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Teses_Monologos-->MAS ESSE JÁ É UM OUTRO PAPO -- 07/06/2001 - 21:24 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Aquilo que antes foi um belo conteúdo de vida,
hoje não passa de uma forma de vida."

A frase é do escritor austríaco Peter Handke, jogando com a dicotomia forma/conteúdo, onipresente na vida literária, na teoria literária dos anos 60 e 70, sendo, ainda hoje, impossível fugir inteiramente a ela. Impossível fugir inteiramente a ela?

Isso num momento em que os estudos literários buscavam, na lingüística, o apoio de que precisavam para fazer jus ao estatuto científico. Em décadas anteriores, ao longo do século XX, a literatura buscou o apoio de outras disciplinas.

A psicologia teve o seu tempo. Rendeu tantos calhamaços pseudo-científicos, que o crítico alemão Hans Mayer, recentemente falecido em Berlim, chegou a escrever: “Pela última vez psicologia”, um artigo sobre Kafka que se tornou histórico.

Nos anos 80, a psicanálise veio, de certa forma, atualizar um pouco (mas nem tanto?) as abordagens ditas psicologizantes.

Já os anos 60 viram o florescimento da sociologia da literatura, com o surgimento de praticamente um dialeto: o sociologuês. Fina ironia, pensávamos em coro, risos à socapa. Ou, de um outro ponto de vista, grossa safadeza. E dialeto com aspirações a idioma. As abordagens sociológicas fizeram época e erigiram ícones da nossa teoria literária. Antonio Cândido, um quase papa dessa vertente, deixou uma quantidade inumerável de epígonos. Estes, despudoradamente, pareciam pretender disputar, para todo o sempre, o galardão de ter sido o discípulo dentre os discípulos do mestre inquestionável. Um quase monumento em vida, o prof. Antonio Cândido.

Um fato: o país está, desde a presidência à mais ínfima comissão das prefeituras petistas ou das universidades, tomado por "sociólogos". Gente sobretudo realista, pés fincados no chão do real, adeptos do "a vida como ela é", mesmo sem terem lido muito bem sequer o cara que, entre nós, melhor tratou da nossa suburbanidade e da nossa psicanalhice: Nelson Rodrigues.

Cansada de procurar fora de si mesma as explicações que julgava dever ao fato literário, a teoria literária viu no "estruturalismo francês", nessa tentativa de tomar emprestada à lingüística saussureana um pouco da cientificidade de que se julgava carente, uma espécie de panacéia, um pau, por assim dizer, para toda obra. Mas isso foi antes do ensaísta Roberto Schwartz ter chutado a lata de lixo da história com “A mão no pau”, que o projetou, tardiamente talvez, para o convívio dos assim chamados poetas marginais.

Com o estruturalismo em voga, fartamo-nos de produzir e consumir listas, catálogos, arrolamentos intermináveis. A qualidade e o prestígio de uma obra eram proporcionais às possibilidades que ofereciam em termos de listagens, tudo sempre muito bem estruturadinho, aquele esquema: os diversos "extratos", os semas, sememas e semantemas. Por algum tempo, com Roland Barthes, os alunos de Letras aprenderam a procurar pelas “lexias” no texto. Depois, a Teoria do Discurso veio e fez o que fez. Daí para os “estudos culturais” foi um salto sem barreiras e quase sem riscos.

Um ponto positivo: a volta ao texto. Mas foi preciso Roland Barthes se dar conta primeiro: sim, havia que se resgatar (atenção para esse verbo!) a "coisa” do “prazer do texto". Sim, foi um tempo de muitos parênteses, ressalvas, aspas, caixas-altas, negritos, itálicos, qual um desfile de escola de samba onde só houvesse destaques.

Dia desses, peguei um desses esclarecedores rabos de conversa, naquela pausa para o cafezinho dos itinerantes pós-graduandos, esses seres de epopéia. Duas mestrandas davam prosseguimento ao acalorado debate, que com toda certeza estariam monopolizando em classe. Só pude detectar a afirmação veemente de uma delas: "Não senhora, a senhora está enganada. Ele está tratando da coisa do simbólico. A “coisa” do simbólico. A coisa “do simbólico”. Ruminei. Conjuminei. Respirei aliviado. Nem tudo está perdido. A tradição se mantém, seja lá como for, nesse "coisa" e nesse “do simbólico”. E não esquecer: com os dedos como que esfarelando argutamente a força de tais expressões, tão precisas como datadas, e airosas.

Já é “alguma coisa” em termos de transmissão. A "coisa" do social, a "coisa" carnavalesco, a "coisa" do simbólico. E por aí vai.

O pós-modernismo parece ter atraído para si mesmo, enquanto termo, os sobreviventes dos mais variados embates e das mais belicosas vertentes das décadas revolucionárias. O debate sobre a sua existência ou não parece que vai permanecer para sempre inadiável. E tomem livros às mancheias.

A história dos estudos literários poderia ser resumida num suceder de despedidas. Adeus, categorias idealistas! Adeus, psicologia! Adeus, sociologismos! Adeus, lingüística e estruturalismos! Adeus, psicanálise (Freud já vem sendo posto em questão)! Adeus, modernidade! Só não sabemos como dizer adeus, ainda, à pós-modernidade. Ela é tão densa. Tão complexa. Tão tudo. Ou melhor, tão pós-tudo. Tão pós-tudo que também bem pode ser pós-qualquercoisa. Chafurdamos nela com a mesma alegria de pintos no lixo, para usar a expressão feliz do cantor Jamelão para falar da loura e luminosa presença de um saxofonista americano na favela.

No Brasil, continuamos com a geração de 45. Foi aí, foi nesse mata-burro que o nosso cânone empacou. Mas, na Alemanha também, e nos estudos germanísticos pelo mundo afora, o grupo 47, com seus dois prêmios Nobel (Heinrich Böll, em 1972, e Günther Grass, em 1999), se constitui numa como que obviedade. Algo, por assim um alemão dizer: “selbstverständlich”. Uma obrigatoriedade. Algo que por si mesmo se compreende. Afinal, é para isso que serve justamente um cânone. E é tão mais fácil entrar por ele. É a chamada porta larga de que fala a Bíblia. A estreita daria muito trabalho, seria necessário ler a esmo toda essa maçaroca que séculos de literatura e humanidade produziram.

Não dá mesmo para acompanhar a sucessão vertiginosa de autores e tendências. Ninguém é de ferro. A universidade suga seus luminares com exigências burocráticas cada vez mais absurdas. O cânone permite, por exemplo, falar de cátedra. Mesmo em se considerando a pouca atualidade da expressão. Cátedras, a rigor, já não existem. Viramos tarefeiros, auleiros, administradores amadores, e toda uma série de coisas praticamente ainda sem nome.

68: parece que foi antes de antes de ontem.

Os anos revolucionários: a revolução estudantil.

Para o escritor Haruki Murakami, um dos sobreviventes das agitações estudantis no Japão, não foi nada fácil adaptar-se aos novos tempos. Pirou, literalmente, ao ver o seu romance de amor "Norwegian Wood" vender, só no Japão, 4,5 milhões de exemplares. Virou Madonna. Só superado por uma certa Banana Yoshimoto.

Em "Caçando Carneiros", recém-lançado entre nós, o protagonista comenta, numa certa passagem, que a revolução estudantil fracassou por ter acreditado na possibilidade de transformar o mundo sem que as pessoas se transformassem intimamente. Tudo tinha, no fundo, uma motivação individual apenas. Ninguém imaginava que teria de passar a pensar coletivamente, por mais que o vocábulo "coletivo" insista em permanecer, ainda hoje, no jargão de determinados agrupamentos universitários. O "coletivo", no caso, é só uma espécie de salvaguarda para interesses eminentemente corporativos, o que não deixa de ser uma forma abjeta de ação contrária à vida coletiva. Um desses coletivos, zelosamente, achou por bem não mais publicar uma resenha que me fora pedida (?), julgando que, sendo eu o tradutor, seria (suponho que seja comum) tentado a inflacionar a excelência da obra. Uma expressão dos meus avós: “Quem usa, cuida.”

Entre nós, a revolução também carregava nas tintas da retórica. Basta verificar as traduções de Brecht que se perpetraram no período. Onde, no original, se lê: "é preciso transformar a sociedade", na tradução brasileira teremos: "é preciso fazer a REVOLUÇÃO [sic: em caixa-alta]".

Mas havia um conteúdo. Um belo conteúdo de vida, como quer Peter Handke. Ou teria havido, se é que hoje ainda podemos supô-lo, tão à distância.

A tradução da frase de Handke apresenta, evidentemente, um problema. Para dizer que hoje temos apenas uma "forma" de vida, seria preciso puxar uma nota de rodapé, para explicar que houve um dia essa dicotomia, tão necessária para todos os debates e considerações, de que o mundo, as coisas, as pessoas, as vidas se dicotomizariam nessas duas entidades: forma e conteúdo. Platônicos estertores.

Atualizando, para levar em conta as transformações globalizantes a assolar o planeta, seria preciso reiventá-las: com o desaparecimento da dicotomia, os seus dois termos não só se confundindo como sendo substituídos por outra formulação, a frase resultaria então: "Aquilo que antes era um belo conteúdo de vida, hoje não passa de um meio de vida.”

Assim formulada, acredito, todos os leitores por certo a compreenderiam, e saberiam localizá-la facilmente em suas circunstâncias pessoais. Já pude aplicá-la, uma vez, num encontro de professores da minha faculdade.

Sim, um meio de vida. Cada qual se virando, se rebolando para sobreviver nesse pega-pra-capar da globalização. Mais um adeus: ao ensino superior público e gratuito. O nosso dia a dia é a própria visualização desse processo de privatização. Cada uma das tarefas que se nos impõem, nos mais variados formatos e com as mais diversas implicações, sempre malignas (serviço sujo mesmo, muitas vezes), é para que não venhamos a sentir saudades.

A piada do bode no meio da sala. Uma vez tirado o bode, a sala volta a respirar aliviada.

É isso. Boa parte dos implicados haverá de respirar aliviada, por ter deixado para traz os sonhos, as aspirações revolucionárias, as possibilidades de reflexão, as hipóteses de um trabalho acadêmico isento, a iminência do ócio, tão necessário, e o seu poder de criar novas relações no dia a dia. Mas o que fazer com os nossos complexos de culpa. Um dia teríamos de dar, finalmente esse grande adeus. Um grande adeus a essa complicada trama, ao engajamento que isso tudo, ainda e sempre, exigiria. A existência, por si só, já nos será o bastante. Sobreviver. Não importa como. É isso. A vida como ela é. Um banho de realidade. Era disso que estávamos precisando. O bode tirado do meio da sala.

Em termos literários, a Academia Sueca deve ter razão. Viva o Grupo 47! Viva o realismo! A instituição literária tem de sobreviver, a disciplina da Teoria Literária tem de sobreviver. É preciso que haja livros e autores. Leitores? Bem, mas esse já um outro papo.
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