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Artigos-->Mulher, comida ou alimento? -- 16/10/2002 - 12:43 (Clóvis Luz da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Que imagens nós, homens brasileiros, temos de nossas mulheres? Que papeis elas desempenham em nossa sociedade no tocante à sexualidade? Qual a relação entre mulher, comida e alimento?



Reconhecer o quanto o machismo brasileiro ainda resiste ao tempo, é importante para que saibamos como interpretar o esforço das mulheres brasileiras no sentido de afastar de si a tradicional imagem da mulher que sempre está à disposição do homem, para satisfazer-lhe os desejos, matando sua fome com comida, satisfazendo também seu apetite sexual, no papel de comida. As últimas décadas trouxeram mudanças significativas dessa mentalidade machista. Até quando ela resistirá?



“Agora chegou a vez vou cantar

Mulher brasileira em primeiro lugar”.



Esse trecho da música de Benito di Paula revela o caráter peculiar, por diverso, com que o homem brasileiro concebe a mulher. Qual seria a imagem da mulher brasileira, filtrada pelas lentes da música, mais até do que pela da literatura?



Não é una, como muitos poderiam concluir se apenas essa música definisse o pensamento do homem em relação à mulher. E se há mais de uma imagem, quais são? Por que a mulher brasileira desperta, ao mesmo tempo, reverência e descaso, respeito e volúpia desmedida? Haverá, entre um e outro extremo, uma imagem intermediária que concilie as que se opõem?



Uma das imagens da mulher brasileira é aquela que a define como um ser especial, que detém poderes quase mágicos na hora em que precisa manipular, no sentido positivo, entenda-se, a situação, de modo que ela seja, como o é a farinha para o cozido, o ponto de ligação entre as oposições que se revelam no cotidiano da vida nacional. É óbvio que o pensamento do homem brasileiro em relação à mulher não é diferente das variantes de outros países.



Não estamos incluindo as culturas teocráticas, mormente as do islamismo, que relegam a figura feminina às últimas instâncias de valor e consideração, nem às culturas de certos povos aborígenes da África, em que a infibulação, o ato de cortar o clitóris, revela o quanto a mulher sofre por conta de preconceitos absurdos quanto à sexualidade.



Não estamos falando também de estágios de civilização, porém de uma mudança de mentalidade em relação ao papel destinado às mulheres por sociedades historicamente machistas, como a brasileira. Se Roberto DaMatta acertadamente relaciona a mulher à comida, principalmente na simbologia pela qual a mulher da rua, a prostituta, é aquela que pode causar indigestão moral em um homem sempre acostumado a comer a comida caseira, muitos outros utilizam essa relação entre mulher e comida para revelar um pensamento ainda recheado (sem falso trocadilho) de machismo contra a figura feminina. Esse machismo se revela quando, na mente do homem brasileiro, a mulher que fica em casa, cuidando do lar, dos filhos, e de si própria para receber o marido, é equivalente ao alimento, ou seja, a algo necessário, ordinário, regulamentado, e que por isso mesmo não dá prazer. Já a mulher da rua, a prostituta, é equivalente à comida, ou a algo prazeiroso, sem regras ou limites, que leva o homem a “encher” a barriga até se fartar, pois, como é comum, a comida da rua sempre parece ser mais saborosa que a de casa.



Um música bastante executada aqui em Belém revela perfeitamente a essa imagem que o nosso machismo ainda associa à mulher, vendo nela um mero objeto de satisfação sexual. Um trecho da música diz:



“Quem entra nesse carro é comida

Por isso que o nome dele é marmita!”



Descontando o grave equívoco sintático, uma vez que o pronome QUEM não designa gênero, e o autor o identifica como feminino, é perfeitamente notável como ele considera as mulheres um elemento fácil de se capturar, como é fácil estender a mão e pegar um pedaço de pão para aliviar a fome.



O alimento delicioso apetece o homem. A mulher bonita também é “gostosa”, “deliciosa”. E se um prato bem temperado desperta o apetite orgânico, igualmente uma mulher bonita, cheirosa, desperta o outro apetite, o sexual. A libido masculina se revela furiosa quando os olhos do macho repousam sobre a bela figura de uma fêmea: imediatamente sua “fome” se levanta e ela desesperadamente precisa que o homem “coma” aquela mulher para se satisfazer.



Não faz muito tempo um outro fato mostra como relacionamos mulher com comida. Um homem casado foi abordado por uma mulher. Ela, querendo se “engraçar” pro lado dele, disse que às vezes é bom provar uma comida diferente da que se tem em casa. Ele, cristão que era, disse-lhe que a comida caseira até ali o estava satisfazendo plenamente. Não sabemos se a mulher desistiu ou insistiu para ser “comida”.



Pois bem. Por que, pela imagem inicial, a mulher brasileira está em primeiro lugar? Será porque, como diz Roberto DaMatta, nós sempre preferimos o que é nosso, nacional, em detrimento do que vem de fora? Será isso verdadeiro? Nesses tempos globalizantes, em que os valores morais e culturais se transferem de um canto ao outro do planeta via internet num piscar de olhos, estamos imunes às influências dos produtos importados? Será que nossos olhos não preferem as louras, como diz o título do famoso filme? Será que não estamos abrindo mão de nossa preferência nacional? Queremos admirar uma deliciosa nádega nacional, ou um atraente par de seios gigantes das mulheres norte-americanas? Não estamos perto de mudar nossa visão nacionalista e chauvinista sobre nossas mulheres? Não estão as deliciosas brasileiras inflando nossa excitação com centenas de milímetros de silicone? Não estão pintando seus cabelos para serem cada vez mais parecidas com a Pamela Anderson? Por tudo isso, não estariam as mulheres brasileiras contribuindo para a solidificação da segunda imagem?



As “louras burras” que comandam nossas crianças na TV matutina, as que posam nas Sexys e Playboys, não estão afirmando que a verdadeira mulher brasileira não tem um único estereótipo, não podem ser definidas por um padrão único de biotipo? Para essas “popozudas”, José de Alencar não estaria delirando quando quis eleger Iracema, com seus cabelos lisos e negros como as asas da graúna, e seus lábios de mel, a régua pela qual seriam medidas as formas da verdadeira mulher brasileira?



E essa segunda imagem, a das mulheres que se despem dos valores morais sem os conflitos de Iracema e Gabriela, que aceitam facilmente o rótulo de ocas, vazias e superficiais apenas porque isso as torna “purpurinadas”, “poderosas”, no sentido de conseguirem qualquer coisa pelo uso de seu corpo, não estaria prevalecendo sobre a primeira imagem, a da mulher que é, sim, sedutora, capaz de controlar as situações por sua beleza e delicadeza, contudo sem abrir mão de sua condição histórica de sujeito das mudanças e não meros objetos, em qualquer sentido que o leitor os compreenda?



Calma! Nossa terra continua sendo a que tem lindas palmeiras onde canta o sabiá. As Gabrielas e Donas-Flor continuam intimamente presas ao nosso dia-a-dia. Elas são as mulheres que sempre tiram nota dez na escola onde sempre repetimos de ano, porque não são, como bem afirmou o tremendão Erasmo, o sexo frágil. Eis aí de fato uma mentira absurda.



Á semelhança de Gabriela que, juntamente com as companheiras de Ilhéus, desafiava os coronéis pançudos da Bahia, nossas mulheres continuam a desafiar o suposto poder dos homens na sociedade brasileira moderna. Se é vigente ainda o conceito de fragilidade da mulher porque não está ligada ao poder, assim como Gabriela usava seus encantos de menina para comprar a confiança dos coronéis e transitar com audácia entre eles, assim também nossas mulheres sabem que não resistimos à sua extrema capacidade de negociar. Onde há intransigências, conflitos, disputas cruentas pelo poder, pelo comando, sempre a figura feminina haverá de despontar como o elemento de ligação entre as partes conflitantes. Não que ela não queira compartilhar dos privilégios do poder. Ela o quer, mas tem que saber conquistar os seus donos, ou os que julgam tê-lo.



Talvez em Gabriela as mulheres de hoje no Brasil encontrem apenas um germe de contestação do poder pela malícia. Todavia, em Dona-Flor elas acham sua total emancipação. Ela consegue ultrapassar os conflitos que sua condição ambígua lhe causava. Viúva, não podia ir à vida. A sociedade que estabelecia limites rigorosos para o comportamento moral das mulheres não admitia que uma viúva se lançasse em busca de um novo amor. A possibilidade de a mulher ser feliz, pensava o homem nacional do passado, era dada a ela uma única vez, e morria se também morresse o seu marido. E o homem? Bem, ele poderia casar-se quantas vezes quisesse. Também a sociedade não admitia que Flor se comportasse como mulher solteira, livre, desimpedida. Sem condições de alterar as circunstâncias objetivas nas quais sua ambigüidade ganhou vulto, Dona-Flor intimamente venceu os preconceitos da sociedade, invocando do além o amor de Vadinho, mantendo-o pari passu com o do Dr. Teodoro.



Ela deu o seu jeito. Ela se virou, como prega o jargão popular, e encontrou sua felicidade na conjugação de elementos conflitantes. Ela foi ao mesmo tempo autor e objeto daquelas que seriam mudanças tão significativas no modo de pensar da sociedade em relação às suas mulheres.



Quem sabe Jorge Amado, com Dona-Flor, tenha descoberto essa característica ímpar da mulher brasileira. Essa característica contribui pra que criemos então uma terceira imagem, um ponto intermediário entre a sedução absolutamente consciente da mulher que se sabe “gostosa” e a sedução sem consciência, quase instintiva, das “popozudas”.



Para atingir seus objetivos, a mulher desperta o apetite do homem, que a vê como um alimento. É assim que ainda vemos a mulher? Pois bem, ela vai, de forma sutil, desconstruindo essa posição machista, dando corda pro homem se enforcar. Ela o conquista pela boca. Ele quer comida? Tudo bem. Ela dá comida e se dá, como tal, a ponto de o homem nada fazer, nada objetar, sem sequer saber que, ao ser objeto de sua satisfação, a mulher de fato é o sujeito que ativamente prende seu homem, manipula-o, guia-o para onde bem quer, faz dele gato e sapato. Usa sua saia e aquilo que ela esconde, pra dominar aqueles que não podem ver um rabo-de-saia e logo enchem sua boca de água, querendo degustá-lo A mulher prende o homem pela boca. E ele, como um peixe, deixa-se matar pela boca.



Assim, como bem enfatiza Roberto da Matta, a mulher e a comida brasileira para os homens são as melhores do mundo. E já que não eles não vivem sem nenhuma nem outra, precisam urgentemente reconhecer, em relação às mulheres, o quanto têm sido mesquinhos em não valorizar aquelas que são, absolutamente, as responsáveis pelo sentido de suas vidas. Descobrir a mulher brasileira como um ser precioso, que tem uma capacidade fenomenal de discutir, questionar, negociar, em busca de novos horizontes para sua condição, falsa como já vimos, de oprimida por ser frágil, é um bom começo. Ainda faltam muitos anos para os homens mostrarem a elas que as desejam muito mais nesse papel do que no de meros alimentos enfeitados, cheirosos e bem cozidos, que todas as noites se preparam para serem degustados.



O homem brasileiro talvez não tenha ainda tomado consciência de que as mulheres, na luta contra o preconceito de que foram e são vítimas por causa do machismo, vêm conseguindo fugir de uma condição passiva na qual sua vontade tinha que necessariamente coincidir com a dos homens, para outra na qual esses homens estão aprendendo a respeitar as posições femininas, ainda que sejam conflitantes em relação à supremacia masculina em determinados papeis sociais.



Não que as mulheres deixaram de ser vistas como meros objetos da satisfação das necessidades masculinas. Não significa também que as mulheres, por causa da opressão histórica de que são vítimas, resolveram jogar fora o seu encanto, sua sedução, sua docilidade que conquista e envolve. Pelo contrário, conscientes de tamanhos poderes em suas mãos, usam-nos de forma pragmática para mudar seu destino e sua participação na vida brasileira.



Se temos muitas mulheres que ainda aceitam a pecha de simples objetos sexuais, a maioria delas tomou a decisão de continuar sedutoras, sim, contudo não para simplesmente conquistar os homens, senão para reafirmar sua posição de sujeito transformador de sua condição histórica, como Dona Flor, que sabia o que queria, e soube como alcançá-lo.

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