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Contos-->MENTIRA BEM INTENCIONADA -- 19/05/2007 - 19:39 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sentado na cama, com a cabeça entre as mãos, Diogo foi despertado dos seus pensamentos por um ruído familiar vindo do lado das grades da cela. Era o Tico-Tico, na sua visita da tarde. Levantou-se e o pássaro olhou-o, movendo a cabeça com movimentos rápidos, como que a cumprimentá-lo. Depois debicou, primeiro na água e depois no pão. A cena repetia-se há semanas, pelo menos duas vezes por dia. Tudo começara na manhã, em que ele lhe apareceu pela primeira vez. À sua voz, o pássaro brindara-o com um chilrear animado que o encantou. Voltou de tarde e logo ele lhe disse:
- Se vieres mais vezes, vou arranjar-te água e comida!
No dia seguinte, manhã cedo, o passarinho chegou, fez um trinado, olhou fixamente para Diogo e começou a banquetear-se com a água e com o pão que ele colocara em dois recipientes arranjados na véspera. Chilreou, olhou de novo para o «seu amigo» e voou. A visita do Tico-Tico passou a fazer parte das suas rotinas diárias. Até já sabia a que horas vinha e ficava preocupado quando ele se atrasava.
Criado desde criança numa Instituição religiosa, Diogo ali estudou, aprendeu um ofício, trabalhou nas oficinas de tipografia, tirou a carta de condução e, segundo as perspectivas da Casa, ficou preparado para a vida que o esperava lá fora. Infelizmente, cedo começou por praticar pequenos delitos para subsistir. Habituou-se a ser preso. Era julgado e condenado a pequenas penas, porque nunca utilizava a violência. Cada vez que saía, voltava à mesma vida. Ainda fez algumas tentativas para arranjar trabalho, mas cada vez que dizia ter estado preso, as portas fechavam-se. Achava curiosa a celeridade com que era julgado e condenado. Segundo lia nos jornais, os grandes ladrões e os grandes criminosos, levavam meses a ser julgados, quando o eram. Além disso, não roubavam, desviavam. E muitos não eram ladrões, eram corruptos. Estranho Mundo este. Cada vez que recuperava a liberdade, sentia receio de ser preso e pânico de, algum dia, fazer algo que lhe trouxesse uma pena mais pesada.
Tendo já dificuldades em pagar o aluguer do quarto onde vivia, passou a assaltar caixas de estabelecimentos. Um dia, resolveu assaltar uma bomba de gasolina, com um pequeno pau coberto por um lenço a fingir de arma. O homem da gasolineira, julgando que ia ser morto, fugiu e caiu aparatosamente ao escorregar numa mancha de óleo. Diogo assustou-se, correu desorientado e acabou por ser apanhado por uma patrulha da polícia que passava perto. Levado a julgamento, foi condenado a vários meses de prisão, por assalto à mão armada, se bem que insistisse em dizer que nunca pegara numa arma.
Diogo encontrava-se agora a expiar aquela última pena e, curiosamente, as visitas do Tico-Tico estavam a fazer-lhe bem. Meditava mais sobre o futuro e na forma como doravante o iria construir. O dia da libertação aproximava-se. Diogo sentia uma sensação única. Por um lado a ânsia de sair, por outro o desejo de mudar definitivamente de vida e, finalmente, mas não a coisa menos importante, perguntava-se como poderia passar sem o ver. E como iria ele viver depois da sua saída? A pessoa que viesse ocupar aquela cela seria como? Se fosse um brutamontes, como iria o seu amiguinho reagir? Pelo sim pelo não, quando se fosse embora, deixaria água, miolo de pão e um recadinho com «instruções». No que a si respeitava, decidiu que desta vez não descansaria enquanto não encontrasse trabalho, fosse ele qual fosse. Diria a verdade, contaria que tinha estado preso, mas o problema seria encontrar alguém que confiasse nele e assim contribuísse para a sua regeneração. Na data esperada, a ordem de soltura chegou ao fim do dia. Sentiu um baque no coração. Ele ainda não viera e a coisa que mais desejava era poder despedir-se. Como adivinhando-lhe os pensamentos, enquanto arrumava os parcos haveres, Tico-Tico apareceu. Diogo choramingou, enquanto balbuciava:
- Não te queria perder, mas tenho de ir! Se puderes segue-me, vê para onde vou!
Diogo aproximou-se dele e acariciou-o. Com uma unha, coçou-lhe carinhosamente a cabeça. Viu-o depois voar. Então, lentamente, empurrou a porta entreaberta e deixou «a sua gaiola» a caminho da liberdade.
Dias mais tarde, dirigiu-se a uma Editora bastante conhecida que procurava um motorista. Foi recebido pelo patrão, pessoa com quem logo simpatizou. Contou-lhe resumidamente a história da sua vida.
- Até calha bem! Também eu posso vir a ter problemas com a polícia, devido a histórias e negociatas em que me tenho metido, à margem da empresa. Para já, preciso de si e aceito-o como motorista, visto que tenho a minha carta de condução apreendida. Terá de me transportar para onde for necessário. Confio em si. Pode ser que até venha a precisar do Diogo para uns trabalhinhos… Não diga a mais ninguém o que me contou a mim.
- Obrigado senhor Sepúlveda. Quando começo? - Depois de amanhã, dia 1.
Despediram-se com um vigoroso aperto de mão. Diogo não tinha gostado muito daquela ideia do patrão vir a precisar duns trabalhinhos. Que trabalhinhos seriam? E se fossem actos ilícitos? Poderia dizer que não? Voltaria à senda do crime? Nem queria pensar nisso. Já tinha pago a sua conta à justiça.
Passados quase seis meses, foi chamado ao gabinete do patrão:
- Dentro de dias vou voltar a poder conduzir. Não precisarei mais de si, Diogo. Chegou a altura de lhe dar um trabalhinho… Feche a porta.
As pernas tremeram-lhe só de imaginar que todos os seus sonhos iam tornar-se pesadelos, mudou de cor várias vezes e balbuciou a medo:
- Apanhou-me de surpresa. Não esperava. Tudo estava a correr tão bem.
- Estava e vai continuar a estar. Sente-se, para conversarmos.
Diogo deixou-se cair sobre a cadeira em frente da secretária, com ar desolado.
- Porque está assim? Vou fazer-lhe uma confissão... Disse-lhe, no dia que nos conhecemos, que poderia vir a ter problemas com a polícia devido a «coisas» em que estava metido, apenas para o deixar mais à vontade e para o experimentar. Era mentira!
- Então… Mas… E o tal trabalhinho?
- Tenho-o observado durante todo este tempo. Tenho muito boa impressão de si. É pontual, cumpridor e pareceu-me ser capaz de desempenhar outras funções. Como sabe, o Silvério, um dos responsáveis da área de distribuição, vai deixar-nos no fim do mês para ir para França. Pensei em si para o lugar!
- Que lhe posso dizer senhor Sepúlveda? No espaço de minutos, senti a minha vida a andar para trás e, agora, volto a ver um futuro risonho à minha frente. Não sei como lhe agradecer. E eu a pensar mal de si!
-Eu hoje não preciso dos seus serviços, pois uns amigos vêm-me buscar para jantar. Confiei em si e não me arrependi. Leve o carro e esteja amanhã, em minha casa, à hora do costume.
- Obrigado, senhor Sepúlveda, então até amanhã!
Diogo foi directamente para casa e, logo que chegou, deitou-se na cama, para tentar rever com mais calma tudo o que lhe estava a acontecer. Quantas saudades do Tico-Tico! De certo modo, fora ele que lhe trouxera a paz e o fizera ver o mundo com outros olhos. Como gostaria de o rever. Levantou-se dum salto e foi buscar dois recipientes com água e miolo de pão, pondo-os no parapeito da janela. Voltou a deitar-se. Em breve adormeceu. Foi despertado por um ruído estranho e ao mesmo tempo familiar, um ruído que não ouvia há muito tempo.
- Tico-Tico, és tu?
Era mesmo o Tico-Tico, com o seu olhar perscrutador e inteligente, e aquele movimento de cabeça rápido e nervoso.
- Vem cá meu amigo, hoje estou muito contente. Vamos festejar!
Passou com as costas do dedo indicador na cabeça dele, que se deixou afagar. Tirou os recipientes de cima do parapeito, abriu a porta do quarto e dirigiu-se para a cozinha. O pássaro esvoaçou atrás dele. Colocou a água e o pão em cima da mesa, foi ao frigorífico e encheu um copo de leite para si. Barrou um pão com manteiga e sentou-se em frente do Tico-Tico, que entretanto poisara, a saltitar. Para Diogo, aquele dia estava a ser um dia muito especial: além de tudo o mais, estava a tomar a sua primeira refeição em família!
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NB - Menção Honrosa nos V Jogos Florais de Avis, em 2007

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