Usina de Letras
Usina de Letras
15 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50671)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A «Louca» -- 16/01/2006 - 20:56 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O sino da igreja badalava as 9 horas da manhã e, como todos os domingos, Miguel dirigiu-se para o centro comercial mesmo em frente, onde costumava estudar na esplanada da cave. Ia mais pensativo do que era normal, dir-se-ia mesmo que tinha um ar apreensivo.
Sentou-se e pediu um café mas, em vez de espraiar os livros, o papel e as canetas por cima da mesa, como era seu hábito, ficou a olhar no vago, absorto em pensamentos. A mãe zangara-se com ele por ter chegado a casa muito tarde na véspera e ele respondera-lhe de tal modo que agora se sentia arrependido. Ela tinha razão, as mães têm-na quase sempre, mas que diabo, já não era uma criança... Enfim, como habitualmente tudo seria esquecido. Os seres humanos, quando se amam, atingem facilmente o outro extremo dos seus sentimentos e depois ficam apreensivos enquanto as coisas não voltam à normalidade.
Olhou as pessoas que já se encontravam sentadas por perto. Um rapaz e uma rapariga conversavam, uma senhora já de certa idade tomava o seu pequeno-almoço, uma moça digitava no seu telemóvel uma mensagem, um senhor de barba, com o Expresso e todos os seus suplementos, acabava de chegar e preparava-se para a leitura. Mais além um homem ainda novo, com aspecto de emigrante de leste, fumava e bebia uma cerveja. Enquanto isso, mesmo na mesa ao lado, uma moreninha estudava, olhando de vez em quando na direcção de Miguel. Só então reparou nela e os seus olhares cruzaram-se. Ficaram grudados um no outro. Nunca se tinham visto antes, mas sorriram com os corações a bater descompassadamente. Tímido por natureza, Miguel resolveu-se a abrir um dos livros e começou a estudar. Por volta das onze, ela arrumou as suas coisas, levantou-se e sorriu de novo, deixando-o paralisado sem saber o que fazer. Foi ela que tomou a iniciativa:
- Vens aqui no domingo que vem?
- Venho.
- Então vamo-nos reencontrar!
E afastou-se com ar decidido, subindo a escada sem olhar para trás.
*****
Não se pode dizer que namoravam, mas passaram a ver-se quase todos os domingos. Conversavam sobre tudo e sobre nada, estudavam e tiravam dúvidas. Ele estava no primeiro ano de Psicologia, ela no primeiro ano de Direito. Trocavam mensagens por telemóvel todos os dias. Ambos com quase dezanove anos, eram bons estudantes e praticavam desporto, ela Natação, ele MotoCross.
Certo dia, Miguel convidou Sónia para almoçar e ir «curtir um cinemazinho». Ela disse que sim, mas só depois de avisar os pais.
Foram de autocarro até ao Colombo, comeram uma pizza e um gelado, tomaram café e compraram bilhetes para uma das salas. No escurinho da última fila, Miguel encontrou modo de vencer a sua timidez e colocou a mão no colo de Sónia. Ela acariciou-a e, em breve, trocaram o primeiro beijo.
Quem, à saída, lhes perguntasse alguma coisa sobre o filme, não saberiam responder...
- É a primeira vez que namoro, acreditas?
- Namoras com quem? Ainda não me pediste e eu não disse que sim... Respondeu Sónia, com um terno sorriso e uma piscadela de olho.
Não eram necessárias palavras nem pedidos, um beijo selou o acontecimento. Em plena rua, na paragem do autocarro, Miguel estava parvo consigo mesmo.
- Vamos a pé para demorar mais tempo?
- Está bem.
- Já namoraste com muitos rapazes?
- Não. Embora tenha vários amigos... Assim... És o primeiro e gostava que fosses o único! Disse ela sorrindo.
*****
Estava um dia abrasador, com os termómetros a rondarem os quarenta graus. Os dois jovens correram de mãos dadas para o mar e mergulharam nas águas mornas de Monte Gordo. Enquanto nadavam, faziam projectos para a tarde:
- Queres ir comigo a Ayamonte depois do almoço?
- Quero, se não viermos tarde. Já sabes como é a minha mãe...
Minutos depois já estavam no toldo da família de Miguel. Sónia tinha aproveitado a boleia de uma amiga que ia a Vila Real de Santo António e viera fazer uma visita surpresa ao namorado. Também estava a passar férias com os pais, em Tavira, portanto não muito longe.
Os pais de Miguel adoravam-na e, sabendo do passeio programado para a tarde, convidaram-na para almoçar.
- Se quiser eu falo com a sua mãe...
- Não é necessário. Eu vou já avisá-la. Não há problema.
Miguel afagou-lhe os longos cabelos com ternura. Os dois formavam um casalinho encantador.
Almoçaram num dos restaurantes da praia, bifes de atum à algarvia e um bolo delicioso da região. Não bebiam álcool nem fumavam.
Os exames tinham corrido bem aos dois. Mereciam os momentos felizes que estavam a viver. Já tinha passado uma semana, restava ainda outra, mas a partir de agora - estava combinado - ele iria diariamente a Tavira, durante o dia ou então à noite.
*****
Quem passasse na Via do Infante, àquela hora da tarde, veria o trânsito interrompido numa das faixas, com várias pessoas a correr em todas as direcções, uma mota tombada no asfalto e, mais adiante, uma rapariga bastante nova com um capacete na mão, chorando agarrada ao rosto. Deitado no chão, um jovem que não se mexia e no qual se adivinhavam múltiplos ferimentos. Muitos curiosos se debruçavam sobre o corpo, mas ninguém sabia exactamente o que fazer porque ele não dava sinal de si.
Alguém tinha chamado a Emergência Médica e em breve se ouviu a respectiva sirene. Apareceu também a polícia. De novo as sirenes e as luzes giratórias varrendo a estrada. Transportaram-nos para o Hospital de Faro.
Decerto já adivinharam que se tratava da Sónia e do Miguel, que voltavam duma tarde bem passada do lado de Espanha. Tinham passeado, visitado uma feira, comprado recuerdos e regressavam a casa. Ele tinha-lhe emprestado o seu capacete pois só tinha um. Um gato (Seria mesmo um gato? Foi tudo tão rápido...) tinha-se atravessado na estrada e, instintivamente, Miguel travou. Uma mancha de óleo foi-lhe fatal, perdeu o controlo da mota e os dois foram projectados com extrema violência.
***
Sónia teve alta passado pouco tempo, pois só sofrera pequenas escoriações. Os pais, que entretanto tinham sido avisados pelo telefone, levaram-na de volta a casa. Miguel, pelo seu lado, recuperou o conhecimento mas encontrava-se muito maltratado. Os ferimentos visíveis ainda eram o menos grave. Tinha um traumatismo craniano, a coluna tinha sido atingida e os médicos suspeitavam que ele estava paraplégico.
Alguns dias mais tarde, quando o seu estado o permitiu, foi transferido com todos os cuidados para um hospital de Lisboa. Sónia, que entretanto acabara as férias de praia, visitava-o diariamente.
*****
Para Miguel tinha começado um longo calvário. Várias intervenções cirúrgicas e finalmente o veredicto final dos médicos. Necessidade de muitas sessões de fisioterapia para recuperar totalmente o tronco e os braços, mas as pernas ficariam inutilizadas para sempre. Fechou os olhos e conseguiu a custo reter as lágrimas e o grito de revolta que tinha no peito. Seus pais e Sónia estavam presentes. Quando o médico se retirou, Miguel voltou a cabeça para ela e disse-lhe:
- Vamos ficar apenas amigos. Se quiseres! A vida não volta para trás, preciso de todo o tempo do mundo só para mim.
Sónia olhou sem compreender, mas Miguel já tinha amadurecido aquela decisão. Não queria amarrar Sónia ao seu destino e, sobretudo, não queria que ela ficasse com ele por piedade. Perante o seu olhar suplicante, acrescentou:
- A minha decisão é irreversível. Tens toda a vida pela frente. O tempo tudo desvanece. Agora vai. Preciso de descansar e de pensar.
Sónia levantou-se e correu para fora do quarto. Soluçava e sentia-se perdida neste mundo cão.
***
Quando Miguel saiu do hospital, já o fez utilizando uma cadeira de rodas. Tentaria levar uma vida normal quanto possível. Havia que estudar e depois arranjar um emprego.
Na prática, no entanto, a vida era bem mais difícil. Havia muitas barreiras arquitectónicas. Não podia circular pela maioria dos passeios pois estavam cobertos de carros, não podia andar pelo meio das ruas, umas estreitas e perigosas, outras largas com carros a passar em velocidade vertiginosa. Quando pretendia fazer compras, assistir a um espectáculo ou entrar num café ou restaurante, tinha frequentemente de voltar para trás. Estava muito dependente dos outros.
Desistiu de Psicologia e frequentou um curso de Informática. Conseguiu um emprego e foi vivendo com a ajuda dos pais. Sónia tinha deixado de dar notícias. Chegou a temer que algo de mal lhe tivesse acontecido ou que estivesse doente, mas resistiu ao desejo de lhe telefonar.
*****
A mulher começou a ser vista deambulando com assiduidade nos arruamentos que circundam a igreja. Ninguém sabia quem era nem de onde vinha. Sempre vestida com roupas de cores escuras, quase sempre negras, tinha paradoxalmente um ar jovem e envelhecido. Vinha a andar normalmente, depois parava e começava a falar e a gesticular sozinha para espanto de quem passava. Quando julgava ter prendido a atenção de alguns transeuntes começava a falar-lhes dirigindo o olhar para o céu:
- O meu Deus é o verdadeiro. Não permite que haja doenças, nem fome, nem guerras. Protege os fracos. Não mata. Não nos torna infelizes. Não é como o Outro que, embora o digam omnipresente, permite que nos aconteçam todos estes males.
E continuava o seu discurso, sempre na mesma linha de raciocínio. Quando sentia que já não conseguia suscitar o interesse das pessoas ia-se embora.
O povo é fértil em imaginação. Diziam que ela tinha «ficado assim» desde que lhe morrera o marido. Para outros teria perdido um filho ainda novinho. Havia quem afirmasse que o noivo não tinha aparecido no dia do casamento. Um dia, uma velhota que ia a passar falou-lhe:
- Tu aqui? Vai para casa que os teus pais devem estar em cuidados!
Surpreendentemente ela obedeceu e foi-se embora. Logo alguém perguntou:
- Conhece-a? Ela aparece aqui tantas vezes...
- Mora aqui perto, para os lados do cemitério. O namorado não a quis mais. Ela caiu em desespero. Esteve mesmo a ser tratada por um psiquiatra. Era uma bela moçoila. Agora mais parece uma velha. Lá em cima, onde mora, é conhecida por «Sónia, a Louca». Todos temos pena e gostamos dela. Os mais antigos conhecem-na desde miúda.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui