Era uma mulher forte. Tinha o hábito de dizer que Deus a privilegiara e que lhe dera a condição das heroínas. Casou-se diversas vezes e deu origem a ramos familiares sob nomes diferentes, mas, se tivesse colocado o seu, teriam sido mais autênticas as pessoas na identificação matriarcal.
Voltou ao etéreo muito contente com as realizações cármicas, designando os círculos da vida e da morte como de regeneração, de conforto moral e de confraternização, pelo resgate das dívidas. Solidarizou-se com os benfeitores e pôde dividir com eles a glória dos créditos com que pleitearia ascender a esfera de maior magnitude moral.
Contudo, foi-lhe prescrita a matrícula na “Escolinha de Evangelização”, com o que, pela primeira vez, desde muitos séculos, não concordou. Tinha indeléveis na memória as passagens sacrificiais da derradeira peregrinação terrestre, as frustrações sociais, as dores dos partos, o sofrimento com as doenças dos filhos, a superior paciência com que corrigia os defeitos deles, a intolerância dos adventícios familiares, o azedume final dos mais novos, quando, após os noventa anos de idade, foi considerada grande peso para todos.
— Você não freqüentou nenhuma escola na terra.
— Dei de mim acima do que se espera da mulher ignorante. Aprendi com as lutas.
— Você não sabe somar dois com dois.
— Fiz a conta de nove filhos do primeiro matrimônio, com os dois do segundo e mais três do terceiro. Tive quatorze rebentos saudáveis, que criei com amor e carinho. O quarto casamento não foi fértil. Será que, após os quarenta e cinco, as pessoas, sem poderem procriar, devem se abster do sexo?
— Você não tem nenhuma condição de orientar simples parto normal.
— Sei tudo quanto a minha experiência me ditou. Se não acompanhei o nascimento dos netos e bisnetos, foi porque as filhas, netas e noras preferiram a assistência dos doutores.
— Chamada ao etéreo, em estado sonambúlico…
— Quer dizer, durante o sono?
— Isso mesmo. Naqueles momentos, você concordava em não correr riscos, porque poderia provocar problemas para os quais não estava preparada.
— Vocês me instigaram a dizer “não”. Querem agora dizer que deveria ter assumido essa espécie de responsabilidade?
— Não, exatamente. Queremos que entenda que precisa volver ao plano terreno, para aprender outras noções, agora sob a condição científica, aproveitando-se do fato de ter trabalhado muito eficientemente pelos outros.
— Não é o que o Cristo pregou em seu evangelho?
— Isso foi há dois milênios. No pórtico do terceiro milênio, os seres humanos haverão de verificar que a pureza de conduta caminha “pari passu” com a necessidade de salvar os recursos da natureza, o que só ocorrerá se o homem tiver condições de avaliar os males que vem promovendo e, principalmente, os meios de que lançará mão para o restauro do paraíso que está em vias de perder.
O protetor acrescentou, à guisa de encerrar a conversa:
— Pense seriamente nisso.
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