No meio da praça ajardinada, diante da capela, Teotônio se viu só.
— Devo aguardar que as pessoas vão aparecendo. Não é possível que o camarada tenha chegado cedo demais. Por onde deve ter seguido, que não percebi quando se separou de mim?
Decidiu sentar-se em vetusto banco de madeira, onde pôde ler a propaganda de casa comercial: “Ao Pão-de-ló do Filó, mercearia e bazar”.
— Estranha denominação! Será que as pessoas aqui gostam de “tirar sarro”?…
Não gostou da expressão grosseira. De qualquer maneira, desviou a atenção para o fato de que as casas começavam a acender luzes. Estavam utilizando lampiões a gás, fortes o bastante para tornarem o interior claro. No entanto, de onde se encontrava, não conseguia discernir as figuras que se interpunham entre o foco luminoso e a janela. Mas encheu-se de esperança.
Apareceu o trabalhador, que trazia alguém.
— Meu amigo, este é o responsável administrativo. Uma espécie de chefe do distrito, nomeado pelo prefeito do Município.
— Muito prazer!
— Juvenal, ao seu dispor.
— Teotônio. O meu cicerone esqueceu-se de dizer-me sua graça.
— Como?
— Qual é seu nome, companheiro?
— Pode me chamar de Tonho, como todo mundo.
— Muito bem! Tonho, vou ficar eternamente grato pelo favor que me fez. Já contou ao Administrador o que me aconteceu?
— Contei e ele ficou muito interessado em mandar o amigo de volta pra casa.
— Certamente. Não podemos, sequer, retardar…
Nesse instante, a praça se encheu de terror, pelos gritos de socorro de diversas pessoas, em correria na direção deles:
— Fogo! Fogo!
Pessoas vinham carregadas e crianças choravam, ensurdecedoras. Imediatamente, as casas vomitaram inúmeras criaturas assustadas.
Juvenal abandonou o estranho e correu para se inteirar do que estava sucedendo.
— A casa do José está em chamas!
Como se tivessem sincronizado os movimentos, sumiram todos atrás de uma das esquinas, deixando Teo sozinho.
— Que fazer, Santo Deus?! Será que têm recursos para debelar o incêndio?
Quis correr mas as pernas não obedeceram prontamente. Trôpego, dirigiu-se até a rua onde ardia uma casa. O fogo dominava a maior parte do prédio e ameaçava os vizinhos. A multidão se organizou rapidamente, passando vários baldes de mão em mão, cheios e vazios, em movimentos pendulares bastante precisos. Pareciam treinados para a eventualidade do incêndio.
Ao se aproximar da casa que fornecia a água, Teo pôde ver quatro pessoas estiradas, com queimaduras nos braços e nos rostos. Eram atendidas por mulheres, que lhes aplicavam compressas de água.
Não demorou, apareceu um velho trazendo uma valise com uma cruz vermelha. Seria o farmacêutico ou o vendedor de remédios. Em pouco tempo, aplicou pomadas e ministrou comprimidos.
Teotônio atarantava. Não sabia como ajudar. Quis meter-se na fila dos baldes, porém, o peso do primeiro fez com que derrubasse o precioso líqüido. Afastou-se inoperante, julgando-se absolutamente inábil para minorar o sofrimento e os prejuízos. No entanto, as chamas arrefeceram e, em pouco mais de vinte minutos, restava apenas espessa neblina causada pelo vapor. A casa perdeu-se mas o fogo não se alastrou.
Chegaram três automóveis de modelos muito antigos, que Teo conhecia das exposições e revistas especializadas. Os feridos foram acomodados nos assentos e, acompanhados por familiares, desapareceram com os veículos, saindo em boa carreira, levantando o pó das ruas de terra batida.
Bem que Teo pensou em pedir carona, mas o desespero de muitos não lhe permitiu externar o pensamento. Tonho e Juvenal estavam entretidos no rescaldo do incêndio. Sem saber como ajudar, procurou alguém que estivesse necessitando de auxílio. Uma mulher depositou-lhe um bebê no colo:
— Segure pra mim, por favor!
Era situação inusitada desde alguns anos, quando carregara os sobrinhos. O pequerrucho estava acomodado e limpo. Na semi-obscuridade da manhã delineada no horizonte, antes mesmo da aurora, nos primórdios do crepúsculo, pôde enxergar dois olhinhos atentos que esquadrinhavam a fisionomia estranha.
Tímido, pôs-se a brincar com a criança, fazendo estalidos com a língua. Admirou-se quando recebeu de volta a comunicação incipiente.
— Criança esperta. Quanto terá: quatro, cinco meses? Até pode ser menos.
Temeu que o esforço pudesse causar-lhe vertigem. Buscou a soleira de uma porta e se sentou, afagando suavemente o rostinho macio do bebê. Era muito pouco o que estava fazendo, mas cooperava com os aldeãos. Sentiu-se útil. Qualquer ajuda que recebesse naquela cidadezinha não tinha como ressarcir de imediato.
A azáfama durou por mais três horas, tempo durante o qual a criança dormiu, sob os embalos carinhosos do desconhecido.
— Que bonzinho que é. Tanta inocência nesta alvorada de vida!
Separou as sílabas da derradeira frase. Parecia que podia transformá-la em alexandrino. Ensaiou diversas alterações e concluiu:
— “Tanta inocência em seu albor de vida…” Não está bom. Decassílabo insignificante. Depois, “de vida” facilmente se junta numa palavra só: “devida”. Expressão indevida. Fico em dívida.
Não gostou das reflexões sem nexo nem profundidade.
— Se fui, noutra existência, poeta, devo ter perdido meu precioso tempo com futilidade.
Assomou-lhe na mente o vulto alto de um senhor de trinta e cinco anos, bem apessoado, com meneios feminis, a cuidar de figurinos para gente endinheirada, mulheres cujo objetivo era sobressaírem-se socialmente.
— Esse sou eu agora. Continuo o mesmo.
Não pôde prosseguir na linha de criteriosa análise da personalidade, interrompido por Juvenal:
— Senhor Teotônio, vamos ficar devendo a condução, porque os carros disponíveis foram empregados como ambulâncias. A nossa cidade é paupérrima, como deve ter visto, sem recursos para servi-lo.
— Vocês não têm telefone? Pelo menos vou poder avisar que estou aqui no Distrito…
— … Jardim das Rosas…
— … e minha família vai poder vir resgatar-me.
— Infelizmente, por opção religiosa da população, não temos essas facilidades das cidades poluídas. O senhor vai ter de se conformar com a situação. Mais um dia, pra quem ficou preso cinco anos, não vai fazer diferença.
Teo se surpreendeu com as próprias palavras:
— Terrível mesmo, muito pior do que me aconteceu, foi a perda do pouco que essas pessoas tinham, o que deve ser o tudo. Muito mais trágicas foram as queimaduras. É verdade que os remédios atenuam as dores, mas, mesmo assim, é doloroso demais.
— Agradeço a sua compreensão e posso dizer que fiquei emocionado com sua tentativa de nos ajudar a apagar o fogo.
— Apenas consegui ficar com o menino no colo e mais nada.
— No atropelo, ele podia ficar exposto ao perigo. Foi o único da casa que saiu ileso. Minha mulher vai cuidar dele até que os pais voltem.
De repente, a vista de Teotônio ficou nublada. A cabeça girou e ele caiu desmaiado. Quando acordou, o dia ia alto e as pessoas falavam baixinho no outro cômodo. Foi quando ouviu distintamente:
— Tenho certeza que esse homem é o que foi seqüestrado no Rio. Parece que encontraram o corpo flutuando num córrego, aos fundos de uma favela.
Um frio intenso percorreu a espinha do refém da morte. E a consciência, de novo, desapareceu.
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