Quinze horas depois, todos os pequenos grupos estavam de volta. Clarinha se dispôs a ouvir os representantes das equipes, recomendando:
— Gastamos tempo demais em observações. Quando propus o tempo de vinte e quatro horas, desejava verificar se poderiam despender, de forma concentrada, não mais do que alguns minutos. Até mesmo, porém, a minha turma demorou mais de quatro horas na observação dos fatos mais significativos no vasto território chinês. Passo a palavra a Ana, encarregada da síntese esclarecedora.
— Meus amigos, começou a também jovem senhora, tenho o prazer de relatar-lhes que fomos conduzidos por locais de franco progresso, sem os inconvenientes dos desgastes da natureza. São tantos os trabalhadores e tão sutis as técnicas milenares empregadas na lavoura, por exemplo, que o solo se reconstitui por si mesmo, sem a extração exagerada dos recursos energéticos, conforme constatamos no Brasil. A China, vista como se encontra no momento presente, pode fazer estremecer quem tenha depositado esperança num país de tradição religiosa, dado que os últimos decênios viram crescer algumas gerações predominantemente materialistas. Entretanto, desde que a praga das drogas assassinas foi quase completamente expurgada, pôde surgir imensa força de trabalho, que vem dando sustentação à vida de todos. Não há grandes focos de miséria, apesar de não serem eficazes os métodos de distribuição de renda, já que muitos burocratas estão livrando-se da prestação do serviço obrigatório nas lavouras, nas fábricas ou nas minas. Mas essa era exigência muito incompreendida. Nos últimos anos, ares capitalistas têm chegado à atmosfera cultural das regiões urbanas, de forma que, o que possa parecer mero prejuízo, está a significar o início da integração mundial. Resta saber se, nos Estados Unidos, país pioneiro nesta nova fase de abertura da civilização chinesa, os valores filosóficos importados da China com os produtos do intercâmbio comercial poderão resultar em algo de proveito, no sentido das investigações de caráter espiritual. Para a implantação de amplo programa de restauração da natureza, existem indícios de que será exeqüível. Muito mais teríamos para acrescentar, mas urge a necessidade dos estudos científicos.
Clarinha fez sinal de aprovação e passou a palavra para Glória, jovenzinha de seus vinte e poucos anos, restabelecida de existência terrena de mais de oitenta anos. Não se fez de rogada:
— Deveríamos, na próxima etapa, estacionar em Seul, para o confronto entre os valores feudais remanescentes no substrato cultural com suas repercussões psíquicas e a modernidade tecnológica a exercer tirânico poderio sobre o modo de vida da sociedade em transformação, o que seria evidenciado no exame dos centros industriais voltados para o desenvolvimento dos equipamentos eletrônicos. Nada, porém, do que poderíamos apreciar iria dar-nos a satisfação do serviço fácil. É possível contagiar o povo no sentido de despertá-lo para a grave crise planetária e, mesmo, envolvê-lo nos trabalhos pertinentes à sustação ou diminuição do ritmo destruidor. Mas será preciso oferecer em troca as comodidades de uma vida regalada, porque não vemos perspectiva tão-somente evangélica. Os sacrifícios que se fazem em todos os focos de geração de riquezas incrementam os aspectos das recompensas materiais, o que não é privilégio destas populações, como temos visto pelo restante do mundo. Transformar a visão feérica do crescimento tecnológico em saudável concentração religiosa para muitos há de parecer simplesmente retrocesso, porque se perdem muitas das intuições cármicas, haja vista o abandono generalizado dos templos budistas, que se tornam, cada vez mais, centros turísticos. Recomendo que a viagem prossiga para a América do Norte, porque os companheiros de equipe desconfiam de que existem ali muitos pontos de contato com o pensamento predominante nas áreas asiáticas de desenvolvimento industrial. De qualquer modo, é preciso que ressaltemos que o nosso parecer deflui de observações assaz específicas, o que vale dizer que perdemos a noção de conjunto.
Clarinha não pretendia discutir as exposições antes de ouvir todos os relatórios. Assim, amainou os impulsos de muitos que desejavam esclarecimentos e solicitou que outro grupo se manifestasse.
Apresentou-se Rubinho, meiga criatura, gentil desde a carne, pronto sempre para a palavra amiga, o conselho oportuno, a compreensão irrestrita e incondicional, aparentando sessenta anos, mas sem a vetustez dos derrotados dos vícios e sem a languidez dos efeminados. Começou por ligeiro comentário geográfico:
A Índia não pode considerar-se um país: é um continente, cuja configuração demográfica exige do estudioso profundo conhecimento do arcabouço geológico, para integração do clima, dos recursos hídricos, das jazidas minerais, do aproveitamento do solo e demais itens que obrigam os naturais a se adaptarem a uma vida severa e simples, apesar da extraordinária riqueza em seus aspectos filosóficos. Esse contraste tem gerado inúmeras dissensões internas, porque um bilhão e muitos milhões de seres humanos não se irmanam com facilidade em torno de ideais comuns. O contato que mantivemos com os benfeitores regionais foi suficiente para nos levar a considerações otimistas, apesar do poderio militar crescente, tanto que possuem conhecimentos e, mais ainda, artefatos nucleares de imenso poder de destruição. Mas o interesse governamental não se estende para a conquista, senão que visa à manutenção da autonomia nacional. Não vemos como restringir os anseios de independência de diversas províncias, ainda mais porque é esse o sentido mais atual do que chamaremos de neonacionalismo, influência clara dos acontecimentos que envolveram a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e que chega aos líderes regionais pela facilidade que encontram em se deslocar para estudos patrocinados pelo próprio Estado junto às universidades do mundo todo. Enquanto, na Europa e nas Américas, as nações se juntam para a concretização de legislação favorável ao intercâmbio comercial, aqui estamos um passo atrás, porque o objetivo primacial é o da separação. Quem sabe, quando estivermos encarnados, já tenha chegado a hora da reunião destes povos sob nova ordem política e econômica? Fique a interrogação.
Felícia mantinha-se interessada, enquanto fazia anotações. Ao final da terceira exposição, suspendeu a escrita. Queria ouvir e refletir sobre o que tinham a dizer os que haviam escolhido observar o campo vibratório contíguo à crosta.
Apresentou-se o amigo João:
— Temo que não teremos como divulgar o Espiritismo, segundo o prisma de Kardec, entre as pessoas residentes nas diversas partes desta extensa região. Não se trata de considerar o fato tremendamente frustrante. Apenas é a constatação de realidade espiritual muito complexa, porque as populações são antiqüíssimas e profundamente cônscias das diretrizes, não diria religiosas, simplesmente, mas de culto e de forma. Por exemplo, na Índia, o retorno palingenético dos seres que não se dedicam ao aperfeiçoamento das virtudes é quase imediato, aproveitando-se da permanência para os estudos nas colônias espirituais bem poucas criaturas, por se terem cansado da fastidiosa repetição dos apetites sensórios e por terem logrado a liberação cármica da parte dos familiares que se constituem, a um tempo, em afeiçoados amigos e fortes obsessores, o que pode tornar-se em motivo de estranheza para quem se formou pelos padrões espíritas kardequianos. Em todo caso, esse é apenas um dos aspectos da problemática ideológica, no campo da visão da existência. Por incrível que pareça, encontramos, ainda hoje, quem aspire pelo Nirvana, fruto de intrincados silogismos emanados das condições subumanas de vastas camadas populacionais, onde a dor, a doença, o desespero e a morte prematura dos encarnados constituem o fundamento para a compreensão do não-ser como a negação dos sofrimentos e, portanto, a representação da própria felicidade. É um pensamento materialista por excelência, mas é tido como uma das mais profundas teorizações filosóficas produzidas pela humanidade, tanto que algumas linhas do sectarismo religioso crêem nessa orientação de vida após a morte como de divina revelação. Pediram para sermos lacônicos. Contudo, a partir das observações empíricas, estamos adquirindo meios de análise um pouco mais técnica dos eventos carnais e morais. Se esse era um dos objetivos dos professores, podem estar certos de que estão logrando êxito.
Adalberto encerrou a reunião, consultando a turma sobre a necessidade ou não de enriquecer as informações concernentes aos povos asiáticos, através dos relatórios finais. Recebeu a notícia de que todos estavam carentes de conhecimentos específicos, mas foi autorizado a inferir que a viagem deveria continuar, distribuindo-se impressas as comunicações restantes. Ninguém apoiou a idéia dos debates adicionais, justificando a atitude através da tremenda ignorância que viam em seus mananciais científicos. Desejaram recitar um pai-nosso, para se encontrarem no momento seguinte sobre o território norte-americano. E assim se deu.
|
