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Artigos-->Muitos são os chamados -- 05/04/2001 - 21:52 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Vocação significa "chamado" (do latim: vocare). Para Jônatas Micheletti Protes, autor/leitor deste site, em seu estilo, hoje, lapidar-inimitável, política deveria ser vocação. Um político deveria ser sempre alguém que ouviu um chamado, que se sentiu chamado a representar o seu povo.

Para não nos distanciarmos tanto da visão materialista a que lamentavelmente já nos habituamos, um chamado que parte da boca das urnas (pelo menos isso!), dos eleitores que lhe passaram uma espécie de procuração e assim por diante. Aquela discurseira toda.



Mas o nosso tempo já não admite mais esse tipo de relação com o verbo, com a palavra. Algumas expressões dão conta de que antes, num passado não tão remoto, a palavra era sagrada. Dizia-se: "um homem de palavra", por exemplo, para dizer que a confiança marcava a relação com determinada pessoa, ou "manter a palavra dada". Queria dizer também que haveria, que poderia haver pessoas "sem palavra". Mas não tantas. E nunca tão cínicas, e nunca tão socialmente aceitáveis, e nunca tão espaçosas, e nunca tão canalhas como hoje.



Os valores de antes foram relegados ao limbo do que a esquerda, erroneamente, passou a classificar como "sentimentos cristãos", sem saber que, nisso, se tornaria um aliado de ponta do capitalismo, da globalização, do pensamento único que hoje nos assola. Mas isso foi num tempo em que as muriçocas devoravam suculentos aventureiros revolucionários.



Vocação ainda se usou, por algum tempo, não sei se ainda perdura esse uso, para falar do sacerdócio. Nesse âmbito, também havia (e as há) missões, missionários e missionárias. Mas missionárias ainda não eram obrigadas a entregar seus corpos aos sacerdotes, como em certos países africanos, por não serem grupo de risco, ótimo substitutivo para os corpos das prostitutas, hoje quase todas contamindas. E havia o celibato. E não haviam inventado ainda que o celibato significava apenas não contrair matrimônio. Essa é a versão pós-moderna.



Havia os vocacionados: "Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos." Havia o problema da falta de vocações, o risco de se perder a vocação. Houve, até mesmo, numa tentativa talvez desesperada de preservar esse conceito e suas conseqüências localizadas, uma Secretaria Nacional das Vocações Sacerdotais, se bem me recordo, um certo Padre Baleeiro, que se tornou secretário, e que provocava grandes deslocamentos de ar à passagem da sua esvoaçante batina branca.



Também me volta à memória a menção de algo como " vocação artística", sempre inegável, e formulações assim idealistas, hoje cada vez mais raras.



Talvez tenhamos ficado surdos. O barulho é infernal. As televisões ligadas por toda parte, nas casas, nos bares, restaurantes, onde quer que você esteja, passe, pare, nenhum silêncio possível, nenhuma concentração. Há sempre um televisor ligado. Volume altíssimo. Os aparelhos de som, sempre infernais, sempre tiranos. Os escapamentos abertos, os rachas, a gritaria (grunhidos!).



Nos termos de hoje, de fato, muitos são os chamados, e as chamadas. Os celulares não descansam. Há pessoas que, se fosse possível, já o teriam embutido nas orelhas, um em cada. Eles tocam em todo lugar, indiscriminadamente. E só nos resta acompanhar esses fragmentos de diálogos, dos quais só nos toca ouvir uma das partes, irritantemente arrogante e poderosa, capaz de azedar qualquer leite e de tirar o prazer do que quer que estejamos fazendo.



O mundo está mergulhado em tumulto e pânico. As pessoas parecem anestesiadas. Se você reclama, vão te classificar como neurótico, histérico. Vão te indicar um especialista.



Assim, como ouvir o chamado? Como chegarão a tempo os escolhidos, tão poucos?



Recebi, esses dias, uma convocação. Um chamado dirigido às massas. Para mim, pessoalmente, até ofensivo. Não me senti chamado. Como vou desligar a televisão por quinze minutos, se nem a ligo. Há um pressuposto absurdo nisso tudo, e mesmo nos debates sobre a qualidade da programação dos nossos canais abertos. Esquecem-se algumas possibilidades. Você também pode não ligar a televisão. Uma ótima medida. Ou desligá-la, se um programa não te agrada, se nada ali te agrada, que é, quase o tempo todo, o meu caso.



Mesmo num campus universitário, onde se encontram pelo menos alguns dos escolhidos, dos privilegiados do mundo, deste país de 160 milhões de habitantes e 2008 livrarias apenas. Um aparelho de TV fica ligado, no espaço de convivência, que (será que por acaso?) é a cantina, praticamente o dia todo, das sete da matina às vinte e duas horas. As pessoas, ali reunidas, em qualquer horário, prosseguem suas animadas conversas, outras, sozinhas, apalermadas, tentam encontrar algum resquício do sossego de que tanto precisavam, para uma pausa, um cafezinho, um lanche. Fato notório: ninguém olha para o aparelho. Mas ele está ali. Ligado. Volume insuportável. E ninguém reclama. Anestesia geral. Às vezes, uma FM contribui para tornar esse quadro ainda mais desalentador. Tudo ao mesmo tempo agora mesmo. Porque não existe mais o tempo das pessoas nesse cenário. O tempo é o dos meios de comunicação. Será que eles poderiam mesmo ser melhores do que são? Será que vale a pena discutir sobre a qualidade do que eles apresentam?



Vocação? Ah, que tempos são estes! Ai de quem ainda se sentir chamado. Ai de quem ainda tiver ouvidos de ouvir. Tristes quixotescas figuras, essas que ainda ousam protestar contra tudo isso, que ainda acreditam que o mundo pode, deve, precisa ser transformado. E o homem também.



Política deveria ser vocação, concordo plenamente. Mas iria ainda mais longe: todos os afazeres humanos deveriam ser feitos por quem foi chamado, por quem se sentiu chamado, por quem ouviu o chamado.



O materialismo, o cinismo do dias que correm fizeram por embotar os sentidos. Já não se vê, já não se ouve, já não se usa o olfato, o tato. Adeus, sentidos. E, se Aristóteles tinha razão, ao falar que tudo o que chega à mente passa pelos sentidos, adeus, razão. Adeus, intelecto. Para não falar do espírito, essa palavra banida. Restam "os karaokês da vida", os talk shows intermináveis, a boçalidade, o corpo e a vida das pessoas expostos. A humanidade em carne viva. Incapaz de ouvir qualquer chamado, a menos que ele se faça anunciar por um aparelho de telefone celular bem estridente, bem detestável, bem danoso para a convivência humana. E, ninguém sabe, talvez para a saúde do seu usuário.



Tentar sobreviver a tudo isso, em meio a tudo isso, não vai ser bolinho. Mas, no meu caso, quem mandou nascer também em mil novencentos e tampinha de rolha. Azeite, como se exclamava na minha infância.

Muitos são os chamados. As companhias telefônicas (telefónicas) agradecem.



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