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Contos-->Um Homem Falhado -- 27/08/2005 - 15:07 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Frederico nasceu no início da década de quarenta numa família desafogada economicamente. Filho único, teve uma infância e uma adolescência quase sem história. Estudou até ao 7º ano de Liceu e decidiu ir trabalhar numa empresa do pai que se dedicava à manufactura de calçado. Gostava de trabalhar, o mesmo não se podendo dizer dos estudos. «Estudar faz queimar as pestanas» – costumava dizer.
Dois anos depois, teve de dar o nome para o serviço militar e, passados meses, assentava praça num quartel de Braga.
Nas colónias, os movimentos nacionalistas tinham começado a manifestar-se. Em Agosto de 1959, as autoridades tinham reprimido uma manifestação de estivadores no porto de Bissau, o que teria sido o ponto de partida para a guerrilha na Guiné. Segundo os dados do PAIGC a repressão tinha feito cerca de 50 mortos e cem feridos.
Em Junho de 1960, houve várias movimentações em Mueda, Moçambique.
Em Janeiro de 1961, ocorreu a revolta dos trabalhadores da firma Cotonang, na Baixa do Cassange, Angola. Forte repressão com utilização de meios aéreos. O MPLA falou, talvez com exagero, em dez mil mortos. Alguns dos seus militantes assaltaram a cadeia de Luanda em Fevereiro de 1961. No dia seguinte, houve sangrentos incidentes junto ao cemitério novo de Luanda. Cerca de 3 000 mortos. Dias mais tarde, novo ataque em Luanda à cadeia de São Paulo. Entretanto a UPA desencadeava chacinas terroristas no Uíge.
O pequeno enclave português do forte de S. João Baptista de Ajudá, situado na República do Daomé, foi atacado e invadido em Agosto de 1961. Goa foi ocupada pela União Indiana em Dezembro do mesmo ano.
Mau grado a obstinação de Salazar, os ventos da descolonização e da mudança sopravam também nos territórios administrados por Portugal. «Depressa e em força» o ditador enviou a juventude portuguesa para a fornalha da guerra. Frederico também foi mobilizado.

Desses tempos, ficaram-lhe para sempre estampadas na memória a figura da mãe, acenando com um lenço branco no cais, e a do pai, enxugando discretamente os olhos com as costas de uma das mãos.
Pouca gente terá capacidade para avaliar o que era o tormento daqueles dois mil jovens durante uma viagem por mar de duas semanas. Parecia um campo de concentração flutuante. Eram péssimas as condições em que viajavam, com cheiros horríveis que pioravam à medida que os dias iam passando, pois os cuidados com a higiene eram quase inexistentes. A saturação provocava enjoos e muitos já nem tinham força para subir ao convés para vomitar no mar.

Chegados a Luanda, eram logo encaminhados para cenários de guerra e aí começava o verdadeiro calvário: Frederico matou para não morrer, viu colegas com os corpos dilacerados, despediu-se com um simples olhar de amigos que eram evacuados e que nunca mais voltaria a ver, marchou pelo meio do capim tentando ouvir até o silêncio e viu um carro que ia à sua frente voar literalmente ao passar sobre uma mina, com pedaços de corpos e de chapa chovendo sobre a picada. Assistiu e participou em atrocidades e massacres de que hoje ainda não se fala, massacres que nem os intervenientes saberão alguma vez explicar. Apesar de tudo foi um dos que voltou sem ser na «caixinha de madeira», mas a sua vida estava destroçada. Começou a sentir os primeiros sintomas do que seria conhecido mais tarde por stress pós traumático. Pesadelos mesmo acordado, lapsos de memória e sustos ao ouvir determinados ruídos ou ao observar certos gestos. Chegou a atirar-se para o chão em posição de combate ao ouvir um estrondo que lhe parecera um tiro ou uma bomba.

Reocupou o lugar na empresa do pai, mas sem qualquer entusiasmo. Seis meses depois do regresso, os pais foram vítimas dum acidente de automóvel que lhes ceifou as vidas. Frederico ficou inconsolável. Uma semana depois, visitou o cemitério onde eles tinham sido sepultados. Depois, dirigiu-se tristemente para o carro e conduziu ao acaso. Parou junto dumas oliveiras à beira da estrada. Saiu do carro e foi buscar uma velha corda que se encontrava no porta-bagagens, pegando também numa cadeira de praia que ali guardava. Atou uma ponta num ramo duma árvore, subiu para a cadeira, que mal aguentou com o seu peso, e pôs a outra ponta à roda do pescoço. Nem teve tempo para pensar em nada, pois a cadeira desequilibrou-se e o seu corpo caiu com violência em direcção do chão. Não ficou porém enforcado. Partiu apenas uma perna. Desenvencilhou-se da corda e, apesar das dores horríveis, arrastou-se para a estrada esperando que alguém passasse. Assim aconteceu e, alguns minutos depois, foi levado para o hospital onde o radiografaram e lhe engessaram a perna.

Como filho único, tinha herdado todos os bens dos pais: a empresa, o dinheiro nos bancos, a casa de habitação e um apartamento no Algarve.
Começou um relacionamento com Dulce Proença, jovem advogada que o pai tinha contratado, durante a sua ausência em Angola, para se ocupar dos Recursos Humanos e de todos os assuntos jurídicos da empresa. Um dia Dulce informou-o que estava grávida. Casaram-se discretamente pelo Registo Civil, sem qualquer cerimónia nem festa. Meses mais tarde nascia o Tiago.
A saúde mental de Frederico porém ia de mal a pior. Quando estava acompanhado, apetecia-lhe fugir de todos os que estavam à sua volta; quando estava só sentia-se angustiado e fazia longas marchas a pé ou passeios sem destino no seu automóvel. As suas fobias eram tantas que começou a achar que endoidecia. Não podia olhar através duma janela, pois sentia a atracção pelo abismo. Não se sentia bem nos elevadores. Ao conduzir, sentia muitas vezes vontade de se precipitar por ribanceiras. Assustava-se com o toque dos telefones, com o barulho das buzinas, com o silvar das ambulâncias e, dum modo geral, com todos os sons. Nem uma só vez pensou em ir ao médico.
Um dia que se sentiu mais deprimido (as relações com Dulce também se degradavam), fugiu para a rua em cuecas e com um bivaque militar na cabeça. Talvez assim o levassem para algum hospital psiquiátrico, pois a vida estava a tornar-se insuportável. - «Estou doido, estou doido!», gritava correndo rua fora. Um polícia acabou por o deter. Levou-o à esquadra para identificação e telefonou para a mulher de Frederico, pedindo que ela lhe trouxesse roupa e o viesse buscar. «O senhor não está doido, está é enervado e deveria tratar-se» – disse-lhe o chefe da polícia.
Esta foi a gota de água que faltava para que a separação do casal se consumasse. Dulce partiu na manhã seguinte e levou o filho. Frederico ficou só, com a cabeça entre as mãos, sentado num canto do quarto. Parecia um cão acossado por uma matilha de lobos.
Dulce começou a tratar do divórcio, alegando a verdade: vida em comum impossível, em virtude de desvios de comportamento insuportáveis, a roçar a loucura. As cenas surrealistas que se passavam diariamente poderiam também ter influência no desenvolvimento do filho.
Frederico começou a definhar. A sua vontade era abandonar tudo e quase já nem trabalhava. Ainda teve no entanto a lucidez de admitir um velho amigo do pai para gerir a empresa e evitar o seu encerramento.
Isolava-se cada vez mais. Confidenciava àqueles – poucos – com quem conversava que em breve sairia de Portugal, talvez com destino a Angola. Pediu igualmente ao senhor Resende, o tal gestor, para ir tacteando eventuais interessados pois queria alienar os seus interesses na empresa, sem todavia pôr em perigo os postos de trabalho dos empregados. Ninguém sabia ao certo se ele estava a falar a sério ou se seria apenas mais uma «invenção» da sua mente, mas o certo é que as contas bancárias da empresa começaram a ser objecto de movimentos inexplicáveis... Dulce, quando tomou conhecimento de tudo isto, alarmou-se preocupada sobretudo com o futuro do filho. Embora a contra gosto, iniciou um processo judicial baseado no estado mental de Frederico, de modo a que ele fosse considerado inimputável e não pudesse movimentar ou negociar os bens patrimoniais.

Tudo se passou muito rapidamente e um dia, quase sem Frederico se aperceber, vieram buscá-lo e transportaram-no de ambulância para o Hospital Psiquiátrico de Sobral Cid em Coimbra. «Que era para o seu bem» – afirmaram-lhe...
Dulce e Tiago visitavam-no nos fins-de-semana e ele, que passava os dias questionando-se sobre o que lhe estava acontecendo, quando os via chegar ficava mudo, olhando a janela gradeada do seu quarto sem pronunciar uma só palavra.
Era medicado com comprimidos de todos os feitos, tamanhos e cores. Ansiolíticos, anti-depressivos, calmantes, sedativos e muitos outros. A pouco e pouco foi perdendo o apetite e quase deixou de comer. Mesmo que quisesse, não conseguia engolir. Sentia a língua, a boca e a garganta como se fosses feitas de cortiça e andava sempre munido duma garrafa de água, que bebia sofregamente e amiudadas vezes. Em breve sentiu também a perda de equilíbrio. Sentiu-se como naquela viagem que o levara a terras angolanas alguns anos atrás, com o chão dançando debaixo dos pés. Cada vez se sentia mais fraco e, não fosse a água que ingeria, decerto já teria desmaiado.
Um dia, quando o médico o visitou, gritou-lhe: «Eu não estou louco, senhor doutor!».
«Todos dizem o mesmo...» – comentou o médico para um dos estagiários que o acompanhava.

Frederico viu os incêndios daquele Verão a assolar Coimbra. De madrugada, as línguas de fogo pareciam aproximar-se do Hospital. Relembrou um acidente de helicóptero a que assistira em Angola. Ao fazer a aproximação, volteando sobre o local onde se encontravam vários feridos para serem evacuados, o aparelho despenhou-se no solo e incendiou-se. Relembrou os vultos que se mexiam no meio das chamas e explosões, os gritos e o cheiro a carne queimada. Depois, apenas o estalido de alguns ramos secos que ainda ardiam e, finalmente, o silêncio sufocante da floresta.
Desejou que as chamas chegassem mesmo ao Hospital. Certamente que tentariam evacuá-los, mas ele iria barricar-se. «O fogo seria a sua purificação!».
O incêndio foi no entanto extinto e os dias, as semanas e os meses continuaram a suceder-se monotonamente. Dia e noite, Frederico vagueava pelos longos corredores e jardins, falando sozinho. Nem reparava naqueles com quem se cruzava: agora um médico, ali uma enfermeira, mais além um louco...
Quem apurasse o ouvido, ouviria ele repetir incessantemente com voz rouca e em tom muito baixo: «Tenho a vida destroçada, mas estarei doido ou serei unicamente um homem falhado? Nem eu sei!».
Um dia não acordou. Foram dar com ele morto. Levara uma semana sem tomar os compridos e engolira-os todos duma só vez.
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