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Erotico-->18. FERNANDO -- 25/11/2003 - 06:32 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Mal Adonias saiu da sala, topou com Alice, Adão e Anésio, que o esperavam. Ocorreu-lhe, logo, que haveria novidades. Antes, porém, que ele manifestasse estranheza, foi Anésio dando-lhe os parabéns:

— Que belo encerramento de atividades, querido professor!

— Você acha que todos vão responder por escrito e desligar-se do curso?

— Sem dúvida, porque a turma foi bem orientada no sentido de assumir a responsabilidade pelos estudos nessa área. Digo mais, e eu acho que Adão concorda comigo, que, doravante, serão excelentes alunos quaisquer venham a ser seus interesses.

Alice acrescentou:

— E eu acho, bom amigo, que você irá receber uma nova turma, porque tenho sentido que a sua fama está firmada.

Adonias se regalava, como se tais palavras lhe afagassem, não o “ego”, que ele fazia questão de sufocar, mas o ideal de caridade que julgava amortecido. Perpassou-lhe pela mente que poderia ser já o resultado dos trabalhos manuais, mas rejeitou a intuição por prematura. Então, quis demonstrar modéstia:

— Ora, vamos! Três aulinhas e já o povo corre para mim... Acho que fiz tão pouco.

Alice reiterou:

— É que você trata de um tema de interesse. Por mais que as pessoas leiam Kardec, na crosta ou no etéreo, sempre fica a suspeita de que se está ofendendo a Jesus, porque a fé e tudo o mais perde o “status”, a categoria de dogma e passa a fluir diretamente do seio das leis naturais. Mas, ao saberem que você foi sacerdote católico, que busca ainda em Jesus suas forças espirituais, o fato de respeitar os cânones e os postulados do espiritismo de Kardec o eleva na consideração das pessoas que gostariam de entender melhor o cristianismo, sob o ponto de vista primitivo e sob o ponto de vista científico. Você está tornando-se, assim, um modelo, um exemplo, um paradigma, um símbolo...

Adão interrompeu a longa peroração, porque percebeu que os encômios já não estavam sendo os do público mas da moça apaixonada:

— Minha filha, querido rebento de minhas ânsias paternais terrenas, não vá adiante...

Foi Adonias quem se pôs de orelha em pé e obstruiu a manifestação de seu protetor:

— Eis uma revelação que eu não esperava. Por que não me disseram antes que são pai e filha?

Anésio assumiu a obrigação do esclarecimento:

— Pai, filha e avô, porque Alice é minha neta. Mas não confunda: Adão é, ou melhor, foi meu genro, não meu filho. Nós não lhe citamos o fato antes por uma razão que você irá entender.

— Por favor...

— Acontece que os vínculos sangüíneos poderiam ter para você uma conotação diversa do real afeto que lhe nutrimos.; poderia parecer-lhe que só o estávamos atendendo por rogo ou por defesa dos interesses sentimentais de nossa menina. Todos os nossos atos perderiam o efeito socorrista e passariam a ser tidos como de comiseração ou compaixão, não pelo ser que você é, mas pelo que representa para Alice. Não quisemos arriscar-nos e nos congratulamos por termos tido sucesso, tanto que aprendemos a considerá-lo verdadeiramente no âmbito de nossa família, apesar de, historicamente, sempre nos situarmos em congregações carnais diferentes.

Adonias estava perplexo. Bem que desejara reconhecer tais personagens nas várias existências corpóreas, sem sucesso, porém. Agora, se via diante de algumas personagens meio apagadas em sua memória, ninguém que lhe tivesse chamado particularmente a atenção. Imaginou, de relance, que a deficiência era dele, incapaz de reconhecer os méritos alheios, por causa de seu acendrado egoísmo, orgulho, vaidade. Mas não teve tempo de explorar esse veio de seus relacionamentos, limitando-se a abraçar cada um dos amigos, enlaçando Alice pela cintura, momento que percebeu um forte movimento emocional a indicar uma agitação íntima de certa importância. Ia elaborar uma pergunta, quando Anésio falou:

— Adonias, temos notícias de seu pai, Fernando. Prepare-se para uma agradável surpresa. Ele está na ala hospitalar desde ontem. Nós só não o avisamos antes porque não desejávamos perturbar-lhe a exposição de agora há pouco.

Adonias fez um gesto para que os demais o ajudassem a restabelecer seu equilíbrio mental e sentimental. Agoniou-se um átimo de segundo, não pela notícia em si, nem porque tivesse ainda qualquer problema com seu progenitor, mas porque temeu vacilar. Foi um instante de indecisão quanto a que esperar de si mesmo, mas sem seqüelas, que logo lhe veio à mente a misericórdia divina que estende seu manto protetor a todos os filhos que demonstram boa vontade e se humilham diante da vontade do Senhor. Restabelecido, após a brevíssima prece que foi o seu sentimento de fé em harmonia com o desejo de rever o pai, perguntou:

— Vocês vieram em comissão, evidentemente, para me auxiliarem, caso eu lhes causasse problemas. Mas também, eu acho, para me informarem do estado geral dele e dos cuidados que preciso ter para não perturbar o tratamento de que deve estar sendo alvo. Pela minha experiência pessoal, concluo que os desvelos só podem ser diretos depois de a entidade criar condições de superação dos traumas e ser capaz de controlar as reações psicossomáticas, se me permitirem utilizar-me deste termo tratando do perispírito e não do corpo denso da Terra.

Adão deu seqüência às explicações:

— Você captou perfeitamente as idéias que viemos instalar em seu campo cognitivo. O que você que saber especificamente?

— Quero saber se ele se reconhece morto. Pergunto isso porque acho muito difícil a um suicida permanecer na ilusão de que está vivo, dado que o seu maior suplício se concentra, justamente, no fato de haver retirado a própria vida, perdendo preciosa oportunidade de resgate de débitos.

Disse Adão:

— Ouça bem. Preste atenção. Nada do que podemos dizer-lhe é definitivo. Nós suspeitamos de que Fernando irá sofrer uma crise ao vê-lo. Portanto, é de todo aconselhável que você apenas se insinue com o fito de captar-lhe a confiança, demonstrando-lhe carinho, boa vontade, fazendo-lhe algo que ele possa perceber de utilidade, interessando-se pelo bem-estar, pelo conforto e pela paz moral do enfermo. Saber que se trata do filho que se desencarnou por culpa dele não é o mais importante.

— Vocês três postergaram a informação de seus laços de família para terem ensejo de torná-lo uma lição para mim. E depois vieram dar-me os parabéns. Hipócritas!...

O riso dos quatro selava uma amizade que prometia jamais romper-se.

Adonias percebeu que reassumira o domínio sobre si mesmo e cresceu-lhe o desejo de ver imediatamente o pai:

— Se ele estiver inconsciente, não poderei aproximar-me para depositar em sua mão meu beijo reverente, pedindo-lhe que me abençoe, tendo em vista ter-lhe causado tantos desgostos, o último dos quais penso que involuntário, porque não me lembra o fato de ter desejado morrer para puni-lo com tal sentimento de culpa, embora sejam tão complexos os procedimentos da maldade que não descarto até esse impulso, que teria o condão de ser absolutamente inconsciente, como um movimento peristáltico de minha mente conturbada por emoções da mais baixa moralidade. Sei que é muito recente o meu despertar para o vislumbre do bem, o que gera um certo desconforto íntimo, já que nem tudo está sob controle de minha vontade. Ainda há pouco, qualquer que tenha sido a razão do meu desfalecimento e por pouco expressiva duração que tenha tido, a verdade é que me senti titubear. Por outro lado, o fato mais evidente que me chega à razão é de que nenhuma criatura é perfeita, como nos ensinou Jesus como condição para adentrar o reino de Deus, o que me leva a considerar que ainda devo trilhar caminhos ínvios e perigosos para a aquisição das virtudes que me conduzirão ao patamar seguinte de nossa escalada evolutiva. Penso, entretanto, que preciso dar uma demonstração de afeto àquela criatura que me acolheu em sua família e me criou condições de progredir, até chegar a esta felicidade transitória pela qual estou passando atualmente.

Os outros três prestavam muita atenção, cada qual oferecendo vibrações de apoio e elevação de ânimo, tocando-o, a gerar corrente energética positiva, de sorte que, nos momentos menos otimistas, Adonias se viu a si mesmo como se se tratasse de uma outra pessoa, sendo, portanto, capaz de raciocinar com mais frieza a respeito dos deslizes que cometera e dos próximos embates que via como necessários.

Anésio se manifestou:

— Seu pai está quase o tempo todo distante da realidade que o circunda. Acredito que, com prudência, você poderá chegar-se a ele, desde que consiga refrear todas as recordações desagradáveis, amparando-se emocionalmente nos dias de maior ventura que passaram juntos, seja no etéreo, quando de seu encontro para a marcação do compromisso da reencarnação expiatória, com laços tão estreitos de parentela, seja no orbe terráqueo, quando vocês tiveram oportunidade de conviver em alegria nos folguedos entre pai e filho.

Adonias, à medida que Anésio ia desenvolvendo os tópicos em que os encontros foram positivos, ia deixando-se embalar por aquelas recordações, a ponto de indeferir todos os requerimentos de sua inferioridade latente, a qual ele vinha soterrando sob os escombros das ruínas onde seu passado redescoberto estava jazendo, após haver compreendido que agira muitíssimo mal e que reconhecera o caminho que Jesus lhe abrira ao longo do qual iria avançar carregando sua cruz às costas.

Foi Alice quem tomou a iniciativa:

— Eu bem sei que este nível de reflexão é indispensável, contudo, vejam bem, nós temos força para sufocar alguma queda de tônus sentimental que pudesse vir a ser prejudicial ao seu equilíbrio. Por outro lado, também temos os recursos da casa e dos especialistas em atividade no hospital. Não creio que corramos nenhum risco, senão o de postergar um efetivo reencontro entre os dois para reconciliação definitiva.

Os argumentos eram lógicos e verdadeiros. Então, partiram os quatro para a enfermaria em que se agasalhava Fernando.

Para prevenir acidentes, Adonias fez questão de envergar seu uniforme de auxiliar nos serviços de manutenção dos equipamentos de transporte dos doentes, lembrando-se, de passagem, que deviam estar acumulando-se algumas macas e outras tantas cadeiras de rodas. De qualquer modo, ponderou que, se Fernando o visse como serviçal e não como professor, talvez reagisse melhor.

Nesse ponto das reflexões, Adão lhe passou uma vibração de apoio à conclusão que chegara, dando-lhe a entender que estava na linha da premissa de que todo cuidado era pouco.

Ao adentrar o amplo alojamento, logo a atenção de Adonias se concentrou numa figura esquelética e pálida, quase translúcida, em que reconheceu os traços de seu pai, embora jamais o tivesse visto tão depauperado. Aquela visão lhe confrangeu o coração e foi com grossas lágrimas a lhe escorrerem pelas faces que ele apanhou a mão do progenitor e a levou aos lábios, enquanto seu coração recitava um pai-nosso comovido, em que ele repetia sem parar o pedido de perdão, garantindo que todas as suas forças se irradiavam no sentido de aceitar Fernando incondicionalmente entre os de seu círculo mais íntimo de amizades e de companheirismo.

Durou pouco aquele momento de sublime superação de tantos e milenares problemas de relacionamento. Adonias via-se ainda no leito em que estivera há tão pouco tempo atrás, imaginando que Fernando iria receber o incentivo a mais de sua enérgica atuação em favor do restabelecimento. Foi nesse instante em que extravasava em ondas maravilhosas a sua promessa de boa vontade e de amor, que Fernando acordou, vagou os olhos cavos ao derredor, fixou-os sobre a figura que se ajoelhava ao lado do leito e sorriu, reconhecendo o filho:

— Deus o abençoe, Padre Adonias, porque você veio trazer-me a alegria de um despertar tranqüilo.

Acorreram os paramédicos de plantão, mas Anésio e Adão os contiveram em seu ímpeto, indicando-lhes que os aparelhos que mediam as reações do paciente apenas apontavam para uma restauração crescente do organismo perispiritual.

— Graças a Deus, meu pai, que o senhor está lúcido e compreende que este seu filho só lhe deseja o bem. Esqueçamos, por favor, o passado. Vamos preparar-nos para enfrentar o futuro.

Aí Fernando se expressou com tal violência que os ponteiros oscilaram para baixo, exigindo dos médicos e seus auxiliares uma providência semelhante à que seria tomada no caso de uma síncope cardíaca.

Mas ficou impressa na mente de Adonias a mensagem que o pai lhe passou:

— Agora temos de unir nossas forças para afastar de Dona Genoveva aquele ser asqueroso que tomou o meu lugar.

Adonias, imediatamente, concentrou-se para debelar a infiltração vibratória perniciosa a que o mau pendor do pai abria as portas. Considerou que os demais iriam agir em prol do enfermo, dando-lhe o tratamento adequado para colocá-lo em equilíbrio precário, mas suficiente para levá-lo a alienar-se de seu objetivo declarado, e se pôs em contato com os seres que, de longe, emitiam radiações em ondas de perversidade, desejosos de reverter os procedimentos terapêuticos em favor de seu obsidiado.

Eram criaturas que um dia partilharam consigo de malfeitos, em diversas existências carnais e outras tantas passagens pela erraticidade. Havia dezenas de seres em sofrimentos atrozes que se identificavam com o intuito de perverter as boas intenções do ex-sacerdote, buscando confundi-lo em sua firme determinação de resguardar o espírito que se debatia ao seu lado.

Travou-se, então, um diálogo impossível de se reproduzir pelas expressões chulas e grosseiras das entidades arredias aos conselhos ponderados e iluminados de Adonias, que entremeava cada expressão sua com citações evangélicas adequadas e com rogos específicos para cada um dos desgraçados, citando-os pelos nomes de que se lembrava, recomendando-os a Jesus, para que lhes enviasse mensageiros amoráveis que os tirassem de sua situação de penúria e de sofrimento.

Quanto mais Adonias forçava seu ponto de vista caridoso, mais intransigentes ficavam os atacantes e mais violentos, muito embora se desviassem instintivamente de seu alvo Fernando, porque se despertavam para antigos rancores e frustrações.

Mas a Igreja Cristã da Misericórdia Divina possuía recursos de defesa que se acionavam automaticamente em caso de serem assaltadas por incúria de alguém ali internado, de sorte que Adonias se via escudado por forte bateria que cercava todo a colônia com um campo de força magnética capaz de impedir que a freqüência em que atuavam os invasores abrisse uma brecha por onde pudessem entrar para raptar aquele que dera vazão aos baixos sentimentos.

Ao cabo de dez intensos minutos de rapidíssimas mensagens, tudo cessou de repente, porque Adonias deu largas às suas emoções, chorando copiosamente por sentir que aquelas criaturas teriam de agüentar por muito tempo ainda seus destemperos morais. Acreditou que não deveria sentir-se culpado pela situação ruim de ninguém, nem responsável pelo comportamento dos que assediaram seu pai e que o maltrataram, desejosos de verem-no decair perante a forçada rememoração de um passado cheio de problemas, porém, sentiu-se fortemente deprimido, porque via o quanto os seres teriam de sofrer até que compreendessem o que ele mesmo recebera de seus amigos e protetores, desde o momento em que, na escuridão do Umbral, se ajoelhou e pediu perdão pelos males que praticara.

Quando saiu desse transe, percebeu que estivera sob a proteção direta de Alice, que lhe transmitia, em ondas de amor, os fluidos que se desgastavam pelas emoções menos felizes.

— Querida amiga, muito obrigado!

Disse e abraçaram-se, enleados num momento da mais profunda felicidade, pela exclusão de todos os presentes, cada qual envolvido em suas funções técnicas e clínicas.

Após haverem agradecido ao Senhor o estágio naquela morna condição de afeto, desprenderam-se, compreendendo que tinham tarefas a cumprir, cada qual de seu lado.

Fernando repousava sob o efeito de sedativos, dentro de uma esfera fluídica impossível para Adonias caracterizar. Imaginou-se na Terra dentro de uma tenda de oxigênio, o quanto bastou para incentivá-lo a requisitar explicações a Adão. No entanto, o bom médico se recusou a atendê-lo, afiançando-lhe:

— Recomendo que você se resguarde de mera curiosidade, transformando-a em interesse legítimo para a aquisição de um conhecimento científico que exigirá horas a fio de estudo e de pesquisa, conforme sói acontecer a quantos vêm dedicando-se à religião e à filosofia. Prefiro que a gente se ocupe de seu pai, buscando compreender o porquê de sua investida contra certa pessoa ainda encarnada. Não é verdade que se trata de um primeiro trabalho seu envergando o uniforme de socorrista?

Adonias precisou refletir um instante, porque não atinou logo com o motivo de Adão para se recusar a atendê-lo. Achou que havia algum intento oculto e não discutiu. Entretanto, concordou logo que se tratava de um investimento na área do socorrismo o fato de auxiliar na educação global de Fernando. Finalmente, apoiou Adão:

— É isso mesmo, meu caro mestre, contudo, posso asseverar-lhe que com algo devo ter contribuído quanto ao fato de ele estar hoje aqui internado. Ou muito me engano?

Adão não precisou de mais de dois segundos para perscrutar o quanto de vaidade ou de orgulho poderia haver numa assertiva daquele naipe, mas nada encontrou além de sinceridade e de profundo interesse em conhecer a extensão de sua participação naquele evento, para medir o potencial de suas preces. Era lídimo interesse de quem desejava aperfeiçoar a qualidade que despontava.

— Fico imensamente grato por me interrogar a respeito, demonstrando como é que você tem cuidado das fibras de seu coração. Todavia, de novo, preciso referir-me aos estudos e às pesquisas, porque existem muitos conceitos a apoiar as teses que nos permitem vasculhar em sua intimidade os fenômenos produzidos pelas virtudes, no âmbito dos seres a que se destinam as preces. Apenas para não deixá-lo tão frustrado quanto à caracterização desta bolha energética que protege seu pai, posso adiantar-lhe que não depende apenas de quem requisita o atendimento de seu parente ou amigo em estado de infelicidade, mas também, e principalmente, de algum valor mínimo daquela pessoa visada. Bem sei que você seria capaz de chegar de imediato a esta conclusão, mas vou acrescentar algo para você meditar. Qual percentual de amigos transferidos para uma esfera mais adiantada o arrastará para a companhia deles? Eu não acho que a minha questão seja meramente acadêmica, senão que irá demandar muita reflexão e, talvez, alguma pesquisa bibliográfica.; por isso, não tente responder agora. Vamos ver quais foram os dramas vivenciados por Fernando, desde que se suicidou?

Adonias não tinha mais nada que fazer senão concordar.

Adão propôs que se retirassem os dois, já que Fernando dormia num sono agitado, e que se dirigissem ao Centro de Cadastros e Apontamentos Pessoais, para ver o que se consignava no arquivo reservado a ele.

Houve um momento de ansiedade para o ex-sacerdote, quando o encarregado inquiriu a respeito do grau de responsabilidade dos dois interessados em vasculhar a intimidade do ser sob a proteção da colônia. Foi Adão quem deu as informações, assegurando que Adonias, na qualidade de antigo conhecido e recém-chegado ao círculo de amizade e de humanitarismo socorrista, não bastasse seu currículo evangélico, também administrava um curso a respeito de Jesus, vida e obra, sob as luzes da doutrina de Kardec.

Todos os dados foram rigorosamente confirmados nos arquivos eletrônicos, de modo que ambos tiveram acesso a uma saleta munida de aparelho para reprodução individualizada de um disco com o histórico de Fernando. Além de estarem absolutamente isolados do mundo exterior, tiveram de confirmar o intuito de apenas acrescentar outros elementos capazes de esclarecer as passagens obscuras, obrigando-se a colocar eletrodos na região do cérebro para controle das emoções suscitadas pelo desenrolar das impressões registradas que se reproduziriam na tela do computador.

Foi o técnico quem esclareceu:

— Em caso de distúrbio intelectual ou forte aflição, o aparelho se desligará automaticamente.
Adonias encheu-se de dúvidas e questões, mas Adão impediu-o de se manifestar, passando-lhe telepaticamente a ordem de se manter atento apenas no trabalho de reconstituição da vida do enfermo. Posteriormente, conversariam a respeito.

Realmente, a transmissão requereu total concentração, porque a velocidade com que as imagens passavam sob seus olhos era ainda maior do que a chamada “câmara rápida” dos efeitos especiais da cinematografia. No início da projeção, informava-se que a duração da fita era de trinta e cinco segundos, podendo estender-se até três horas, caso houvesse necessidade de reavaliação de certos trechos. No entanto, Adão e Adonias foram capazes de observar tudo o que desejavam no tempo menor, de sorte que sua permanência na saleta foi brevíssima.

Ao saírem, foram convocados para se apresentarem a um dos técnicos, com o fito de passarem informações subsidiárias dignas de se inserirem no bloco extraído da memória do paciente. Adão não tinha mais nada que pudesse interessar, mas Adonias fez questão de deixar uma parte de suas lembranças da última passagem, selecionando momentos em que conviveu em harmonia com Fernando, cenas da infância em que era acarinhado pelo progenitor, outras da adolescência, quando conversavam a respeito da importância do sacerdócio para uma sociedade em crise, e, finalmente, umas dos tempos de adulto, quando visitava os pais e animadamente referiam os sucessos do dia-a-dia de cada um.

O responsável pela captação das recordações desejou saber se Adonias tinha algo a acrescentar à cena do acidente em que o pai lhe tirara a vida, mas o nosso herói não se sentiu à vontade nem para atenuar o drama de sua derradeira desencarnação, nem para completar o relato da discussão que precedera o desastre.

— Posso deixar como está? — perguntou ao encarregado.

— Claro que pode! É o melhor que as pessoas fazem para não onerarem ainda mais a opressão dos fatos desagradáveis. Como o senhor deve saber, um dia, todas as lembranças ruins irão desaparecer completamente, estando o nosso programa preparado para apagar-se toda vez que a entidade atinja um conhecimento mais adiantado e que proceda de acordo com ele.

— Como ocorre essa atualização?

— Não posso explicar-lhe sucintamente, mas posso assegurar-lhe que mantemos contato com todos os guias e protetores que participam dos episódios como informantes. Por exemplo, a sua figura já está consignada como possível assessor para efeito da supressão de muitas passagens infelizes que ocorreram entre o senhor e ele. Note bem que a vinculação de seus destinos é tema do interesse de ambos, de modo que qualquer um dos dois estará habilitado a comparecer a este Centro para reformular os registros, abrindo mão, evidentemente, da decisão definitiva, pois os critérios serão sempre os definidos pela administração superior da Igreja Cristã.

— Quer dizer que eu também tenho um registro em fita?

— Não é privilégio seu, uma vez que todos nós aqui temos a nossa existência, em seus aspectos essenciais, arquivada.

— Posso vê-la?

— Inútil. Não há nenhuma informação nela que sua memória não lhe revele. Ainda há pouco, verifiquei, porque existe como norma não permitir a quem não tenha esse mínimo de aperfeiçoamento intelectual acesso a nenhum outro histórico.

— Como você analisa a existência de Fernando?

— Não tenho nenhuma opinião firmada e, mesmo que tivesse, não me caberia divulgá-la. Atenho-me aos aspectos meramente técnicos. Agora, o Doutor Adão tem permissão...

À vista do gesto convidativo, Adão interveio:

— Tenho o dever de discutir o assunto com o meu amigo Adonias, porque me cabe orientá-lo em sua fase inicial de atendimento socorrista.

Ao mesmo tempo, foram levantando-se, agradecendo e retirando-se, estando ainda Adonias um pouco zonzo com o volume de informações que teria de assimilar, dado que tudo estava acontecendo de forma extremamente acelerada.

O médico servia de cicerone, de modo que, sem perceber, meio avoado, de repente, Adonias se deu conta de que estava no consultório do doutor.

— Trouxe-o para cá porque podemos conversar completamente protegidos de qualquer influência externa de caráter negativo, uma vez que teremos de levantar problemas relativos a uma personalidade ainda bastante tocada por noções errôneas a respeito das qualidades que erigem um espírito de bem. O que mais lhe chamou a atenção quanto aos sofrimentos que Fernando teve de enfrentar em decorrência de seu suicídio?

Adonias foi surpreendido pela questão, já que se deixara impressionar muito vivamente pelos transtornos mentais que as distorções da realidade apresentavam para Fernando. Então ponderou:

— Antes de falar de meu pai, quero estabelecer um parâmetro para o comportamento de acordo com o qual deverei agir doravante. Sinto que não dou o melhor de mim, quando me deixo envolver pelas dores e sofrimentos alheios. Acho que Jesus, onde quer que se encontre, conhecendo mais do que ninguém as tragédias individuais e coletivas, não se estimula pela dor alheia nem sofre em conjunto. Ao contrário, deve estar felicíssimo por verificar que todos os seres não param de evoluir, determinando a seus ajudantes que auxiliem o mais que possam a que cada qual vença os seus obstáculos. Ora, eu estou pleiteando uma vaga nessa equipe: não seria absolutamente aconselhável que, sem me tornar um ser insensível, endurecido e alheio à sorte de meus irmãos, melhorasse meus resultados, agindo não apenas com muito amor, mas também com muito discernimento?

— Não foi isso que você fez agora há pouco, protegendo seu pai do influxo negativo dos seres que ele mesmo atraiu?

— Mas eu me entristeci, contrariando aquele princípio que assinalei relativamente ao Mestre. Deveria ter-me alegrado com a melhora de Fernando.

— E não será essa uma oportunidade valiosa para estudar a si mesmo, a fim de avaliar com que segurança você atuou em favor de todos os envolvidos no episódio?

— E o chilique que me adveio depois, o qual obrigou Alice a me amparar?

— Faz parte de sua natureza ainda imperfeita. Não é verdade que, há alguns poucos anos, você nem perceberia o que estava acontecendo numa situação dessas? Vamos dar tempo ao tempo, aperfeiçoando as nossas boas qualidades e eliminando os nossos defeitos. Eu não deveria sugerir isto, mas, sem considerar nenhum aspecto negativo, compare a sua condição com a de seu pai, para sentir quão longe você está dele, porque deu ouvidos à voz de sua consciência e tornou obrigação obedecer aos preceitos do Cristo. Vamos meditar a respeito dos sofrimentos de Fernando resultantes do fato de haver tirado a própria vida?

— Não creio que esse tema seja edificante, pelo menos no que concerne ao nosso interesse em ajudá-lo a vencer as dificuldades. No entanto, caro mestre e amigo, devo adverti-lo para um aspecto danoso que me chamou particularmente a atenção, qual seja, o fato de que o suicídio possa haver sido superado pelo ódio e certo sentido de vingança que fizeram que se revoltasse contra a condição da esposa, minha mãe, de contrair segundas núpcias.

— Qual foi a sua reação relativamente a esse fato?

— Creio haver titubeado em minha segurança quanto aos dispositivos sentimentais de Dona Genoveva, porque sempre é desagradável saber que as pessoas a quem amamos possuem outros objetos de interesse e de afeto. Veja bem, não se trata de ciúme, propriamente dito, mas de uma certa deficiência emocional, de um despreparo de sentimentos e de uma ingenuidade afetiva, porquanto, para nós mesmos, defendemos a mais completa liberdade de ação junto a quantas pessoas nos acendam a simpatia, enquanto o mesmo direito não concedemos até àqueles que mais amamos. Contudo, quanto à minha reação, devo afirmar-lhe que se deu num momento ruim de minha trajetória no etéreo. Talvez, agora, mais cônscio da necessidade que todos temos de ampliar nosso círculo de benquerença, eu não reagisse de modo tão infantil.

— Terá Fernando tido ocasião de refletir dessa maneira sobre o assunto, vasculhando o seu íntimo para nele descobrir as tendências egoístas que, em suma, representam esse apego exagerado ao domínio que supomos exercer sobre os seres a quem declaramos amar?

Adonias não respondeu de imediato. Após alguns instantes aventurou-se:

— Nada indica que meu pai tenha recursos de tamanha intelectualidade ou, ao menos, que esteja em condições psíquicas de dar vazão a uma enxurrada de raciocínios lógicos isentos de perturbações emotivas. Pensando em que ele era, na derradeira encarnação, ferrenho adepto da Igreja Católica, tanto que se empenhou em entregar seu filho ao clero, estranha-me, sobremodo, que haja cedido ao impulso suicida, pecado capital que, segundo sua crença, o arremessaria às chamas eternais do inferno. Creio que esse processo de alta frustração esteja governando ainda seu procedimento, de sorte que agora deixou-se catalisar por algo que, sob seu ponto de vista, significou para ele um ato de pura traição. Sem entrar no mérito do relacionamento com a personagem que assumiu o papel de marido de Dona Genoveva, acho que, de novo, o princípio dos extremos está vigorando para seu modo de ver as coisas.

— Noto que seu discurso busca um entendimento sofisticado para algo que simplesmente poderia ter sido descrito como excesso de amor-próprio. Se nós formos atuar segundo uma formulação ou uma estrutura particular quanto à composição dos elementos constituintes da personalidade, teremos também de arranjar soluções específicas para cada caso. Se é bem verdade que cada pessoa é um indivíduo integral, também não podemos deixar de lado a hipótese de que existem muitos que pertencem à mesma faixa evolutiva, quer dizer, atuando padronizadamente, o que nos possibilita aplicar remédios de amplo espectro, aguardando que, dentre seus ingredientes, alguns ajam diretamente sobre as infeções do paciente. Figure um antibiótico atuando sobre uma febre. Pode ter um melhor efeito sobre um organismo que sobre outro, mas para todos haverá de significar um combate à moléstia. Aprenderemos, depois da aplicação desse tratamento, muito mais sobre cada um de nossos assistidos, podendo, aí sim, circunscrever os agentes em função das reações constatadas. Quanto a Fernando, veja bem, o aspecto inicial está bem definido. Quando recorrermos à sua ajuda, meu irmãozinho, estaremos já na segunda fase do tratamento, de modo que as suas reflexões atingirão o alvo bem na mosca, cabendo-lhe analisar como é que abordará os problemas de Fernando e qual auxílio poderá ministrar-lhe para mais rapidamente trazer-lhe à consciência a lição de Jesus que lhe falta assimilar. Mas, voltando ao caso em si, por que terá aceitado tão bem a sua presença, quando nós mesmos estávamos “cheios de dedos”, imaginando que ele o repudiaria?

— Não tenho senão uma conjectura a propor: o fato de haver reconhecido que eu não mais representava nenhuma ameaça, porque nossas contas estavam acertadas e porque ele deve ter percebido que tenho tido desvelos filiais, não deixando de me lembrar dele em todas as preces. Será isso?

— Eu gosto muito de conversar com você, Adonias, porque você vai logo ao ponto nevrálgico das questões. Sei de suas suspeitas quanto ao cumprimento da lei do carma, ou seja, que você o assassinou numa vida e que ele lha retirou noutra. Sei também que você julgou que o suicídio dele representaria uma espécie de desforra pelo fato de você, possivelmente, estar acusando-o de tê-lo matado. Sendo assim, ele acrescentaria uma espécie de remorso à sua atitude de cobrança, ou, melhor ainda, você estaria sendo forçado a realizar um desconto, pelo sofrimento dele, a uma possibilidade de retaliação. Estou certo?

— Foi exatamente isso que busquei passar-lhe intuitivamente, porque se trata de mera composição racional, em que não desejei que se infiltrasse nenhuma vibração de qualquer de minhas fibras emotivas. Agora estou desconfiando de que fui muito longe nessa suposição, ao menos no que corresponderia a uma atitude consciente da parte dele. Talvez, no íntimo, até pudesse ocorrer que essas vibrações maliciosas ganhassem consistência e se deixassem transparecer por meio de atos tresloucados, no entanto, após assistir ao desenrolar da existência dele, não estou muito confiante que isso se tenha passado exatamente assim.

Adão olhava com muita atenção para as flutuações do alcance da aura do amigo, concluindo que havia forte hesitação em abandonar a tese arguta que elaborara. Mas deixou de referir-se ao que via e passou a outro aspecto da personalidade de Fernando:

— Sei que ele, de certo modo, esqueceu ou perdoou a você, inimigo milenar que vem acompanhando-o, apesar de tudo, em diferentes situações terrenas e etéreas. Não seria esse um indício de que o mesmo poderia suceder em relação ao mais recente rival?

— Precisaríamos levar em conta o histórico de seus confrontos.

— E também incluir Dona Genoveva no imbróglio, que ela é o pivô desse episódio. Que você acha disso?

Adonias não respondeu. Limitou-se a um gesto para que Adão tivesse um pouco de paciência e se recolheu ao fundo de sua consciência para meditar a respeito, impedindo até que Adão pudesse acompanhar-lhe os raciocínios. Ao cabo de dez minutos, voltou à realidade circunstantes para asseverar:

— Se nós fôssemos vasculhar os resíduos de memória e a prontidão da inteligência de cada ser com quem nos envolvemos antes de nos decidirmos a agir em benefício dele, não faríamos mais nada pelo resto da eternidade. Antes, acabaríamos na necessidade de sermos nós mesmos amparados pelos nossos protetores e mentores. Seria o mesmo que exigir que nosso anjo guardião tivesse o dele, e este um outro, ao infinito, o que me parece absolutamente incoerente. Ao contrário, suspeito, como estamos neste momento fazendo, que os guias se sentem atraídos por seus protegidos, a ponto de lhes oferecer não apenas o resguardo de seus cuidados, mas também todo o repositório de seus conhecimentos e de suas experiências. Para tanto, todo ato socorrista deve prever um momento de abstração dos defeitos dos seres sob sua guarda, em primeiro lugar para não gerar um processo de remoinho ou sorvedouro a arrastar os envolvidos para o centro do furacão.; em segundo lugar, para afastar qualquer influência deletéria provinda de outros seres interessados em prejudicar os inimigos, o que me ficou muitíssimo claro, quando percebi que a colônia mantém um sistema de defesa bastante eficaz. Sendo assim, respondendo à sua pergunta, eu acho que a pessoa mais indicada para revelar a importância desses relacionamentos é justamente o socorrido, meu pai, que nos dará a dimensão exata de seu ódio e sugerirá quais pontos das desavenças são mais factíveis de se debelar. Paro por aqui porque foi aqui que estanquei em minha presente insuficiência de conhecimentos. Acho que a minha ignorância é grande.; mas não tenho como não compará-la à que trouxe para o etéreo quando para cá me vi transportado pela última vez. Prometo prestar atenção em todos os seus conselhos e cumprir o melhor possível as suas orientações, caríssimo doutor.

— Fico muito feliz com este início de aprendizado, caríssimo professor. Contudo, devo adverti-lo de que não vou entregar-lhe Fernando tão já a seus cuidados. Sabe por quê?

— Imagino.

— Então, responda.

— Porque ainda não tenho como controlar as reações dele. Se bem me lembro de como você agiu quanto a mim, fiquei mais de nove anos até ter o primeiro vislumbre de minha real condição de espírito errático. Acho que preciso desenvolver esse tipo de paciência. Aliás, posso dizer que tudo o que me aconteceu hoje foi importante, mas minha mente está cansada, necessitando voltar ao trabalho de encerar o chão, de lubrificar eixos e rodas, de sortir de material estojos e gavetas.

— Então, o melhor que você tem a fazer é recolher-se. Boa noite!

Foi só então que Adonias percebeu que o dia se esvaíra. Se lhe perguntassem, julgaria que estava na hora do almoço, do qual, de resto, ele se esquecera completamente, parecendo-lhe que só agora lhe despontava um ligeiro estremecimento de fraqueza.

“Acho que estou tomando pé da realidade objetiva. Graças a Deus!”
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