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Contos-->A MUSA DA CAPA -- 25/02/2007 - 10:30 (JOSÉ RICARDO ZANI ) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Estou saindo de Brasília rumo ao interior do Rio Grande do Norte. Vou conhecer pequenas comunidades que, com um empurrão discreto e inteligente, conseguiram passar da extrema pobreza ao desenvolvimento sustentado. Estou escalado para redigir matéria sobre o tema e sinto-me animado para a missão, pois acredito no poder de multiplicação daquele projeto promissor. Ao embarcar, percebo um misto de animação e inquietação entre os presentes. O avião nem decolou e os passageiros parecem excitados, alguns sussurram com os vizinhos de poltrona. Só mais tarde fico sabendo o motivo. Nada parecido com a minha empolgação pelas comunidades carentes que buscam um lugar ao sol, mas com um grupo de homens ávidos por um lugar perto de uma estrela. E põe estrela nisso! Primeira grandeza, dessas que não passam despercebidas com seu indisfarçável rostinho das capas de revistas e todo o resto já contemplado nas páginas internas. A conexão em Salvador é confusa e demorada. Por conta do atraso, a companhia aérea oferece jantar àqueles que continuarão a viagem. Lá se vão, esfomeados, para o restaurante. Não gosto do alvoroço e dispenso o jantar. Cansado de andar de um lado para outro, vou para a sala de espera, que está deserta como o céu escuro da madrugada. Ou melhor, quase. Bela e só, lá está a moça das revistas, também indiferente ao jantar baiano. Aliás, indiferente a tudo, dissimulada atrás de enormes óculos escuros. Circulo pela sala para conferir. Então percebo que ela leva os óculos à testa e olha fixamente para algum ponto no canto em que estou. Discretamente, inspeciono à minha volta para descobrir o alvo de sua observação, mas nada vejo de especial. Resolvida a conexão, todos embarcam novamente, agora com muitos lugares vazios, porque boa parte dos passageiros fica em Salvador. Acabo de me acomodar na poltrona quando novamente avisto a musa entrando. Esbanja charme e desfila devagar. Observa as poltronas, confere à esquerda, à direita e à frente. E segue pelo corredor, como se estivesse em dúvida sobre aonde ir. Do ângulo em que estou, tenho a impressão de que um meteoro está crescendo em direção à minha testa. Como cena de filme, o imenso cometa com cauda e tudo vem pousar ali, na poltrona entre mim e a janela, envolvendo-me numa intensa atmosfera de calor, brilho e efeitos especiais. Assim tão de perto, não deixa dúvida. De fato, faz jus à fama, ao mito e ao clamor dos solitários em êxtase. Perdido nessas reflexões, quase não percebo seu sussurro pedindo que eu feche a persiana. Curvo-me para alcançar a janela e me vejo ainda mais perto do cometa, que me ofusca a visão e aquece a imaginação. Àquelas horas da cansativa madrugada, eu admitiria que estivesse semiconsciente, quase sonhando, não fosse tão viva a movimentação a bordo. Gracejos, pedidos de autógrafos e a tripulação inquieta. Temo que o piloto automático também abandonará seu posto para se exibir no corredor. Quando se tem um avião dentro do outro, tudo pode acontecer. De repente, da profundeza dos infernos aparece a mais inoportuna das criaturas: -- Com licença, a senhorita está ocupando a minha poltrona. Ela faz que não ouve e eu finjo que não me irrito com a intervenção. Mas compreendo imediatamente as razões do reclamante. A moça ocupa a poltrona errada, o que me parece certíssimo. E invento algo para justificar: -- Olhe, gente boa, ela tá cansada, com enxaqueca, tentando dormir nesse cantinho. Vai agradecer se você concordar com os lugares trocados. O sujeito enrola um pouco, esperando demonstrações de simpatia dela, mas desiste e se afasta. Ela age como se estivesse em sua casa, segura, serena e mostrando profundo bem-estar. É contagiante a simpatia com que corresponde à minha sondagem: - Sim, estou viajando sozinha. Vou a um evento particular na fazenda de amigos. Então, novamente com aquele olhar de muitos códigos e nenhum limite, acrescenta: -- Mas antes de seguir, me hospedo hoje em Natal, para descansar um pouco... Eu arrisco: -- Eu também. Fico esta noite em Natal e amanhã vou para o interior, a serviço. Você conhece algum hotel bom em Natal? -- Minha reserva é num hotel legal. Por que você não fica lá?... Procura numa bolsa de mão um cartão com o nome do hotel e me entrega. A viagem segue, assim como alguns sinais subliminares e outros nem tanto. Tudo parece caminhar às mil maravilhas, exceto por um detalhe: contrariando minha experiência, meu desejo e as expectativas de todo bom roteirista, sinto que me fecho à medida que ela se abre. Volto a fita para ver se algo faz sentido. Enquanto vou revendo mentalmente o que se passou desde o início da viagem, sinto o avião ganhar mais uns 4 mil pés. Algo diz que minha perplexidade está próxima do limite, acompanhada da mesma sensação de alguém que se vê indicado para o Oscar da Academia de Cinema sem jamais ter passado do teatrinho amador no colégio. Vem um leve calafrio, seguido do pressentimento de que o avião tomou o rumo da Lua. Confiro o semblante dos demais passageiros. Tudo parece em perfeita normalidade. Para mim, nada mais está normal. Além disso, os diálogos com ela, que seriam um perfeito quebra-gelo, serviram para instalar um iceberg sob meu assento. Capturar ou ser capturado? A voz passiva pode mudar tudo e a diferença entre o infinitivo e o particípio pode ser como a transição do sedativo ao precipício. Nunca notara que um mesmo verbo pudesse servir a significados tão opostos. Meus pensamentos abandonam a inútil gramática e correm para a psicologia. Resgato fragmentos das explicações de um velho psicólogo sobre a síndrome da aproximação estratégica, com suas etapas distintas e sucessivas, algo como preparação, tensão, ação, reação e descontração... Não estou vislumbrando a última etapa. Finalmente vejo que não estamos a caminho da Lua, pois o avião mergulha na bela manhã potiguar, clara e ensolarada, pousando em Natal. Carrego a bagagem de mão da diva até a sala de desembarque, onde algumas pessoas a esperam. Passo a mochila para outras mãos e sigo para o sanitário. Respiro fundo, encaro-me no espelho e me transponho para um divã imaginário: -- Cara, nem sei ao certo se devo esperar por loteria ou zombaria, mas desde já estou desertando. Ridículo, eu sei. É preciso entender que em situações como essa, numa despretensiosa poltrona onde um cometa incandescente cai sem avisos nem rodeios, a tal síndrome da aproximação pode atropelar não só a teoria como também a fisiologia. Demais pra mim, bicho! Sinto muito, lamentarei por toda a vida...


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