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Contos-->Memórias Póstumas de Carlos Dantas -- 09/06/2008 - 22:55 (Pedro Carlos de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte”. Assim o escritor brasileiro Machado de Assis, no longínquo ano de 1880, começou o seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Naquela época, é claro, isso não passou de uma fantasia, pois mortos não escreviam livros. Mas hoje isso mudou.

Estamos no ano de 2046. Meu corpo obsoleto, de 103 anos, deixou de viver há alguns dias. Fadiga de material, havia sido a causa mortis. Mas, poucos minutos antes de morrer, meu cérebro foi escaneado e feito download da minha mente. Isto só foi possível porque a tecnociência evoluiu muito nos últimos anos e o ramo de inteligência artificial se destacou. O pontapé inicial se deu ainda em 2001, quando cientistas israelenses criaram microprocessadores formados por circuitos eletrônicos e tecidos vivos. Essas duas classes de componentes, operando sob a mesma lógica -- a informação digital -- puderam ser conectadas, possibilitando o intercâmbio de dados.

Minha mente mora agora em um computador. Antigamente chamaríamos isso de alma. Eu não acreditava em alma. Achava que a morte acabava com tudo. E eis que a ciência consegue materializar crenças antigas. Meu código genético, minha memória, meus conhecimentos, minhas habilidades e meus sentimentos estão preservados num computador, aguardando na fila para serem transferidos para um cyborg, como a fila de transplantes de órgãos existente até bem pouco tempo atrás. Hoje já existem órgãos artificiais para esses transplantes.

Enquanto não tenho um corpo, possuo minhas limitações. Ainda bem que meu maior prazer quando em vida era ler. Isso posso continuar fazendo. Claro que não posso pegar um daqueles antigos livros, feitos de papel, folheá-lo e lê-lo normalmente. Não tenho mãos, não tenho olhos (por enquanto). Mas o programa auxiliar que está junto comigo neste computador disponibiliza para mim, em questão de segundos, qualquer texto que eu queira. Logicamente se eu gostasse de jogar vôlei, por exemplo, teria que me contentar com um jogo virtual. Nesse âmbito, quase tudo pode ser feito: posso viajar por qualquer país ou lugar, no presente ou no passado; posso fazer sexo virtual com belíssimas atrizes ou modelos, que cederam o direito de uso de suas imagens. Logicamente, como cavalheiro que sou, não vou sair por aí (Ah! Se eu pudesse sair por aí.) contando com quem fiz amor.

De qualquer forma, é mais do que eu poderia esperar. Aliás, eu não esperava nada depois da minha morte. Então, ter a minha essência, essa substância imaterial que é a minha inteligência, esse conjunto de informações do meu ser, ativos neste computador, é uma vitória ímpar. Essa condição me permite continuar a convivência, ainda que virtual, com meus filhos, netos, bisnetos, amigos e colegas. Toda hora tem alguém que quer conversar comigo. Meu rosto aparece na tela exprimindo-se normalmente e eu os “vejo” por meio de uma câmera instalada no computador.

Meus filhos, por serem de outra geração, têm maiores chances de viverem mais na forma orgânica do que os meus 103 anos. Meus netos e bisnetos, mais ainda. A biotecnologia, desde que foi decifrado o mapa genético da espécie humana, tem avançado na detecção das doenças genéticas e na aplicação de terapêuticas preventivas, garantindo uma maior longevidade à espécie. Mas, com o procedimento agora rotineiro de transferir a mente para um computador e posteriormente para um cyborg, a morte deixou de ser temida. Muitas vezes é até desejada. As pessoas sentem-se incomodadas com todas as limitações biológicas que a materialidade do corpo humano carrega.

Mas enfim, vamos ao que interessa: as minhas memórias. Nasci no dia 7 de abril de 1943, ao final de um bonito dia ensolarado, na pequena cidade uruguaia de Taquarembó. Nada do que hoje acontece poderia ser previsto naquela época. Afinal, também foi somente nesse ano que entrou em funcionamento o primeiro computador, o Mark I, um dinossauro comparado com os modernos computadores de hoje. Quase coincidentemente, no ano seguinte, 1944, surgiu a primeira indicação de que o material genético das células era o DNA, descoberta que revolucionou a ciência da genética, imprimindo a partir daí o seu verdadeiro avanço. Vejam vocês a honra que tive de nascer na mesma época da ocorrência de dois eventos tão significativos para a minha atual existência: o nascimento do computador e a revolução na ciência genética.

Bem, agora vou precisar interromper a escrita das minhas memórias, pois observo que meu filho está me acessando. Acho que vou divulgá-las na forma de folhetim. Por hoje, como capítulo introdutório, acho que é o suficiente.

“Papai”. A palavra mágica foi escrita.

“Olá, meu filho, como você está?”

“Bem, e você, papai?”

“Estou bem. Chego até a sentir saudades daquela velha dorzinha no ombro direito”.

“Você sabe, papai, que o seu programa auxiliar pode simular a dor, só para que você tenha depois o prazer de senti-la passar, não sabe?”

“Sei, meu filho. Estava apenas brincando. Fale-me de você e dos meus netos”.
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