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Contos-->As mortes da minha vida -- 08/08/2005 - 02:31 (Rodolfo Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
1

Morrer mais uma vez, rotina que já me cansei de cumprir. Sentir o salgado sabor da terra na boca, ouvir a música fúnebre ao meu redor, mesmo que ninguém jamais tenha me acompanhado verdadeiramente nesta trajetória sempre coberta por um céu espesso, cinzento, debochado. O tocar das botas dos coveiros sobre a terra úmida produz uma sonoridade típica da derrocada, como se um barranco revolvesse as paredes de minha casa e eu, em vão, tentasse nadar contra a maré de lama, ainda que consciente da inutilidade da luta. Os algodões no nariz impedem que eu possa sentir o cheiro do acontecimento, muito embora imagine como deve ser. A fertilidade dos meus pensamentos a respeito mutila qualquer tentativa de desejar saber concretamente qual o aroma desta e das outras funestas datas. O frio consome ligeiramente meus braços. No entanto, não agride a pele como outrora.
Não posso mais perceber qualquer resquício de luz pelas frestas que me mantêm minimamente conectado ao mundo exterior, ou melhor, ao passado. Repentino, um som rompante surpreende minha tranqüilidade e arregala meus olhos em um raro susto. Meus nervos flácidos já haviam perdido o hábito da reação. Todavia, naquele microssegundo, despertei irremediavelmente para um par de pupilas não estranhas, vistas que algum dia de minhas múltiplas vidas já haviam percorrido meu rosto – não sei se por repreensão ou por amor. A única certeza que me cobria era a de que o rosto que me abria a tampa do caixão era familiar ao extremo.
O Sol, incômodo, ficou escondido atrás dos cabelos lisos que, tridimensionais, eram a parte mais próxima do meu rosto. Mais ao fundo, em perspectiva, uma pele branca, de textura floral, sorria em compasso gradual, como se o mundo – em sua totalidade – assumisse passos lentos e calculados. Eu nunca havia ressuscitado de uma maneira tão bela.
Por outro lado, a consciência do renascimento ainda não atingira minha esfera real de cognição. Tudo era turvo, a única visão que se fazia clara naquele momento era a da bela face que me abria inexplicavelmente o portal da vida, justamente naquela que seria provavelmente a morte definitiva.
Alguns segundos mais tarde, uma pequenina mão, fria tal como a temperatura de minha superfície, acariciava as fronteiras trêmulas de minha boca, transitando sobre as falésias que o gelo cortante do vento riscou nos lábios. No primeiro instante, não consegui absorver o toque, mas, como alquimia, uma estranha energia dissipava-se por meu rosto. A reação, jamais experimentada por mim, causava-me medo. Afinal, nunca fui interrompido em meus processos de mortificação. De uma hora para outra, surgia uma menina, interpelava o andar natural do rito e, ainda, concedia-me – não sei se merecidamente – um sopro adicional de vida.
Senti meu rosto quente, tomado por uma labareda sangüínea que se alastrou rapidamente pelos vasos e culminou com a força daquela pequena mão puxando-me para fora da caixa de mogno.
As articulações, vacilantes, quase não responderam ao chamado. Repentinamente, porém, estava em pé, ereto, com uma expressão altiva que se furtara há muito dos meus traços. A luz ofuscava-me por conta da escuridão quase permanente e inevitável. Um prazeroso e profundo suspiro retumbou em meus pulmões. Saiu de mim um ar velho, cansado, dando lugar a uma brisa de jovialidade que se traduzia nos contornos dispostos ao meu lado esquerdo. Primeiramente, a mão – a mesma que me retirara do claustro fúnebre em que mergulhei pela décima vez. Depois, percorri a observação com atenção rara para meu jeito distraído: cabelos lisos, alva, roupa negra, estatura baixa. E a voz, suave, veio à tona:

- Não sei por qual razão vim aqui, mas está salvo – disse a mulher, pausadamente.

- Não sabe? Mas, por que não me deixou seguir no cortejo? Eu sempre acabo voltando! – retruquei, intrigado.

A mulher, radiante como adolescente, exercia-me um descomunal magnetismo. Todo o mistério em que me envolvia aumentava o estado de confusão mental. Não sabia quem era ela, onde eu estava, tampouco poderia criar hipóteses sobre o porvir.

2

Esta última morte deu-se da forma menos criativa, se comparada às anteriores. A dor foi sentida a conta-gotas, sem uma ruptura brusca de pele e nervos. As lágrimas foram despejadas ao longo de dois anos e brotavam sem aviso. De repente, lá estavam aquelas corredeiras ácidas sobre minhas faces, abrindo mais uma trilha de tristeza por uma epiderme ainda sem rugas.
Lutava bravamente pelos resquícios de vida que se apresentavam. Porém, custei a enxergar que a melhor solução seria abraçar o ocaso e morrer novamente, sem traumas. Sangrei paulatinamente, tendo o desprazer de enxergar os chãos pintados em pontilhismo pelas marcas vermelhas da sofreguidão à qual estava entregue. Enfrentava o inimigo, sabendo ser ele mais forte e resistente. Eu, na perseverança inútil que contamina os orgulhosos e obcecados, sucumbi devagar, provando diariamente a amargura da derrota irreversível.
Tamanha penúria fez-me acreditar, no momento em que abri os braços desfalecido, que aquela era a derradeira e, com isso, o ciclo de crepúsculos e amanheceres da mesma vida minha estava encerrado. Enfim, as agruras sobre as quais pisei aparentavam ser a brasa última das penitências que fui condenado a pagar. Preço alto, dor latente, acomodado no caixão do repouso, vem a mulher e me arrebata profunda e estranhamente, trazendo-me para o mundo novamente por um ângulo nunca experimentado. Mas, daquela vez, o ressurgir já estava consumado. Mal abandonei uma história e já estava construindo outra. Desta vez, um novo personagem, de cabelos lisos, perdia-se no horizonte. Era ela que deveria seguir – simplesmente para não morrer por mais uma oportunidade perdida.
Mas que oportunidade? Uma violenta descarga de coragem lançara-me na direção dos passos que aumentavam de velocidade. As pernas começaram a desprender-se aos poucos, recuperando o hábito da caminhada. Alguns estalos nos joelhos, articulações reaprendendo o ritmo da andança, sempre apressada nos tempos de vida. A troca de passos, progressivamente lépida, já era corrida. Ofegantes, os pulmões se expandiam, sem fôlego pelo cansaço e ansiosos por uma substância apaixonante e repleta de flamas que tomava os músculos que, há muito, não experimentavam plena atividade. Os olhos recuperavam o brilho, as mãos abriam-se e, retesadas, auxiliavam no processo de alcance da menina que rumava para o pôr-do-Sol, aparentemente sem dar esperanças de outros contatos. Quando percebi, meu corpo estava em absoluto estado de leveza, automatizado naquele compasso rápido, feroz, definitivamente vivo. Já os cabelos lisos, escuros e reluzentes bailavam como pêndulo à medida que a pequena desviava dos arbustos rumo a um destino que eu nem sonhava conhecer. Se mal sabia por que eu estava ali, renascido e borbulhante, que dirá teorizar sobre quem era aquela pessoa, suas emoções e motivos. Meu único impulso era de segui-la indefinidamente. E ela, persistente, não olhava para trás.

3

Ruiz cumpria mais um dia de sua rotina filosoficamente moderna, enraizada nos meandros da segurança, de uma liberdade em que se considerava impensável transbordar os limiares do aceitável. Vestia-se de um modo desleixado, gostava de músicas estranhas, cujos sons desordenados remontavam a sinfonias caóticas tais como O Anel dos Nibelungos ou a sobreposição frenética de Stockhausen. Convivia, falsamente, entre pilares progressistas e conservadores. Sob pressão, preferia recorrer ao colchão macio e às encenações, figurando sempre como vítima quando desfavorecido. Mantinha seu círculo de relações – familiares, amorosas e de amizade – graças ao método absolutamente privado de riscos. Sabia transgredir apenas na fronteira típica das paredes do quarto, entrincheirado no macio colchão branco em que enterrava seus sonhos, sem jamais esboçar um movimento para tocar qualquer nuvem que fosse.
Trancafiado no aposento, não se ocupava ao menos com um volume de vinte páginas para tentar incutir algo na cabeça desmemoriada. Ficava à beira da cama, imóvel, observando atentamente o vazio, as frestas do chão, os flocos de pó que flutuavam à luz dos feixes que venciam a barreira da janela fechada pela manhã.
Seus pais, alheios tão ou mais do que o primogênito, cumpriam diária rotina aos moldes da revolução industrial. Cama, banheiro, café-da-manhã, jornais, conversas sobre o dia que passou, almoço, televisão, livro, conversa, jantar e um pouco de trabalho. Trinta anos de repetições, rotina, cotidiano, acomodados sobre a mole superfície do trivial. Um passo fora da linha era tido como heresia. Mantiveram o pequeno Ruiz sob o fardo dos grilhões rígidos da educação imposta por tabefes, castigos, cantos-de-sala, xingamentos à beira da rua e vigilância permanente. Nada que fugisse muito ao universo da época, fundamentado nos alicerces da opressão e das grandes lentes do Estado. Enquanto os jovens ansiavam por saltar os muros cortantes do aprisionamento, Ruiz assentava-se com seu capuz sobre o chão, aguardando o chegar da noite e de sua prometida.
Lara era aguardada com insatisfação. Dez minutos atrasada, ou seja, quebrara pela primeira vez os irrompíveis padrões de conduta dos Ruiz. Em um primeiro momento, elucubraram ser uma irresponsabilidade da garota descumprir a visita no horário de praxe. Depois, o apavoramento subiu às mentes de todos de maneira sincrônica. Um notava nos olhos do outro o temor e, em cadeia, espalhava-se o medo. Questionavam-se sobre o que poderia ter ocorrido com a garota. Mais dez minutos até pegarem o telefone. Ninguém na casa de Lara. Mais um chamado e nada.
A garota morava sozinha e, pontualmente, como defendiam os pais de Ruiz, ela sempre deveria cumprir o ritual de chegar às 18h30, pouco antes do jantar. Assim, psicologicamente, poderiam atestar a retidão de Lara, recomendada como a “mais perfeita das jovens de San Juan” pelas maiores autoridades da cidade. Ávidos por ascensão estética e social, os Ruiz enquadraram rapidamente o casal na moldura dos seus desejos. Trinta minutos e nada.




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