A caracterização dos problemas sulinos definiu-se pela necessidade de temperança e de moderação nos anseios de progresso civilizador, pela proximidade dos povos de fala espanhola, para os quais a qualidade de vida se tece muito materialmente, sem grandes aspirações evangélicas. Em todo caso, a miséria não faz pressupor que haja lutas revolucionárias à vista, a não ser pela difusão do ideal de separação do conjunto da Pátria, justamente porque se julgam no direito de usufruir as benesses territoriais, sem o forçado pagamento à União, pelo pressuposto de que tudo o que lhes é sugado reverte em benefício de certa aristocracia burocrático-administrativa, uma vez que não enxergam nenhum benefício sendo realizado em favor das regiões mais pobres. Até mesmo muitos dos que partem para o Norte, anunciam o seu sucesso em empreendimentos que exigem apenas trabalho, dedicação e esforço, o que não percebem nas populações daquelas zonas.
A turma da redação, não desejando deixar em branco o texto relativo às observações ali efetuadas, abriu discussão que merece registrada. Foi Maria quem se manifestou em primeiro lugar:
— Eis que verifico, na maneira de ser dos gaúchos, certa arrogância e imponência, pelas condições superiores de vida, em relação aos compatriotas. Temo que esta minha assertiva, uma vez divulgada, irá provocar o repúdio à nossa obra, não por ser pejorativa, porque eles mesmos se sentem orgulhosos (de certo modo, com inteira razão), mas por vir acompanhada da sugestão de que deverão abandonar o ideal separatista, para assimilarem os ensinos de Jesus, através da assistência aos irmãos carentes das demais regiões.
Fortunato, ainda desejoso de desfazer a má impressão deixada no outro dia, acrescentou:
— Mas não podemos iludir os mais abonados, quaisquer sejam os recursos que possuam a mais, dizendo-lhes que mantenham as suas características integralmente, sem aperfeiçoamento das boas qualidades e eliminação das que poderão vir a prejudicá-los no âmbito espiritual. Por outro lado, é preciso que se conscientizem de que devem ampliar sua visão da realidade, de sorte a se compenetrarem de que as gerações futuras não estarão isentas da contaminação universal que deflagrará a ruína da vida no orbe. Há círculos de benquerença a serem conquistados para além das fronteiras dos pagos gaúchos e somente com sério exame dos problemas gerais da humanidade é que lograrão efetuar a sua parte nos trabalhos de sustentação planetária.
Felícia também desejou cooperar, evidentemente aspirando a atrair a boa vontade dos leitores do Sul:
— Não podemos olvidar que a felicidade é má conselheira, no que tange aos sacrifícios carnais. Quem se alegra com bom vinho e se farta nas postas dos animais criados para o sobejo da mesa, quem ostenta portentosa saúde e alcança o equilíbrio entre a realidade e o nível das aspirações, há de viver com intensidade o presente, desconsiderando as sombras da preocupação com que vimos acenar de modo tão dramático. É o riso, é a festa, é a alegria, é o lucro do trabalho honesto e profícuo que dão amparo às atitudes que censuramos. Se conseguirem exterminar os núcleos ou bolsões de miséria dos centros urbanos, constituindo sociedade mais justa, quanto aos direitos de todos a uma vida saudável e espiritualmente proveitosa, não haveremos de cobrar sacrifícios, uma vez que será natural para os irmãos contribuírem para a obra de reconstituição da natureza. A leitura atenta do opúsculo haverá de resultar em inteligente percepção da necessidade de integração na tarefa comum. Afinal de contas, se cotejarmos as condições psíquicas das diferentes populações que analisamos, não haveremos de encontrar os maiores problemas justamente no operoso povo sulino. O mais é a luta natural de quem deve reconhecer-se imperfeito perante a sublimidade dos ensinos evangélicos.
Rogério não concordou com a exposição e disse-o com toda franqueza:
— Sei que sua intenção, Felícia, foi a de atenuar a apreciação dos efeitos nocivos dos hábitos incrustados na alma dos irmãos rio-grandenses-do-sul, bem como, acrescento eu, dos catarinenses e dos paranaenses. Mas julgo que é tão crítica a perspectiva do avanço dos males que não podemos tornar menos negro tal quadro, em função...
Maria, batendo palmas, solicitou a palavra:
— Para uma questão de ordem — esclareceu. — Estamos discutindo um ponto que havíamos resolvido não transferir para o livro. Os dois estão discursando como se as palavras devessem ser transcritas “ipsis litteris”. Talvez seja conveniente fazê-lo, mas não para chamar a atenção dos irmãos do Sul, mas simplesmente para demonstrar que nos expomos à incompreensão, à refutação, à negação mesmo de nossa existência, quanto mais como seres voltados para o exame dos problemas, na ânsia de partilhar das soluções. Querem saber o que mais? A nossa mensagem, como um todo, há de chegar às mãos das pessoas em todos os quadrantes da Nação. Que cada qual estabeleça o julgamento de quem são, do que fazem e do que precisam fazer para contribuir humanitariamente para o bem-estar dos semelhantes. Mais do que isso não poderemos solicitar por enquanto, no que concordo com a afirmação de Felícia. Haverá algum de nós de, uma vez implantado no seio desta população, captar recursos para despertar para o envolvimento de todos. Sendo assim, caberá a este grupo transformar em realidade tangível a demonstração da iminência da destruição dos meios de sobrevivência dos humanos, buscando não ressaltar como trágica a situação, porque Deus é amor, o que nos fará esperançosos de que tudo, nos próximos quinhentos mil anos, será esquecido.
O gracejo atenuou a seriedade da explanação da antiga feminista e foi Rogério quem recitou a prece de encerramento:
— Senhor, cá estamos envolvidos com tarefa superior às nossas forças. Sentimo-nos muito frágeis para levar a bom termo o audacioso plano de orientar filosoficamente as mentes encarnadas. Dai-nos luz para prosseguirmos sem esmorecimento, acrescentando mais sabedoria aos dizeres que pretendemos registrar, de molde a convencer os leitores de que precisam dispor-se ao exame de todos os atos, para descobrir os que são prejudiciais à vida como um todo. Fazei-nos evitar que a dissertação venha a ser simples devaneio mais ou menos poético, sem contextura científica, mas que sirva para incitar os irmãos à busca dos fundamentos racionais para a mudança dos hábitos e dos ideais, em função da suprema realização cármica impressa nas almas, sob o manto do amor de Jesus. Assim seja!
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