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Contos-->O SONHO DO MENINO POBRE -- 05/06/2005 - 11:17 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Calças sujas, camisola desmesuradamente grande e botas rotas, cobrindo as peúgas esburacadas. Vacilando, vai o menino pela rua, olhando o chão, talvez à espera de encontrar algo que nem ele sabe o que é. É noite de Natal e está quase tudo fechado. Restam as iluminações exuberantes e as montras ainda iluminadas. Àquela hora, na maioria das casas, juntam-se as famílias para a ceia natalícia e para a troca de prendas.
António pára em frente de uma montra e olha os brinquedos com olhos esbugalhados. Nem sabe para que servem alguns, nem como se brinca com outros. O olhar entristece-se, fecha os olhos e sonha que é um menino «normal», com uma boa casa, com uma família amiga e com brinquedos. Sente frio e afasta-se, apressando o passo. Em breve outra montra, agora a duma pastelaria. Lá dentro ainda há pessoal. Esfrega a barriga vazia, olhando os bolos e os chocolates. Engole em seco e quase encosta o nariz à montra, embaciando-a com a respiração. Puxa a manga e passa a mão pelo vidro. Prepara-se para seguir quando a porta da pastelaria se abre e lhe vêm trazer um bolo. Agradece quase a medo e o empregado pergunta-lhe se quer uma bebida quente. Fazem-no entrar, enquanto lhe aquecem um copo de leite e lhe dão mais uns bolos. Mais confortado, agradece, sai e segue o seu destino. Aliás, seria mais correcto dizer que António segue sem destino.
Mais uma vez fugiu de casa para não presenciar, impotente, a cena que se vem tornando habitual nos fins-de-semana. O pai chega a casa embriagado, discute com a mãe e bate-lhe com violência. Uma vez ainda se meteu à frente, mas foi parar ao hospital. O pai nem repara que ele sai, seja a que hora for, tal é o seu estado. A mãe, essa, até deseja certamente que ele saia, para não ser igualmente sovado. Mais tarde volta para casa, quando o pai já não está, e abraça-se à mãe sem palavras nem explicações. Desta vez a tristeza de António é a dobrar, pois sabe que é noite de Natal. Sente frio e procura um sítio para se abrigar. Vê uma porta aberta num prédio tranquilo. Entra e deita-se num vão por baixo de uma escada de madeira. O cansaço é tal que em breve adormece e tem um sonho maravilhoso.
Está numa casa «a sério». Tão diferente da barraca em que vive! Casa aquecida e bem iluminada. Pessoas contentes e crianças a brincar. Curiosamente, António é uma delas. Uma árvore de Natal, mesmo de pinheiro, e muitas prendas embrulhadas em lindas embalagens, rematadas com vistosos laçarotes. Comem bacalhau com couves e doces, muitos doces tradicionais. Quando chega a meia-noite, procede-se à entrega das prendas e é com os olhos arregalados que António recebe várias. De tudo um pouco. Uma camisola, umas calças, vários livros, uns lindos ténis, uma bola e um carro, onde ele cabe e até pode mexer o volante. Toda a gente recebe prendas.
Um empurrão na porta da rua acordou-o. Encolheu-se para que não o descobrissem e ouviu muitas vozes escada acima. Voltou a calma e o silêncio, mas já não conseguiu dormir. Ficou de olhos fechados, revendo o sonho e jurando a si mesmo que tudo fará para ter uma família assim, quando for homem.
Ergueu-se e saiu de regresso a casa. Um denso nevoeiro começava a dissipar-se, com o vento que entretanto se levantara. Aconchegou a gola, meteu as mãos nas algibeiras e encostou-se o mais que pôde aos prédios, para se resguardar do frio e da cacimba. Apesar do nevoeiro, não teve dificuldades em se orientar pois não se afastara muito. Parou em frente da zona das barracas, olhando para a sua. Silêncio absoluto, em breve cortado pela sucessão de corridinhas de um rato que saíra de uma das casas.
Atravessou a ruela, empurrou a porta e entrou. Depois de habituar os olhos à escuridão, constatou que o pai já lá não estava. Tirou as botas e deitou-se no colchão, mesmo vestido, ao lado da mãe. Sentiu umas mãos que o afagavam e adormeceu novamente.
◊◊◊◊◊
O ancião atravessou a casa com andar trôpego, apoiando-se numa bengala. A mesa estava posta. A árvore de natal estava iluminada e rodeada de pacotes multicolores de todos os tamanhos. Sorriu com ar feliz. Os filhos estavam a chegar com as suas mulheres. Os netos também. Só Matilde, a velha companheira de tantos anos, não estaria presente, pois deixara-os no fim do verão, depois de muito sofrimento.
A campainha tocou. Dirigiu-se à porta e logo duas crianças o rodearam enchendo-o de beijos. Depois os adultos – os seus filhos. Vinham todos molhados pois chovia imenso. Puseram-se à vontade e a filha e a nora dirigiram-se logo para a cozinha com o que traziam. Antes, era Matilde que preparava tudo, chegando a levar quase uma semana a fazer doces. Agora traziam a comida e os doces já confeccionados.
Comeram com alegria. Só ao ancião, de quando em vez, se lhe toldavam os olhos, lembrando-se da companheira ausente.
Quando o relógio da sala tocou as doze badaladas todos se dirigiram para o pinheiro de natal. Havia prendas de e para todos.
António, com um sorriso, semicerrou os olhos e viu que tinha conseguido realizar o sonho de ter uma família feliz. Levantou-se com esforço e dirigiu-se também para junto da lareira junto da qual estava a árvore. A tempo de receber três embrulhos iguais. Abriu-os um a um e viu três molduras. Numa, o seu neto Tiago, noutra a sua neta Sara e, com curiosidade, olhou a última... Era Matilde – a sua mulher que afinal, assim, também estaria presente. Olhou para todos, emocionado, reprimindo as lágrimas para não estragar a festa, e disse-lhes: «Obrigado meus filhos, valeu a pena ter vivido!».
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