“Severino” não tardou com o aparelho. Trouxe também papel, em folhas soltas rubricadas e numeradas, e uma caneta esferográfica.
— Está aqui o que você pediu. Acho melhor escrever a mensagem pra sua irmã, antes de usar o gravador.
— Acho que...
— Pode começar a escrever.
— No chão mesmo?
— Onde, então?
— Poderia me arrumar uma mesinha e uma cadeira.
— Vai escrevendo. Vou ver o que consigo, mas acho que está exorbitando.
Teotônio notou que o guarda falava por ranzinzice. Não sentiu convicção.
— Parece que estava pronto para me oferecer, só que precisava ouvir o meu pedido submisso.
Antes que principiasse a garatujar os primeiras idéias, voltou o outro com uma pequena mesa de plástico, uma cadeira do mesmo material e um abajur, cujo fio se estendia para fora da cela.
— Está tudo aqui. Você vai ver que a luz é suficiente pra enxergar as letras.
— Porque você não prende a lâmpada na luminária do teto?
— Está desligada a força. Já houve quem tentasse o suicídio, introduzindo o dedo no contato. Por isso, o interruptor não funciona. Eu já estou correndo o risco de me ver surpreendido com o fio do abajur. Por isso é que é tão fino.
— Somente gente louca tentaria promover fuga deste local, sem qualquer noção da vigilância externa.
— Pode acreditar que já tentaram, mas sempre sem sucesso. A maior parte, precisamos “despachar”.
— Esses “despachos” devem representar muito dinheiro perdido.
— Os fracassos nos obrigam a pedir cada vez mais, a cada internação.
— Estou intrigado com a sua assiduidade junto a mim. Será que você não descansa nunca? Sempre que penso em conversar, você aparece.
— Você é que perdeu a noção do tempo. Por exemplo, o último sono durou as horas que você marcou mais um dia inteiro. Você nem percebeu. Já aconteceram fatos semelhantes outras vezes. Como não trago a comida em prazos regulares, você deixou de saber quanto tempo faz que está com a gente.
— Você se incomodaria de dizer?
— Pra quê? Aliás, não tenho idéia exata, porque peguei este bonde andando. Não fui eu que recebi você quando chegou.
— Mas vocês não têm registro de tudo?
— Eles devem ter. Eu só tenho de cuidar de manter você saudável. Vai ou não vai começar a escrever?
Teotônio o que menos queria era desagradar o “Severino”. Acomodado junto à mesa, iniciou de imediato a escrita. Tinha na cabeça as principais diretrizes do que deveria transmitir à irmã, para apressá-la nas providências que lhe cabiam. Permaneceu escrevendo durante umas duas horas, enquanto o carcereiro aguardava com muita paciência. Duas vezes que suspendeu a caneta, foi admoestado, porque o outro tinha pressa.
— Vou ouvir você ler. Pode começar.
A letra estava legível, dada a excelente caligrafia. Contudo, havia sinais evidentes de descompasso emocional, de forma que trechos inteiros se apresentavam com tremores no manuscrito.
— Se eu não conseguir ler com ênfase, me perdoe.
Severino fez um gesto de desagrado.
— “Querida irmã Lídia. Estou aguardando ansioso o momento em que nos veremos de novo. Aqui onde estou, vou sendo tratado com muita deferência pelo...” Como é que devo escrever: seqüestrador, carcereiro, guarda?...
— Diga, simplesmente, “companheiro”.
Teotônio sentiu a provocação mas não revidou. Prosseguiu:
— “... pelo companheiro a quem cabe cuidar de minha sobrevivência. É ele quem me traz a comida e os remédios. Até me levou para consolar um outro...”
— Pode cortar a última frase.
— Eu também achei que não devia mencionar o fato. Vou continuar daí: “Ele me considera um prisioneiro exemplar, tanto que me trouxe uma mesa...”
— Isso também não pode constar. Vá direto ao assunto.
— Estava querendo impressionar pela solicitude de sua atenção para comigo.
— Isto aqui não é nenhum hotel cinco estrelas. Você pensa que vai ficar hospedado o resto da vida, com a regalia de ser servido?
— Pelo que entendi, devia demonstrar que estou bem.
— O que você disse no começo está muito bom. Quando é que vai implorar pra sair, pedindo que mandem o dinheiro?
— É para já. Quer ver? “Contudo, o sofrimento da prisão e do isolamento é terrível. Já estou perdendo as esperanças de retornar, porque o tempo vai passando e não tenho notícia de que providências vocês estão tomando para me livrarem deste pesadelo.”
— Isso é tudo?
— É.
— E levou quase duas horas pra tão pouco?!
— Eu não queria escrever nada suspeito aos seus olhos. Quando for ler, você vai ver que a entonação da voz vai ser suplicante.
— Pode começar a falar.
Teotônio limitou-se a limpar a garganta, para dar a inflexão exata à voz, de acordo com o que supunha que iria ser a exigência dos bandidos. Falou por não mais que cinco minutos, acrescentando algumas frases que não rascunhara. Disse uns “pelo amor de Deus!” e “pensem em mim!” suplementares e rogou à irmã que rezasse por ele. Teve muita vontade de contar a respeito das reflexões sobre a vida e a morte, acreditando que esses temas poderiam interessar a irmã no sentido doutrinário, mas resolveu ser mais incisivo quanto à necessidade de ser libertado.
Desligado o aparelho, quis saber a opinião de Severino.
— Não acho nada. Não sou eu quem decide. Se não gostarem, você fala de novo.
— Por que é que não gravam uma fita de vídeo?
— Não tem precisão.
Durante a ausência do guarda, pensou nas dificuldades do texto que redigira. Descobriu que fizera o pronunciamento muito mais emocionado do que o seu procedimento intelectualizado dos últimos tempos poderia levá-lo a pressupor.
— Em suma, vamos ver quanto tempo mais...
Foi interrompido pelo outro.
— Vai ter de falar a respeito da venda das propriedades e do restabelecimento de tudo depois, quando se vir de novo na direção das empresas. Vai ter de ser mais convincente.
O costureiro não esperava ter de voltar a se dirigir à família. Achou que a dramaticidade da situação era suficiente. Esquecera-se de que havia sério transtorno para os seus e também para os marginais.
— Será que vocês não querem escrever, para que eu apenas leia?
— Se preferir.
De novo sozinho, pôs-se a afligir-se como nos primeiros momentos. Meia hora depois, voltava Severino com uma folha totalmente escrita.
— Leia umas duas ou três vezes, antes de recitar pro gravador.
O texto era capenga, no entanto, reproduzia o pensamento dele de forma bastante próxima de alguém sumamente premido pelas circunstâncias adversas. Teve de reconhecer que estava muito melhor, para quem desejava ver-se livre do terror.
Depois que Severino saiu, imergiu Teotônio em profunda depressão. Pelo que havia depreendido do texto, existia certo desespero na atitude dos seqüestradores. Instintivamente, passou a afagar os brincos, com medo de que lhe cortassem a orelha.
— De que me adianta ficar a filosofar, quando há tanta miséria moral no mundo?
Se tivesse marcado no relógio, iria constatar que se passariam mais de quinze horas até se que se visse vencido pelo sono.