um homem!...

Pois bem! Do seio túrgido do abismo

Há de romper a maldição do morto;

Depois o meu cadáver negro, lívido,

Irá seguindo a esteira da canoa

Pedir-te inda que fales, desgraçada,

Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!...”

Era tremenda aquela dor selvagem,

Que rebentava enfim, partindo os diques

Na fúria desmedida!...

Em meio às ondas

Ia Lucas rolar...

Um grito fraco,

Uma trêmula mão susteve o escravo...

E a pálida criança, desvairada,

Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.

Ela encostou-se ao peito do selvagem

- Como a violeta, as faces escondendo

Sob a chuva noturna dos cabelos -!

Lenta e sombria após contou destarte

A treda história desse tredo crime!...

Na Fonte

I

“Era hoje ao meio-dia.

Nem uma brisa macia

Pela savana bravia

Arrufava os ervaçais...

Um sol de fogo abrasava;

Tudo a sombra procurava;

Só a cigarra cantava

No tronco dos coqueirais.

II

“Eu cobri-me da mantilha,

Na cabeça pus a bilha,

Tomei do deserto a trilha,

Que lá na fonte vai dar.

Cansada cheguei na mata:

Ali, na sombra, a cascata

As alvas tranças desata

Como ua moça a brincar.

III

“Era tão densa a espessura!

Corria a brisa tão pura!

Reinava tanta frescura,

Que eu quis me banhar ali.

Olhei em roda... Era quedo

O mato, o campo, o rochedo...

Só nas galhas do arvoredo

Saltava alegre o sagüi.

IV

“Junto às águas cristalinas

Despi-me louca, traquinas,

E as roupas alvas e finas

Atirei sobre os cipós.

Depois mirei-me inocente,

E ri vaidosa... e contente...

Mas voltei-me de repente...

Como que ouvira uma voz!

V

“Quem foi que passou ligeiro,

Mexendo ali no ingazeiro,

E se embrenhou no balceiro,

Rachando as folhas do chão?...

Quem foi? Da mata sombria

Uma vermelha cutia

Saltou tímida e bravia,

Em procura do sertão.

VI

“Chamei-me então de criança;

A meus pés a onda mansa

Por entre os juncos s’entrança

Como uma cobra a fugir!

Mergulho o pé docemente/

Com o frio fujo à corrente...

De um salto após de repente

Fui dentro d’água cair.

VII

“Quando o sol queima as estradas,

E nas várzeas abrasadas

Do vento as quentes lufadas

Erguem novelos de pó,

Como é doce em meio às canas,

Sob um teto de lianas,

Das ondas nas espadanas

Banhar-se despida e só!...

VIII

“Rugitavam os palmares...

Em torno dos nenufares

Zumbiam pejando os ares

Mil insetos de rubim...

Eu naquele leito brando

Rolava alegre cantando...

Súbito... um ramo estalando

Salta um homem junto a mim!”

Nos Campos

“Fugi desvairada!

Na moita intrincada,

Rasgando uma estrada,

Fugaz me embrenhei.

Apenas vestindo

Meus negros cabelos,

E os seios cobrindo

Com os trêmulos dedos,

Ligeira voei!

“Saltei as torrentes.

Trepei dos rochedos

Aos cimos ardentes,

Nos ínvios caminhos,

Cobertos de espinhos,

Meus passos mesquinhos

Com sangue marquei!



“Avante! corramos!

Corramos ainda!...

Da selva nos ramos

A sombra é infinda.

A mata possante

Ao filho arquejante

Não nega um abrigo...

Corramos ainda!

Corramos! avante!

“Debalde! A floresta

- Madrasta impiedosa -

A pobre chorosa

Não quis abrigar!

“Pois bem! Ao deserto!

“De novo, é loucura!

Seguindo meus traços

Escuto seus passos

Mais perto! mais perto!

Já queima-me os ombros

Seu hálito ardente.

Já vejo-lhe a sombra

Na úmida alfombra...

Qual negra serpente,

Que vai de repente

Na presa saltar!...



Na douda

Corrida

Vencida,

Perdida,

Quem me há de salvar”?

No Monte

“Parei... Volvi em torno os olhos assombrados...

Ninguém! A solidão pejava os descampados...

Restava inda um segundo... um só p’ra me salvar;

Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...

E do peito arranquei um pavoroso grito,

Que foi bater em cheio às portas do infinito!

Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte

Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...

Depois a solidão ainda mais calada

Na mortalha envolveu a serra descampada!...

“Ai! que pode fazer a rola triste

Se o gavião nas garras a espedaça?

Ai! que faz o cabrito do deserto,

Quando a jibóia no potente aperto

Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

“Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,

E finalmente expiram de tortura.

Ou, se escapam trementes, arquejantes,

Vão, lambendo as feridas gotejantes,

Morrer à sombra da floresta escura!...

“E agora está concluída

Minha história desgraçada.

Quando caí – era virgem!

Quando ergui-me – desonrada!”

Sangue de Africano

Aqui sombrio, fero, delirante

Lucas ergueu-se como o tigre bravo...

Era a estátua terrível da vingança...

O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura!

Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam,

Qual das janelas de um palácio em chamas

As labaredas, irrompendo, saltam.

Com o gesto bravo, sacudido, fero,

A destra ameaçando a imensidade...

Era um bronze de Aquiles furioso

Concentrando no punho a tempestade!

No peito arcado o coração sacode

O sangue, que da raça não desmente,

Sangue queimado pelo sol da Líbia,

Que ora referve no Equador ardente.

Amante

“Basta, criança! Não soluces tanto...

Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!

Que culpa tem a clícia descaída

Se abelha envenenada o mel lhe suga?

“Basta! Esta faca já contou mil gotas

De lágrimas de dor nos teus olhares.

Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas

No sangue dele em gotas aos milhares.

“Por que volves os olhos desvairados?

Por que tremes assim, frágil criança?

Est’alma é como o braço, o braço é ferro,

E o ferro sabe o trilho da vingança.

“Se a justiça da terra te abandona,

Se a justiça do céu de ti se esquece,

A justiça do escravo está na força...

E quem tem um punhal nada carece!...

“Vamos! Acaba a história... Lança a presa...

Não vês meu coração, que sente fome?

Amanhã chorarás; mas de alegria!

Hoje é preciso dizer - seu nome!”

Anjo

“Ai! que vale a vingança, pobre amigo,

Se na vingança a honra não se lava?...

O sangue é rubro, a virgindade é branca –

O sangue aumenta da vergonha a bava.

“Se nós fomos somente desgraçados,

Para que miseráveis nos fazermos?

Deportados da terra assim perdemos

De além da campa as regiões sem termos...

“Ai! não manches no crime a tua vida,

Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...

Seria negro o amor de uma perdida

Nos braços a sorrir de um criminoso!...”

Desespero

“Crime! Pois será crime se a jibóia

Morde salvando a planta, que a esmagara?

Pois será crime se o jaguar nos dentes

Quebra do índio a pérfida taquara?

“E nós que somos, pois? Homens? – Loucura!

Família, leis e Deus lhes coube em sorte.

A família no lar, a lei no mundo...

E os anjos do Senhor depois da morte.

“Três leitos, que sucedem-se macios,

Onde rolam na santa ociosidade...

O pai o embala... a lei o acaricia...

O padre lhe abre a porta à eternidade.

“Sim! Nós somos reptis... Qu’importa a espécie?

- A lesma é vil, - o cascavel é bravo.

E vens falar de crimes ao cativo?

Então não sabes o que é ser escravo!...

“Ser escravo - é nascer no alcoice escuro

Dos seios infamados da vendida...

- Filho da perdição no berço impuro

Sem leite para a boca ressequida...

“É mais tarde, nas sombras do futuro,

Não descobrir estrela foragida...

É ver – viajante morto de cansaço –

A terra – sem amor!... sem Deus – o espaço!

“Ser escravo – é, dos homens repelido,

Ser também repelido pela fera;

Sendo dos dois irmãos pasto querido,

Que o tigre come e o homem dilacera...

– É do lodo no lodo sacudido

Ver que aqui ou além nada o espera,

Que em cada leito novo há mancha nova...

No berço... após o toro... após a cova!...

“Crime! Quem lhe falou, pobre Maria,

Desta palavra estúpida?... Descansa!

Foram eles talvez?!... É zombaria...

Escarnecem de ti, pobre criança!

Pois não vês que morremos todo dia,

Debaixo do chicote, que não cansa?

Enquanto do assassino a fronte calma

Não revela um remorso de sua alma?

“Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade

É que os infames tudo me roubaram...

Esperança, trabalho, liberdade

Entreguei-lhes em vão... não se fartaram.

Quiseram mais... Fatal voracidade!

Nos dentes meu amor espedaçaram...

Maria! Última estrela de minh’alma!

O que é feito de ti, virgem sem palma?

“Pomba – em teu ninho as serpes te morderam.

Folha – rolaste no paul sombrio.

Palmeira – as ventanias te romperam.

Corça – afogaram-te as caudais do rio.

Pobre flor – no teu cálice beberam,

Deixando-o depois triste e vazio...

– E tu, irmã! e mãe! e amante minha!

Queres que eu guarde a faca na bainha!

“Ó minha mãe! Ó mártir africana,

Que morreste de dor no cativeiro!

Ai! sem quebrar aquela jura insana,

Que jurei no teu leito derradeiro,

No sangue desta raça ímpia, tirana,

Teu filho vai vingar um povo inteiro!

Vamos, Maria! Cumpra-se o destino...

Dize! Dize-me o nome do assassino!...”

“Virgem das Dores,

Vem dar-me alento...

Neste momento

De agro sofrer!

Para ocultar-lhe

Busquei a morte...

Mas vence a sorte,

Deve assim ser.



“Pois que seja! Debalde pedi-te,

Ai! debalde a teus pés me rojei...

Porém antes escuta esta história...

Depois dela... O seu nome direi!”

História de um Crime

“Fazem hoje muitos anos

Que de uma escura senzala

Na estreita e lodosa sala

Arquejava u’a mulher.

Lá fora por entre as urzes

O vendaval s’estorcia...

E aquela triste agonia

Vinha mais triste fazer.

“A pobre sofria muito.

Do peito cansado, exangue,

Às vezes rompia o sangue

E lhe inundava os lençóis.

Então, como quem se agarra

Às últimas esperanças,

Duas pávidas crianças

Ela olhava... e ria após.

“Que olhar! que olhar tão extenso!

Que olhar tão triste e profundo!

Vinha já de um outro mundo,

Vinha talvez lá do céu.

Era o raio derradeiro

Que a lua, quando se apaga,

Manda por cima da vaga

Da espuma por entre o véu.

“Ainda me lembro agora

Daquela noite sombria,

Em que u’a mulher morria

Sem rezas, sem oração!...

Por padre – duas crianças...

E apenas por sentinela

Do Cristo a face amarela

No meio da escuridão.

“Às vezes naquela fronte

Como que a morte pousava

E da agonia aljofrava

O derradeiro suor...

Depois acordava a mártir,

Como quem tem um segredo...

Ouvia em torno com medo,

Com susto olhava em redor.

“Enfim, quando noite velha

Pesava sobre a mansarda,

E somente o cão de guarda

Ladrava aos ermos sem fim,

Ela, nos braços sangrentos

As crianças apertando,

Num tom meigo, triste e brando

Pôs-se a falar-lhes assim:

Último Abraço

“Filho, adeus! Já sinto a morte,

Que me esfria o coração.

Vem cá... Dá-me tua mão...

Bem vês que nem mesmo tu

Podes dar-lhe novo alento!...

Filho, é o último momento...

A morte – a separação!

Ao desamparo, sem ninho,

Ficas, pobre passarinho,

Neste deserto profundo,

Pequeno, cativo e nu!...

“Que sina, meu Deus! que sina

Foi a minha neste mundo!

Presa ao céu – pelo desejo,

Presa à terra – pelo amor!...

Que importa! é tua vontade?

Pois seja feita, Senhor!

“Pequei!... foi grande o meu crime,

Mas é maior o castigo...

Ai! não bastava a amargura

Das noites ao desabrigo;

De espedaçarem-me as carnes

O tronco, o açoite, a tortura,

De tudo quanto sofri.

Era preciso mais dores,

Inda maior sacrifício...

Filho! bem vês meu suplício...

Vão separar-me de ti!

“Chega-te perto... mais perto;

Nas trevas procura ver-te

Meu olhar, que treme incerto,

Perturbado, vacilante...

Deixa em meus braços prender-te

P’ra não morrer neste instante;

Inda tenho que fazer-te

Uma triste confissão...

Vou revelar-te um segredo

Tão negro, que tenho medo

De não ter o teu perdão!...

Mas não!

Quando um padre nos perdoa,

Quando Deus tem piedade

De um filho no coração

Uma mãe não bate à toa.

Mãe Penitente

Ouve-me, pois!... Eu fui uma perdida;

Foi este o meu destino, a minha sorte...

Por esse crime é que hoje perco a vida,

Mas dele em breve há de salvar-me a morte!

“E minh’alma, bem vês, que não se irrita,

Antes bendiz estes mandões ferozes.

Eu seria talvez por ti maldita,

Filho! sem o batismo dos algozes!

“Porque eu pequei... e do pecado escuro

Tu foste o fruto cândido, inocente,

– Borboleta, que sai do – lodo impuro...

– Rosa, que sai de – pútrida semente!

“Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes:

– Criei um ente para a dor e a fome!

Do teu berço escrevi nos brancos vimes

O nome de bastardo – impuro nome.

“Por isso agora tua mãe te implora

E a teus pés de joelhos se debruça.

Perdoa à triste – que de angústia chora,

Perdoa à mártir – que de dor soluça!

O Segredo

“Agora vou dizer-te por que morro;

Mas hás de jurar primeiro

Que jamais tuas mãos inocentes

Ferirão meu algoz derradeiro...

Meu filho, eu fui a vítima

Da raiva e do ciúme.

Matou-me como um tigre carniceiro,

Bem vês,

Uma branca mulher, que em si resume

Do tigre – a malvadez,

Do cascavel – o rancor!...

Deixo-te, pois...

– Um grito de vingança?

– Não, pobre criança?...

Um crime a perdoar... o que é melhor!...

“Depois, teve razão... Esta mulher

É tua e minha senhora!...



“Lucas, silêncio! que por ela implora

Teu pai... e teu irmão!...

“Teu irmão, que é seu filho... (ó mágoa e dor!)

“Teu pai – que é seu marido ... e teu senhor!...

“Juras não me vingar? – Ó mãe, eu juro

Por ti, pelos beijos teus!

“– Obrigada! Agora... agora

Já nada mais me demora...

Deus! – recebe a pecadora!

Filho! – recebe este adeus!”

Quando, rompendo as barras do oriente,

A estrela da manhã mais desmaiava,

E o vento da floresta ao céu levava

O canto jovial do bem-te-vi;

Na casinha de palha uma criança,

Da defunta abraçando o corpo frio,

Murmurava chorando em desvario:

– Eu não me vingo, ó mãe... juro por ti!...”



Maria calou-se... Na fronte do Escravo

Suor de agonia gelado passou;

Com riso convulso murmura: “Que importa

Se o filho da escrava na campa jurou?!...

“Que tem o passado com o crime de agora?

Que tem a vingança, que tem com o perdão?”

E como arrancando do crânio uma idéia

Na fronte corria-lhe a gélida mão...

“Esquece o passado! Que morra no olvido...

Ou antes relembra-o cruento, feroz!

Legenda de lodo, de horror e de crimes

E gritos de vítima e risos de algoz!

“No frio da cova que jaz na esplanada,

- Vingança – murmuram os ossos dos meus!”

“Não ouves um canto, que passa nos ares?

- Perdoa! – respondem as almas nos céus!”

- “São longos gemidos do seio materno

Lembrando essa noite de horror e traição!”

- “É o flébil suspiro do vento, que outrora

Bebera nos lábios da morte o perdão!...”

E descaiu profundo

Em longo meditar...

Após sombrio e fero

Viram-no murmurar:

“Mãe! na região longínqua

Onde tua alma vive,

Sabes que eu nunca tive

Um pensamento vil.

Sabes que esta alma livre

Por ti curvou-se escrava:

E devorou a bava...

E tigre – foi reptil!

“Nem um tremor correra-me

A face fustigada!

Beijei a mão armada

Com o ferro que a feriu...

Filho, de um pai misérrimo

Fui o fiel rafeiro...

Caim, irmão traiçoeiro!

Feriste... e Abel sorriu!

“De tanto horror o cúmulo,

Ó mãe, alma celeste,

Se perdoar quiseste,

Eu perdoei também.

Santificaste os míseros;

Curvei-me reverente

A eles tão-somente,

Somente... a mais ninguém!

“Ninguém! Que a nada humilho-me

Na terra, nem no espaço...

Pode ferir meu braço...

- “Lucas! não pode, não!

Mísero! A mão que abrira

De tua mãe a cova...

O golpe hoje renova!...

Mata-me!... É teu irmão!...”



Crepúsculo Sertanejo

A tarde morria! Nas águas barrentas

As sombras das margens deitavam-se longas;

Na esguia atalaia das árvores secas

Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,

Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,

As trevas rasteiras com o ventre por terra

Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas

Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...

Ao fresco arrepio dos ventos cortantes

Em músico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante!

Talvez um – silêncio!... Talvez uma – orquesta...

Da folha, do cálix, das asas, do inseto...

Do átomo – à estrela... do verme – à floresta!...

As garças metiam o bico vermelho

Por baixo das asas, - da brisa ao açoite –;

E a terra na vaga de azul do infinito

Cobria a cabeça co’as penas da noite!

Somente por vezes, dos jungles das bordas

Dos golfos enormes, daquela paragem,

Erguia a cabeça, surpreso, inquieto,

Coberto de limos – um touro selvagem.

Então as marrecas, em torno boiando,

O vôo encurvavam medrosas, à toa...

E o tímido bando pedindo outras praias

Passava gritando por sobre a canoa!...



O Bandolim da Desgraça

Quando de amor a Americana douda

A moda tange na febril viola,

E a mão febrenta sobre a corda fina

Nervosa, ardente, sacudida rola.

A gusla geme, s’estorcendo em ânsias,

Rompem gemidos do instrumento em pranto...

Choro indizível... comprimir de peitos...

Queixas, soluços... desvairado canto!

E mais dorida a melodia arqueja!

E mais nervosa corre a mão nas cordas!...

Ai! tem piedade das crianças louras

Que soluçando no instrumento acordas!...

“Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos...”

Diz estalando o bandolim queixoso

... E a mão palpita-lhe apertando as fibras...

E fere, e fere em dedilhar nervoso!...

Sobre o regaço da mulher trigueira,

Doida, cruel, a execução delira!...

Então - co’as unhas cor-de-rosa, a moça,

Quebrando as cordas, o instrumento atira!...



Assim, Desgraça, quando tu, maldita!

As cordas d’alma delirante vibras...

Como os teus dedos espedaçam rijos

Uma por uma do infeliz as fibras!

- Basta –, murmura esse instrumento vivo.

- Basta -, murmura o coração rangendo.

E tu, no entanto, num rasgar de artérias,

Feres lasciva em dedilhar tremendo.

Crença, esperança, mocidade e glória,

Aos teus arpejos, - gemebundas morrem!...

Resta uma corda... - a dos amores puros -...

E mais ardentes os teus dedos correm!...

E quando farta a cortesã cansada

A pobre gusla no tapete atira,

Que resta?... - Uma alma – que não tem mais vida!

Olhos – sem pranto! Desmontada – lira!!!

A Canoa Fantástica

Pelas sombras temerosas

Onde vai esta canoa?

Vai tripulada ou perdida?

Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante

De palmeira, que s’escoa...

No dorso da correnteza,

Como bóia esta canoa!...

Mas não branqueja-lhe a vela!

N’água o remo não ressoa!

Serão fantasmas que descem

Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio,

Gelado, imóvel na proa?

Dir-se-ia o gênio das sombras

Do inferno sobre a canoa!...

Foi visão? Pobre criança!

À luz, que dos astros côa,

É Teu, Maria, o cadáver,

Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!

Não há quem dela se doa?!...

Vão-lhe os cabelos a rastos

Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,

- Pobres flores da lagoa,

Enrolam-se em seus cabelos

E vão seguindo a canoa!...



O São Francisco

Longe, bem longe, dos cantões bravios,

Abrindo em alas os barrancos fundos;

Dourando o colo aos perenais estios,

Que o sol atira nos modernos mundos;

Por entre a grita dos ferais gentios,

Que acampam sob os palmeirais profundos;

Do São Francisco a soberana vaga

Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,

Ele vagia na vertente ainda,

- Linfa amorosa – co’a nitente espuma

Orlava o seio da Mineira linda;

Ao meio-dia, quando o solo fuma

Ao bafo morto de u’a calma infinda,

Viram-no aos beijos, delamber demente

As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo

O deleite da indígena lasciva...

Vem – à busca talvez de desafogo

Bater à porta da Baiana altiva.

Nas verdes canas o gemente rogo

Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...

E talvez por magia... à luz da lua

Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas

Por isso descem lentas, peregrinas...

Adormeces ao pé das palmas curvas

Ao músico chorar das casuarinas!

Os poldros soltos – retesando as curvas, -

Ao galope agitando as longas crinas,

Rasgam alegres – relinchando aos ventos –

De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,

As largas ipueiras alagando,

E das aves o coro alvissareiro

Vai nas balças teu hino modilhando!

Como pontes aéreas – do coqueiro

Os cipós escarlates se atirando,

De grinaldas em flor tecendo a arcada

São arcos triunfais de tua estrada!...

A Cachoeira

Mas súbito da noite no arrepio

Um mugido soturno rompe as trevas...

Titubeantes – no álveo do rio –

Tremem as lapas dos titães coevas!...

Que grito é este sepulcral, bravio,

Que espanta as sombras ululantes, sevas?...

É o brado atroador da catadupa

Do penhasco batendo na garupa!...

Quando no lodo fértil das paragens

Onde o Paraguaçu rola profundo,

O vermelho novilho nas pastagens

Come os caniços do torrão fecundo;

Inquieto ele aspira nas bafagens

Da negra suc’ruiúba o cheiro imundo...

Mas já tarde... silvando o monstro voa...

E o novilho preado os ares troa!

Então doido de dor, sânie babando,

Co’a serpente no dorso parte o touro...

Aos bramidos os vales vão clamando,

Fogem as aves em sentido choro...

Mas súbito ela às águas o arrastando

Contrai-se para o negro sorvedouro...

E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,

Quebra-a nas roscas, donde jorra o sangue.

Assim dir-se-ia que a caudal gigante

- Larga sucuruiúba do infinito –

Co’as escamas das ondas coruscante

Ferrara o negro touro de granito!...

Hórrido, insano, triste, lacerante,

Sobe do abismo um pavoroso grito...

E medonha a suar a rocha brava

As pontas negras na serpente crava.

Dilacerado o rio espadanando

Chama as águas da extrema do deserto...

Atropela-se, empina, espuma o bando...

E em massa rui no precipício aberto...

Das grutas nas cavernas estourando

O coro dos trovões travam concerto...

E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas

Caem de horror no abismo estateladas...

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!

A briga colossal dos elementos!

As garras do Centauro em paroxismo

Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.

Relutantes na dor do cataclismo

Os braços do gigante suarentos

Agüentando a ranger (espanto! assombro!)

O rio inteiro que lhe cai do ombro.

Um Raio de Luar

Alta noite ele ergueu-se. Hirto, solene.

Pegou na mão da moça. Olhou-a fito...

Que fundo olhar!

Ela estava gelada, como a garça

Que a tormenta ensopou longe do ninho,

No largo mar.

Tomou-a no regaço... assim no manto

Apanha a mãe a criancinha loura,

Tenra a dormir.

Apartou-lhe os cabelos sobre a testa...

Pálida e fria... Era talvez a morte...

Mas a sorrir.

Pendeu-lhe sobre os lábios. Como treme

No sono asa de pombo, assim tremia-lhe

O ressonar.

E como o beija-flor dentro do ovo,

Ia-lhe o coração no níveo seio

A titilar.

Morta não era! Enquanto um rir convulso

Contraíra as feições do homem silente

- Riso fatal.

Dir-se-ia que antes a quisera rija,

Inteiriçada pela mão da noite

Hirta, glacial!

Um momento de bruços sobre o abismo,

Ele, embalando-a, sobre o rio negro

Mais s’inclinou...

Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio,

E um riso à flor dos lábios da criança

A flux boiou!

Qual o murzelo do penhasco à borda

Empina-se e cravando as ferraduras

Morde o escarcéu;

Um calafrio percorreu-lhe os músculos...

O vulto recuou!... A noite em meio

Ia no céu!

Desperta para Morrer

“Acorda!”

“Quem me chama?”

“Escuta!”

“Escuto...”

- “Nada ouviste?”

- “Inda não...”

- “É porque o vento

Escasseou”.

- “Ouço agora... da noite na calada

Uma voz que ressona cava e funda...

E após cansou!”

- “Sabes que voz é esta?”

- “Não! Semelha

Do agonizante o derradeiro engasgo,

Rouco estertor...”

E calados ficaram, mudos, quedos,

Mãos contraídas, bocas sem alento...

Hora de horror!...

Loucura Divina

- “Sabes que voz é esta?”

Ela cismava!...

- “Sabes, Maria?

- “É uma canção de amores.

Que além gemeu!”

- “É o abismo, criança!...”

A moça rindo

Enlaçou-lhe o pescoço:

- “Oh! não! não mintas!

Bem sei que é o céu!”

- “Doida! Doida! É a voragem que nos chama!...”

- “Eu ouço a Liberdade!”

- “É a morte, infante!

- “Erraste. É a salvação!”

- “Negro fantasma é quem me embala o esquife!”

- “Loucura! É tua Mãe... O esquife é um berço,

Que bóia n’amplidão!...”

- “Não vês os panos d’água como alvejam

Nos penedos?... Que gélido sudário

O rio nos talhou!”

- “Veste-me o cetim branco do noivado...

Roupas alvas de prata... albentes dobras...

Veste-me!... Eu aqui estou.”

- Já na proa espadana, salta a espuma...”

- São as flores gentis da laranjeira

Que o pego vem nos dar...

Oh névoa! Eu amo teu sendal de gaze!

Abram-se as ondas como virgens louras,

Para a Esposa passar!...

As estrelas palpitam! – São as tochas!

Os rochedos murmuram!... – São os monges!

Reza um órgão nos céus!

Que incenso! – Os rolos que do abismo voam!

Que turíbulo enorme – Paulo Afonso!

Que sacerdote! – Deus...”



À Beira do Abismo

e do Infinito

A celeste Africana, a Virgem-Noite

Cobria as faces... Gota a gota os astros

Caíam-lhe das mãos no peito seu...

... Um beijo infindo suspirou nos ares...



A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo

O precipício!... e o céu!...












Autor: Castro Alves

Produção Visual: Carlos Cunha































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