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Erotico-->6. UMA LIÇÃO INOLVIDÁVEL -- 13/11/2003 - 06:36 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Em torno de Adonias, juntavam-se também uns quinze técnicos do Departamento de Regressão Assistida, de modo que Anésio se sentiu à vontade para questionar a proposta do enfermo:

— Com que, então, meu caro, você está disposto e preparado para novos desmaios?

Adonias incomodou-se com o tom irônico da pergunta, mas ficou firme em sua decisão:

— Claro está que não depende tanto de mim, porque tudo me vem ocorrendo à revelia de minha vontade consciente.

Daí pra frente o diálogo foi assumindo um caráter do maior respeito, interessando a todo o auditório.

— Peço-lhe que me desculpe, padre, por tê-lo provocado de modo pouco reverente. Em todo caso, a sua proposta me pareceu sumamente despropositada, tendo em vista que um simples vislumbre de algumas cenas antigas, conforme me contou Alice, o pôs em pânico, sem, entretanto, pelo que posso ver, ter-lhe causado um trauma de monta. Vamos falar a respeito?

Adonias percebeu que a hora era oportuna para alguns esclarecimentos que não vinha conseguindo obter sozinho. Então, perguntou:

— Posso expor qualquer pensamento, com toda a lealdade, esperando encontrar receptividade aberta a todas as exposições, sem que o meu querido mentor, nem qualquer outra pessoa presente, queiram velar-me as respostas, acreditando que possam encontrar-me “cheio de dedos”, ou melhor, suscetível a melindres?

— E você responderia da mesma forma, por exemplo, se lhe perguntasse o que acha que o tem levado a se manter alheio às vidas passadas?

— Perfeitamente. Aliás, penso que a minha mente esteja agindo ainda segundo os padrões da encarnação na crosta, quando o meu organismo espiritual, vamos dizer assim, permanecia submetido às condições de um corpo material que me suprimia, como faz a todos, quase completamente, a liberdade de atuação, ainda que eu possa aceitar o fato de que, durante o sono, os encarnados como que se desprendem de suas amarras carnais.

— Vejamos se eu entendi o seu ponto de vista. Quer dizer que você acha que existe dentro de você uma pessoa que corresponderia ao seu espírito propriamente dito, cuja formação moral, filosófica, científica, religiosa etc. esteja sendo inibida pelos contornos de seu perispírito, segundo um critério de contenção fundamentado num possível desempenho contrário à sua própria segurança ou a de seus parceiros de existência? Em outras palavras, quer dizer que você gostaria de recuperar suas vidas passadas para melhor compreender o porquê dessas presilhas atuais, já que, tendo lido nas obras de Kardec que, após o desenlace da vida, os espíritos recuperam totalmente o domínio sobre si mesmos, reconhecendo-se como uma individualidade espiritual, está a considerar que os espíritos superiores, ou deveriam refazer suas mensagens aos mortais, ou acorrer para cumprimento de suas promessas em relação a você?

— Vamos dizer que eu esteja bastante decepcionado comigo mesmo, porque, tendo buscado a biografia do meu mestre nos arquivos da instituição, vi que ali se assinalavam suas passagens existenciais desde um ou mais milênios, enquanto me vejo limitado a apenas uma derradeira vida. Mas essa fase começa a mudar, tanto que me vi antes de ser implantado no ventre de minha mãe, até o momento em que passei por uma revisão, ao inverso, dos fatos de minha vida imediatamente anterior.

— Então, meu caro, algo deve tê-lo desgostado profundamente para que seu inconsciente, com perdão do termo, já que você gostaria que eu dissesse “Espírito”, talvez dando ênfase à inicial maiúscula, como registrou Kardec, se indispôs de tal forma que o obrigou não só a regressar ao momento presente, como ainda a desfalecer...

Adonias interrompeu-o meio afoito:

— É isso aí! Eu não sou eu, às vezes, porque o meu eu profundo age em discordância com a minha vontade, independentemente de desejar utilizar-me de meu livre-arbítrio, em favor de uma integração global da personalidade. Que sistema absurdo é esse que admite um conhecimento perfeito de si mesmo e que, ao mesmo tempo, considera absolutamente viável uma fenomenologia restritiva de meus direitos naturais? Veja, querido mentor, que não estou rebelando-me.; apenas manifesto uma dúvida íntima das mais ponderáveis, tendo em vista que me mantenho firme intelectual e emocionalmente.

— Adonias, querido, será que você está ciente de que um conhecimento perfeito da gente mesmo só adquiriremos quando adentrarmos o reino de Deus?

— Perfeitamente...

— Então, raciocine comigo no sentido de perceber que os ganhos que vamos adquirindo, com o passar dos eventos em que vencemos as dificuldades de nosso caráter, vão assimilando-se à nossa personalidade aos poucos, ou melhor, num crescendo mais ou menos rápido, segundo a nossa atuação haja privilegiado pontos mais ou menos positivos do código das virtudes superiores. Na verdade, uma abertura completa de nosso passado não nos satisfaria, porque teríamos de eliminar, por conta de nosso consciente, uma série de acontecimentos em que fracassamos inúmeras vezes, até que conseguimos vencer as dificuldades, ao mesmo tempo que nos pomos de bem com os seres que conosco vão tendo suas experiências evolutivas. Isso seria mera perda de tempo, porque a recordação se refaria, estando a memória completamente aberta.

— Posso interromper?

— É justo que o faça.

— Apenas para observar que eu compreendo que nos pródromos de minha criação o mais certo é que eu tenha batido bastante a cabeça até iniciar uma curva evolutiva de ganhos reais e definitivos. Então...

— Então, permita-me inferir, você não está entendendo a razão de ter passado (como consigo perceber de suas informações telepáticas, as quais, devo avisá-lo, todos aqui estamos em condições de decifrar), há tão pouco tempo atrás, por uma fase de tremendo sofrimento nas trevas, quando sua expectativa era de que, desde há muito, vinha trocando de vestimenta carnal, flauteando na erraticidade, como lhe aconteceu nos tempos em que pregava na praia, exaltando a necessidade de se cumprirem os ensinamentos de Jesus. Não se trata exatamente disso?

Adonias não queria perder a serenidade, mas não podia fugir do compromisso de enfrentar as reações mesmo perturbadas por insidiosas, embora benignas, acusações de imperfeição. Então, limitou-se a acenar com a cabeça, confirmando a assertiva incrustada na pergunta do médico.

Anésio é que não quis malhar no ferro em brasa, fazendo longa pausa, dando tempo a que Adonias se refizesse das descobertas desagradáveis de sua forma de considerar a existência e de se ver a si mesmo como a um ser de alta capacidade de absorção das divinas leis. Foi por isso que o ex-sacerdote manifestou o desejo de bloquear o que lhe passava no íntimo, de sorte que os demais não fossem capazes de entender seus exatos sentimentos, embora lhe ocorresse que, em sentido genérico, havia ficado absolutamente claro a todos que ele estava necessitado de auxílio.

Concentrou-se na sugestão mais séria quanto a se considerar com méritos superiores aos reais e definiu uma nova questão:

— Doutor Anésio, com quem estou cada vez mais empenhado, explique-me por que, tendo regressado do mundo tão cedo da última jornada e não tendo realizado algo de alta significação espiritual, mereci permanecer em paz, iludido embora, por estas plagas, sem perseguições e sem maiores desesperos ou angústias, senão os de desejar reformar o mundo pelo paradigma cristão que, de resto, eu havia, de certo modo, confrontado com uma atitude de rebeldia, porque investi contra os preceitos religiosos que jurara defender e respeitar.

— Você, meu caro, está reconhecendo em sua atitude de então um certo defeito de visão do mundo, seja no sentido de se rebelar, seja no sentido de não haver concretizado algo de valor transcendente, como, por exemplo, ter deixado herdeiros que usufruíssem os dons da vida. Em suma, você gostaria de não ter sido padre, para não ter tido experiências tão amargas, como a desilusão de seu pai, que acabou suicidando-se, e como o engodo das pregações inúteis depois do decesso. Gostaria de superar essa crise de identidade, caracterizando-se, e também conhecendo a história de seus relacionamentos pessoais, através de rigorosa revisão de todas as suas atividades relativas ao resultado desalentador de uma vida inoperante quanto à lei da reprodução, para falar o menos. Você se encontra num beco, mais ou menos encalacrado pelo fato de se lembrar de que Kardec não deixou prole, muito menos Jesus e, no entanto, são seres exponenciais. Como você me responderia se eu lhe perguntasse quais foram os pontos positivos de seu desempenho vital na derradeira peregrinação terrestre?

— Primeiro, eu lhe agradeceria o alívio das pressões dos malefícios e, depois, eu lhe diria que tudo o que me deixou satisfeito foi ter encontrado certas entidades que me reconheceram e me forneceram indícios de que algum bem eu lhes fiz, não tanto por tentar realizá-lo, mas por firmar, como ponto primacial de um procedimento superior, o evangelho de Jesus.

— Muito bem, meu caro! Vamos concentrar-nos num aspecto fundamental para a sua compreensão de quem você é, qual seja, o de que todo espírito só merece adentrar o reino de Deus quando em plenitude de felicidade. Você é feliz?

Adonias bambeou. As suas ânsias de realização em todos os setores de seus interesses demonstravam-lhe, peremptoriamente, que sempre havia algo para fazer, a estimulá-lo a ir em frente, pois satisfeito mesmo com tudo que possuía não estava. Então, expôs, com o coração na mão:

— Meus amigos, se eu me desse o devido respeito como criatura de Deus, filho diletantíssimo, não me acusaria de nada, nem superestimaria as pequenas conquistas de meu intelecto e o mínimo domínio sobre minhas reações emocionais. No entanto, a todo momento, desejo compreender isso mais aquilo, dominar todos os conhecimentos, sem destinar uma correspondente...

Suspendeu a frase em meio, com o medo de estar enunciando um tema sobre que não se dedicara inteiramente, formulando apenas intuições, ou, ainda pior, meras conjeturas aleatórias construídas naquele justo instante, sem a reflexão que se deve propiciar aos pensamentos mais sublimes, os tendentes à expressão da verdade.

Como ninguém dissesse nada, aguardando a conclusão da frase, Adonias prosseguiu, desviando-se um pouco do ritmo dos pensamentos anteriores:

— Peço-lhes que me desculpem. Se me pedem para declarar meu estado de felicidade, acredito que esteja em uma espécie de modorra ativa, com perdão da incoerência da expressão, sabendo que tenho obrigações e deveres, para que adquira condições de atingir certos objetivos mais elevados, quais sejam, os de ajudar efetivamente as pessoas, conforme me forem sendo dadas as oportunidades, sem me sentir exatamente em estado de euforia, enquanto não resgatar meus débitos em relação a meu pai e a outros seres a quem devo ter ofendido e que aguardam pela minha exposição de motivos e correspondente pedido de perdão. Ao mesmo tempo, devo adverti-los de que um dos pontos que me determinam colocar alguns óbices à revelação de meu passado é justamente o fato de que, atualmente, não tenho nada a cobrar de ninguém, situação que julgo muito cômoda, porque, evidentemente, dada a natureza dos relacionamentos humanos e mesmos espirituais na erraticidade, é justo configurar que alguém tenha realizado algo contra a minha pessoa e que esteja mesmo aguardando para me pôr a par de que já evoluiu o suficiente para reconhecer seus erros e receber o meu abraço confraternizador. Por outro lado, também não quero constituir-me em pedra de tropeço, para o escândalo de nenhum ser que possa estarrecer-se pelo fato de eu não me posicionar de acordo com as diretrizes evangélicas, cujo comentário pleiteio junto a um grupo de discípulos interessados em conhecer um pouco mais do vigor dos textos do Novo Testamento. Não sei se consegui caracterizar uma espécie de contradição íntima de quem se aproximou tanto das palavras de Jesus e também se vê em palpos de aranha para resolver alguns problemas pessoais que envolvem soluções absolutamente conhecidas, digo mais, sabidas de cor. Serei feliz quando me for revelado integralmente o meu passado? Quem foram, durante toda a existência, as pessoas que receberam muito do meu afeto, inclusive minhas irmãs de ficção, Marta e Maria, duas entidades do etéreo que me ajudaram a manter a minha ilusão messiânica? Como fazer para ajudá-las, do mesmo modo que sinto estar recebendo tanta ajuda de vocês todos, fazendo-as refletir a respeito da existência e de todos os valores morais superiores que fluem das palavras e dos atos de Jesus? Mesmo depois de integrar todos os elementos de minha personalidade e de exercer sobre a realidade o domínio relativo de quem conhece e avalia todos os problemas a serem equacionados, poderei dar-me por satisfeito, na expectativa de suplantar todos os anseios que não cessam de se criar, às medida que vou aprofundando a análise das circunstâncias do meu existir? Se não for aleivosia de minha parte, posso perguntar-lhes, de coração e de mente aberta, se vocês são felizes e, se são, se é possível passar-me sua experiência psíquica, para que eu aprenda a agir em consonância com todas as leis naturais estabelecidas pelo Senhor para este recanto do universo? Cuidem de me suspender o chorrilho de idéias mal alinhavadas, porque, caso contrário, desandarei a revelar-me em todas as facetas de minhas exaustivas meditações, o que equivaleria a uma demonstração ao vivo e em cores de como o egoísmo pode ressumbrar de modo tão capcioso, por me considerar suficientemente habilitado a resolver de imediato cada pequenina aspiração de pôr-me no centro das atenções.

Anésio fez questão de interrompê-lo:

— Não pense que essa avalancha de frases irá impressionar-nos positivamente. Se você se compenetrar de tudo quanto fizemos em relação à sua pessoa, tornará evidente o pensamento de que agimos mais do que falamos.; e de que planejamos bem mais do que agimos. A nossa felicidade, portanto, provisoriamente, pode assentar-se no princípio de que estamos realizando tudo quanto desejamos, conforme nosso entendimento do que seja a realidade em transformação para nós, quer dizer, colocamo-nos numa perspectiva de contínua evolução, algo bastante parecido com a sua atitude, com a diferença substancial de que os nossos interesses se concentram em áreas específicas do conhecimento científico, onde cada pequenino aprendizado se reflete de imediato na configuração do todo, enquanto, no seu caso, você está buscando decifrar o contexto, para depois introduzir nele cada aspecto analisado de seu sistema particular. É como se você estivesse diante de um painel, desejando conhecer-lhe os limites, ao passo que nós, mal e mal, vamos construindo um pequeno quadro, compondo-lhe a pouco e pouco a estrutura de significações. Nesse caso, fica bem mais fácil para nós atingirmos um certo equilíbrio dentro do sentimento geral de felicidade.; para você, esse equilíbrio se torna um desejo de conquista, uma finalidade, um objetivo, um alvo, em suma. Para nós, a felicidade é o resultado de um trabalho.; para você, a felicidade é a elaboração em si desse trabalho, que se põe como a espiga de milho dependurada diante do burro, que ele persegue e que jamais alcança. Então, volto a perguntar-lhe, mudando um pouco a questão: você, meu querido amigo, está feliz?

Adonias ainda ruminava os conceitos mais sutis, observando que Anésio não lhe poupara o ato do raciocínio por meio de uma exposição didaticamente constituída, seja porque não quisesse, seja porque julgasse que nem tudo ele teria condição de assimilar, seja, ainda, porque o assunto deveria merecer outros desdobramentos mais complexos. De qualquer modo, resolveu responder, não sem antes tomar fôlego, porque achou que iria deslanchar novamente:

— Você me pergunta e eu devo responder, porque a sua exposição me revelou que vocês estão todos contentes com este momento que passa. Se eu for delimitar as minhas sensações pelo mesmo padrão referencial, devo dizer que a minha felicidade nem pode ser considerada, porque eu me encontro sendo argüido justamente no tópico a que me referi quando disse que, no mesmo instante em que sinto o fluxo existencial tão intensamente, não posso reflexionar a respeito das sensações em si, ou seja, ou me preocupo em estabelecer um prisma intelectual para enfrentar...

Anésio percebeu que Adonias, com certeza, iria estancar de vez a fonte de suas intuições, porque se encaminhava, de novo, para o discurso do momento. Então, interrompeu-o de novo, gesticulando significativamente como quem vai mudar de assunto e lhe perguntou de chofre:

— Vamos iniciar o processo de restabelecimento induzido da memória? Você se considera apto a desvendar de vez todos os segredos que se ocultam de seu consciente? Ou, antes, gostaria de questionar algum tópico que lhe pareça confuso e que poderia causar algum problema quando da descoberta dos fatos e dos relacionamentos antigos?

— Gostaria muito de perguntar, desde logo, por que a gente necessita de tantos rodeios para atingir determinados fins, quando, na Terra, sabendo que a vida possui um conjunto de regras físicas, dentre as quais a correlação entre idade cronológica e idade psíquica, as pessoas vão dando prioridade a certos aspectos, segundo interesses que resguardam, e se abstêm de maiores filosofias, bastando-lhes a rotina das realizações concretas. Eu sentia isso e não chegava jamais a entender como é que algo tão importante quanto a vida futura era deixado nas mãos e sob a responsabilidade dos que se diziam representantes de Deus na Terra. Terei eu, eis a questão, deixado contaminar-me por esse tipo de estrutura mental, de modo que as minhas ânsias e expectativas residam justamente no fato de estar sendo obrigado a assumir completa responsabilidade pelo meu crescimento ou aperfeiçoamento espiritual?

— Não é bem isso, bom amigo, mas também isso. As coisas vão adquirindo cada vez maior complexidade no âmbito das reflexões, como quando a criança se desenvolve e seu aparato cerebral ganha desenvolvimentos físicos para dar guarida a novos raciocínios, como na mais célebre fase da passagem da mentalidade concreta para a abstrata. Também nós, no etéreo, e com maior razão, vamos incrementando ao acervo sempre mais elementos extraídos do inexaurível escrínio de nosso espírito. Sendo assim, é justo raciocinar de maneira mais simples quando o nosso adiantamento é pouco. O censurável se situa na faixa dos defeitos transformados em sutilezas, como a preguiça, por exemplo, a se pôr sob o escudo dos protetores, dos mentores, dos profissionais das diferentes áreas humanas, no caso que você citou, do sacerdócio, e assim por diante. Mas não se tem como fugir do auxílio especializado dos médicos, por exemplo, porque não podemos pleitear a todos os indivíduos que tenham freqüentado os exaustivos cursos médicos, como ainda tantos outros que nos enfadaria citar agora. Uma criança que tenta ser autodidata quase sempre esbarra com a alfabetização, fundamento de todo o conhecimento, ou melhor, de quase todo o conhecimento sistematizado em ciências e tecnologias. Quanto à vida futura, especialmente, todas as existências se abrem para a verdade, independentemente do volume de preconceitos que tragam arraigados em sua estrutura psíquica. Neste caso, o tempo de espera na espiritualidade, padronizado de forma diferente daquele que se vive no planeta, se torna um auxiliar importante para as descobertas sucessivas que encaminham os indivíduos para a assimilação integral das leis que regem o universo físico e o universo moral. Existem resgates a serem realizados? Tanto pior para as ânsias de progresso, porque a reconciliação é obrigatória, uma vez que, cada vez mais, a nossa felicidade, ou melhor, o nosso conforto e bem-estar espirituais dependem do esforço que dedicarmos à conquista das mesmas bem-aventuranças, neste caso provisórias, de nossos irmãos adversários, que têm de ser transformados em amigos, para que a gente consiga ascender, dado que, sem paz, isso jamais se realizará. Quanto a você, acho que se dará por satisfeito com o nosso empenho, mesmo porque não haverá de exigir de si mesmo, de imediato, a apreensão de toda a sabedoria.

Adonias arriscou ainda um palpite:

— Anésio, você está querendo dizer que não estou em condições de apreender todo o meu passado, porque teria de conhecer muitos outros princípios existenciais que desconheço ainda?

— Não estou dizendo isso, ou não lhe perguntaria se está disposto a fazê-lo. No entanto, cabe-me adverti-lo de que a sua memória irá desvendar-lhe muitos segredos para a decifração dos quais você terá de se aplicar com denodo, porque vão exigir-lhe um poder de perspicácia muito aguçado, já que a integração das causas a seus efeitos necessita de outros conhecimentos da realidade que não se encontram guardados em seus depósitos de memória, pelo simples fato de que todos nós sofremos o influxo dos acontecimentos gerados por outras entidades, cujos intentos nem sempre acabam sendo de nosso conhecimento. Daí a dificuldade de restauração da verdade dos entreveros, quando ela se dá após o decesso, valendo a palavra de Jesus, que pedia a reconciliação o quanto antes, tendo em vista, evidentemente, que as pessoas envolvidas têm a possibilidade de restabelecer todos os pontos de vista, ainda que fiquem devendo, muitíssimas vezes, o exame correto dos fatos psíquicos a que dão vazão mas cujos impulsos não dominam.

— Entendi, caro mestre. Se a pessoa é capaz de ter em conta o que na verdade aconteceu, há de ter também o cuidado de deslindar todo o processo que resultou naquele desfecho. Mesmo assim, penso que seja, no meu caso, quer dizer, sem generalizar, porque outras pessoas poderão estar pior preparadas que eu, penso que seja melhor que me lembre de tudo, esforçando-me, em primeiro lugar, por atribuir a cada pequenina interpretação que der aos acontecimentos os conceitos evangélicos superiores do perdão, do amor e do respeito pela condição de irmãos de todos os seres.; e, em segundo lugar, abrindo o coração aos seres que se interessarem em me ajudar, para que possam sugerir soluções onde eu mesmo estiver em dificuldade. Assumo, solenemente, o compromisso de não perturbar a ninguém, caso as minhas deficiências se situem num plano demasiado superior, prometendo buscar equacionar por mim mesmo todos os problemas, mas sem a prévia concepção de que esteja superiormente dotado para isso. Também, respondendo à sua advertência telepática, prometo manter-me dentro da esfera formada como campo de força pelos responsáveis por esta colônia de espíritos em fase de reconhecimento das forças existenciais necessárias para passarmos adiante no ciclo evolutivo. Não pretendo colocar mais nenhum ponto específico de reflexão, antes dos trabalhos de restauração assistida de minha memória.

— Vamos para as questões de ordem prática. Você daria preferência para uma recuperação do passado em estado consciente, permanecendo desperto, conversando conosco a respeito do que for descobrindo.; ou gostaria de permanecer como que em estado sonambúlico, ou seja, adormecido mas apto a conversar conosco, passando referências sobre o que vai percebendo, tendo como recurso a recordação da regressão de memória “a posteriori”, por força de incitarmo-lo a reagrupar o acervo recuperado?

— Quais as vantagens e desvantagens de um e de outro método?

— O processo em vigília vai fixando todo o desenrolar dos trabalhos na hora.; o sonambúlico peca por não oferecer esse tipo de controle imediato. No entanto, estando acordado, é bem mais fácil uma interferência emocional de caráter deletério, já que, dormindo, os eflúvios sentimentais quedam em suspensão.

— No meu caso, o que sugere você? Não seria bom iniciar de um modo, digamos, acordado, e terminar, se fosse preciso, através da indução hipnótica?

— Podemos começar com você consciente, é óbvio. Contudo, a violência das reações nervosas sempre haverá de obstar o trabalho de hipnose. Nesse caso, controlaríamos as suas sensações mais penosas através de nossos recursos de sedação, mas isto nos bloquearia o efeito do sonambulismo. Quanto a sugerir, eu acho que você está demonstrando que não se apressa, pela paciência em ouvir tantas explicações. Já tivemos casos de irmãos que não se derem ao esforço de ouvir nenhum arrazoado complementar, de sorte que, para esses, estar conscientes não se recomendava. O fato de você não ter tanta pressa poderá ser útil para, estando desperto, poder solicitar que suspendamos a sessão em determinado ponto, para volvermos a trabalhar na recuperação do passado noutra oportunidade, porque, afinal de contas, como você está a ruminar, o nosso tempo se conta sem a precipitação provocada pela constante presença da morte no âmbito mental dos humanos.

— Aceito a sugestão. Vamos dar início aos trabalhos.

Adonias foi convidado a entrar no salão em que se achavam os aparelhos e demais petrechos para aquele tipo de serviço especializadíssimo. Foi quando Anésio explicou:

— Teremos de adormecê-lo por algum tempo para medição completa do funcionamento de todos os seus órgãos, particularmente do seu cérebro, tendo em vista as dificuldades recentemente vivenciadas. Tudo bem? Devo dizer-lhe que, acordado, você criaria interesses paralelos que iriam desconcentrá-lo para a finalidade desta nossa contribuição para o seu processo de crescimento espiritual. Sugiro-lhe que faça uma prece de agradecimento ao Senhor pelo alimento espiritual que você está em vias de receber, como ainda para rogar que nos ampare em nossa tarefa.

Ao mesmo tempo em que Adonias começava sua oração, sentiu um odor adocicado que lhe provocou uma irresistível sonolência. Em breve, estava adormecido.
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