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Erotico-->8. MONTA-SE UMA PARTE DO QUEBRA-CABEÇA -- 15/11/2003 - 07:39 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Adonias sentia-se cansado mas eufórico, como nunca se lembrara de haver estado. Se bem que todas as vidas estivessem mal esclarecidas, havendo ficado muitos fatos importantes na penumbra, sabia que era simples a maneira pela qual deveria realizar o esforço de recuperação da memória. Pôs-se, então, a meditar, fechado em seu dormitório, na proposta de descoberta da ponta do fio da meada do Doutor Anésio, porque lhe parecia importante saber que méritos demonstrara na derradeira romagem carnal para ter sido apaniguado pela deferência de uma proteção de luz, já que, apesar de ter dado algumas cabeçadas e de ter estado imerso numa ilusão de vida por tantos anos, ainda assim nem resquício de sofrimento de consciência lhe perpassara pelas fímbrias da emotividade. Angustiara-se, é verdade, porque não alcançava fazer frutificar o seu intento de auxiliar as pessoas, principalmente os miseráveis, os explorados e os infelizes, mas fora uma dor moral de caráter externo, nenhuma acusação a enfrentar, nenhum remorso a curtir, nenhum arrependimento a amainar.

“Terei sido bom e cortês para com os meus semelhantes, em sendo ministro religioso atuante junto aos paroquianos? Terei amealhado um pouco da virtude da paciência, aturando as eternas solicitações de perdão pelos pecados veniais que ouvia, sem preguiça, cônscio da importância do sacramento da penitência? Terei afastado as ânsias do egoísmo, ao aceitar as ordens religiosas, apesar de tê-las enjeitado justamente porque cheguei à conclusão de que a Igreja se afastava da pregação puríssima de Jesus? Terei contido a vaidade de orador, abrindo mão do púlpito para o aconselhamento pessoal de meus irmãos e irmãs de fé, já que ia de convento em convento, buscando atender aos reclamos íntimos das criaturas ainda não totalmente convencidas de sua vocação? Terei recalcado o orgulho de me haver formado com certo brilho, ofuscando alguns colegas mais modestos quanto ao intelecto, embora eu sempre reconhecesse neles qualidades que me faltavam? Terei sofreado os impulsos de minha formação erudita, eliminando de meu jargão particular todos os termos com que poderia diminuir os meus ouvintes, em todas as circunstâncias da vida? Terei sabido conduzir, inclusive, a minha rebeldia, acatando a superior determinação de me recolher à cela, enquanto o processo contra mim tinha andamento? Respeitei, certamente os mandamentos do decálogo mosaico e mais os da Santa Madre Igreja, jejuei e refleti durante a leitura de meu breviário, jamais faltando um só dia ao dever eclesiástico. Principalmente, honrei meu pai e minha mãe e lhes respeitei o gravíssimo desejo de que eu servisse ao Senhor. Toda vez que me senti em débito para com certos princípios, particularmente no início de meu sacerdócio, dispus o problema com a maior fidelidade ao meu confessor e lhe roguei pelos conselhos de sua larga experiência.”

Adonias suspendeu essa linha de reflexões para ver se era capaz de repetir todos os pensamentos na mesma ordem que lhe ocorreram. Surpreendeu-se com a facilidade pela qual o fez, parecendo-lhe que a sua já imensa capacidade de reprodução dos textos que lia e dos episódios que vivera havia ainda recebido um incremento significativo. Buscou reproduzir os últimos livros que lera e observou que a mente lhe evidenciava página a página como que fotografada no cérebro, onde podia ler como da primeira e única vez em que se dedicara a cada obra. Sabia os evangelhos e os atos dos apóstolos de cor. Imaginou, então, sua derradeira leitura do Apocalipse e ele se abriu com a maior singeleza, permitindo-lhe que o folheasse até pelo número impresso das páginas.

“Uma beleza! Uma beleza!”, ficou a repetir, extasiado diante de si mesmo. Ocorreu-lhe, então, que, como magistrado, havia tido em mãos inúmeros processos e pareceres jurídicos, tudo passado na França dos fins do século XIX e inícios do século XX. Nesse caso, porém, nem tudo se ofereceu à sua memória com a mesma nitidez. Interrogou-se a respeito do fato e levantou uma hipótese que considerou muito plausível:

“Enquanto os textos que sou capaz de reproduzir se encontram no domínio do público em geral, tudo bem, não há nenhum ser humano envolvido na qualidade de possível personagem de algum episódio que poderia desmerecê-lo perante a minha própria consideração. Já quanto aos dossiês dos suspeitos, se bem me lembro, todos condenados, a história envolve questões de melindres e de susceptibilidades, talvez até de atos de coragem, de bravura, de enfrentamento das lutas obrigatórias, como ocorreu comigo até recentemente, de sorte que as minhas vibrações, apesar de não serem inteiramente negativas, poderão causar transtornos psíquicos a essas entidades, que gostariam de receber apenas o apoio da boa vontade, da comiseração, do respeito como seres humanos que são, de quem tanto orou e vem orando pelos que sofrem. Mais vale pensar nas pessoas e menos nos processos. Vejamos se me recordo dos nomes de todos.”

Aí a mente se abriu para um extenso rol de nomes completos, filiação e datas, assinaladas seja nas pastas dos arquivos, seja nos dias de encontro do antigo juiz com os réus. A cada nome, Adonias oferecia uma ligeira prece, mais ou menos nestes termos:

“Senhor, tenha piedade dessa alma! Que essa criatura possa estar tão ou mais feliz que eu, recebendo as suas bênçãos de muito amor!”

A cada nova personagem, Adonias registrava um número, de sorte que, ao chegar ao primeiro milheiro, obrigou-se a avaliar quanto tempo havia destinado à sua meditação. O relógio do computador indicava-lhe que haviam passado cerca de dez a doze minutos, no máximo. Então Adonias foi forçado a concluir que também sua capacidade intelectual havia aumentado, no sentido de um maior poder de concentração. Desta feita, porém, não se entusiasmou com a descoberta, julgando que o fato de estar mais veloz não indicava, necessariamente, que havia melhorado a qualidade dos raciocínios, tanto que, para a descoberta da razão de ter merecido um acolhimento mais iluminado após o acidente automobilístico que lhe tirou a vida, considerou que estava desconcentrado e lento.

Com esse pensamento, tendo concluído que seria capaz de se recordar de todas as pessoas da vida na França, reuniu todas as que faltaram num bloco só e orou por elas em conjunto. Depois, refez o início de suas observações, quando vasculhara a derradeira existência carnal, e se surpreendeu com a quantidade de frases na primeira pessoa do singular, como se todo o mérito da conquista fosse seu.

“Por certo, muito devo a todos os que me incentivaram, direta e indiretamente, para a minha carreira sacerdotal. Aos meus pais fiz referência, embora dirigida ao meu ponto de vista filial e não segundo o sacrifício que fizeram desde antes da minha concepção, aceitando-me em sua família, como encargo sublime da paternidade e da maternidade.”

Ia prosseguir recordando-se dos avós e demais membros da parentela, rapidamente recordando-se de seus professores em todos os níveis de ensino, dos médicos que trataram de sua saúde em todas as idades, dos membros da sociedade que trabalhavam na produção dos bens que consumia, colegas de escola e de batina, quando lhe ocorreu que existia uma outra categoria a quem, em vida, jamais atribuiu qualquer importância, apesar de saber de sua existência através da leitura de “O Livro dos Espíritos”, em que não acreditara, ou seja, dos espíritos amigos e benfeitores que agora conhecia e respeitava. Apesar daquela sua disposição contrária, tinha a certeza de que foi acompanhado em todas as fases de sua vida pela benemerência desses seres, que o protegeram de todos os ataques dos que desejavam vê-lo decair dos propósitos evangélicos.

Foi então que estabeleceu o princípio básico de haver sido resgatado no etéreo sem que fosse preciso perpassar de novo pela escuridão do Umbral:

“Tive a sustentação de todos os que comigo conviveram em corpo e em espírito. Por isso, superei as minhas graves deficiências, impondo-me uma disciplina que não me afastou dos meus irmãos. Vim para cá na qualidade de ser humano em ascensão, porque respeitei o Criador em todas as criaturas, evitando, o mais possível, cair nos mesmos erros de meu passado, eximindo-me de julgar. Antes, busquei justificar a todos, rogando ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, bem como à Virgem Santíssima e a todos os santos, que sei agora que são espíritos evoluídos, residindo em esferas de maior perfeição, para me auxiliarem a compreender os dramas das pessoas, para oferecer a melhor solução possível para cada problema, incluindo, nas minhas preces, sempre, um pedido de bênção e de graça para cada uma delas.”

Havendo encerrado esse trabalho de pesquisa, avaliou que não havia mérito algum em se dedicar tanto a si mesmo. Se, anteriormente, ficara pendente de sua ressurreição quanto ao passado, agora estremecia com a visão do futuro, parecendo-lhe que, em pouco tempo, tinha de suplantar inúmeros defeitos, se quisesse fazer jus à confiança da administração da Igreja Cristã da Misericórdia Divina, que o convidara a participar de suas atividades na qualidade de palestrante.

Agradeceu ao Pai em comovida prece e se pôs a planejar as próximas atividades, tendo em vista que lhe faltava preparar a exposição seguinte, já que se determinara a não comentar os resultados da consulta que levara a efeito junto aos alunos. Iria passar por cima de seu desejo anterior de atender aos reclamos imediatos daquelas mentes, para oferecer-lhes, ao invés de uma satisfação de caráter pessoal através de suas próprias experiências, um ponto objetivo do evangelho, recordando-se logo do episódio das tentações de Jesus, que sempre o empolgou.

Nesse momento reviu a pergunta proposta pelo Doutor Anésio ao final de sua palestra, reproduzindo-a na íntegra, palavra por palavra, porque lhe parecia que não se tratava de uma questão, mas de sutil sugestão:

“Como ocorre muito freqüentemente o fato de que os sacerdotes chegam ao etéreo buscando os anjos que os conduzirão ao paraíso, a que o amigo atribui o fato de ter sido resguardado das imprecações que em geral se dão nessas ocasiões, tendo permanecido por tanto tempo na condição de ignorante da própria desencarnação?”

Adonias, em lugar de levantar alguma suspeita, simplesmente elaborou uma pergunta direta para apresentar ao amigo:

“Que papel você vem desempenhando na minha existência?”

Em seguida, adormeceu.
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