"É tão cruel a ausência de amor,
que até o ódio chega a ser benvindo."
A princípio, exigiam-se minuciosos e verazes relatórios trienais de cada contratado, com a sempre mesma sinistra ameaça de que, daquela vez, cabeças rolariam.
O pânico era epidêmico, atingindo, em igual medida, do mais ínfimo dos aspirantes em estágio probatório, a mestres e, pasmem, proclamados doutores. Livres-docentes e titulares pairavam acima desses cataclismas, por uma espécie de decurso de prazo. Um pouco mais confiáveis, seria isso? Ou passavam para o outro lado do espelho. Mas há relatos de alguns que incrivelmente se perdiam, não tendo mais a quem confiar o julgamento de seus esforços e resultados, sempre, por natureza mesmo, insuperáveis. Os pareceristas ainda eram uma garantia de que não ficariam relegados para sempre ao limbo da não-leitura, da assim chamada recepção-zero.
Havia, para o grupo de risco - repito, mestres e a maioria dos proclamados doutores, depois de algum tempo, uma espécie de trégua. Para alguns, o enlouquecimento, o desnorteio, o despautério. Chegavam mesmo a uivar pelos corredores, a bater cabeças, clamando por pareceres e por pareceres sobre pareceres. Comprometiam-se as gengivas - seus rangeres -, por esse átimo de atenção e de leitura. "É tão cruel a ausência de amor, que até o ódio chega a ser benvindo", chegou a formular um deles num excesso de parnasianismo assaz descarado, veleidades filosóficas à parte. Alguns passavam a falar sozinhos, a deblaterar-se, aos brados, com fantasmagóricos censores implacáveis. Cenas de um apocalipse indescritível.
Com o tempo, diante desse quadro preocupante, dessa situação gravíssima, decidiu-se pela anualidade. Uma data fatídica, o 28 de fevereiro, que sequer permitiria, em anos bissextos, o atraso de um dia que fosse. Porque, é claro, atrasos de um dia ainda se toleram, a poder de justificativas plausíveis. Mas o atraso em termos de mensalidade, esse já se classificaria como absolutamente imperdoável. Daí, o 28 de fevereiro, podendo, em casos excepcionais, ser protelado para uma outra data, decidida em incontáveis intermináveis reuniões dantescas, sempre que alguma hecatombe, uma greve salarial prolongada que fosse, com o agravante da conjugação de uma pauta ditada pelos alunos sempre reivindicantemente perigosos, passasse a exigi-lo.
Muito mais tarde, correram relatos de que, com o correr dos anos, com o exacerbamento do apego subserviente aos ditames e prerrogativas da lei e às necessidades mais elevadas do saber humano, os doutos senhores, de comum acordo, em infinitas inenarráveis reuniões, que, era um hábito muito antigo e arraigado, transcorriam em meio a urros estertorosos e berros lancinantes, indecifráveis, para não falar das lágrimas, vertidas por alguns raros espíritos mais sensíveis aos pronunciamentos menos comedidos (almas caridosas, é preciso que se acrescente), optou-se (sujeito de preferência quase inexistente) por uma avaliação diária dos atos, gestos, pensamentos e, mesmo, dos mais mínimos esgares, em horário rigidamente pré-determinado, ao final do expediente, como diriam os secretários, ou, se quisermos, para deleite de poetas, no desmaiar do dia, com o sol no horizonte se ocultando, seus últimos tons de lilás esmacidos para tangenciar o cinza que antecede o negror espesso da negra noite inadiável. Mas aí, já não se chamavam mais relatórios essas prestações de contas, essas provas de que fora combatido o bom combate. Alguns chegavam a ostentar no alto, à guisa de cabeçalho, uma formulação já quase perdida no mais longínquo da infância, aquele saudoso e róseo "meu querido diário", que, naturalmente, só fazia comover, até mesmo às lágrimas, os pareceristas, mesmo os de coração mais pétreo e inamovível, os empedernidos mesmo, tudo desembocando num mundo de maravilhas, em que tanto julgar como ser julgado passaram a ser momentos de uma mesma elevada demonstração de magnanimidade da espécie humana, finalmente atingido um estágio nunca antes imaginado nas relações determinantes para o mundo do trabalho. Dizem que as pessoas já não conseguiam mais se conter de tão duradoura alegria, ostentando um sorriso perene nos lábios, como nunca jamais se havia antes experimentado. |