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Erotico-->19. NO NECROTÉRIO -- 05/11/2003 - 07:34 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Separados do longo amplexo, pôde Adão manifestar-se:

— Alice me contou o seu desejo de ir ao necrotério. É passeio que nós só recomendamos às pessoas capazes de se manterem isentas de chiliques, que a visão ali gera imensas tristezas.

— Não sei por que uns cadáveres...

— Não são os cadáveres, meras carcaças materiais em decomposição. São as pessoas que entram para reconhecerem os corpos e que não se contêm diante da morte. O sofrimento, muitas vezes, contamina e se espalha em ondas que eu só não diria físicas porque são também emocionais.

— Nos meus dias efetivos de sacerdote, tive oportunidade de encomendar muitos corpos e de amenizar as dores morais de muitos parentes aflitíssimos. Acho que não perdi a minha fleuma.; antes, nestes últimos tempos, tenho criado uma certa crosta sentimental, tanto que vou passando adiante ao ver pessoas...

— Conte um caso específico.

— Hoje mesmo me condoí ao ver uns rapazelhos a fumar craque debaixo de uma ponte e o máximo que fiz por eles foi orar em silêncio, solicitando dos anjos de plantão que cuidassem dos petizes.

— Acho que foi um bom exemplo, mas, para mim, apenas significou que você tomou consciência de que nem todas as soluções estão nas mãos da gente, ainda mais porque existem seres vigilantes encarregados, mais ou menos, da segurança vital de cada um. Esse “mais ou menos” corre por conta da necessidade de se respeitar o livre-arbítrio de cada um e o espectro de seus débitos. Se Jesus julgasse que seria um benefício para a humanidade, não se esforçaria por sofrear todos os atos indignos que as pessoas praticam umas contra as outras?

— Segundo Kardec ou os espíritos que lhe ditaram as famosas respostas...

— Muito bem!

— ...ninguém volta atrás no caminho evolutivo que percorreu, ou seja, sempre se tem uma nova oportunidade de se aprenderem os fatos da vida. Lastimável é quando o organismo perece sem que a mente tenha adquirido as mínimas noções do amor, da solidariedade, das virtudes em geral. Neste caso, é uma pena que caiam nas profundezas do báratro.

— Mas, como você mesmo disse, de onde podem voltar...

— Reencarnação? Eis algo difícil de engolir e muito mais de digerir. No entanto...

— Se você quiser ir visitar o necrotério, eu preciso prepará-lo para não ocorrer de novo o que aconteceu na biblioteca. Vamos prevenir para não ter de remediar.

— Vou tomar algum tranqüilizante?

— Vamos providenciar um sedativo bem leve, que não cause sonolência. Um paliativo para algum desfalecimento natural em quem não está habituado ao espetáculo da descoberta capital da morte e do morto. Para isso, vou convocar Alice e Anésio, que se encontrarão conosco lá.

Enquanto caminhavam até o elevador, Adão conversava pelo telefone celular, de modo que, quando se depararam no andar em que se situava o necrotério, lá já estavam o médico e a enfermeira.

Adonias formalizou um cumprimento ao médico do cérebro e sorriu o mais meigamente que lhe foi possível para a enfermeira, que lhe correspondeu ao gesto afetuoso.

Então, coube a Adão fazer as honras da casa:

— Nós vamos entrar por um longo corredor e você irá reparar que há muitas salas de espera onde se encontram pessoas convocadas para o reconhecimento dos corpos. Existem alguns cadáveres que estão conosco há muito tempo, refrigerados para não se deteriorarem, à espera de identificação, porque já passou o tempo em que os desconhecidos eram enterrados como indigentes. Hoje em dia, os exames do D.N.A. propiciam cem por cento de segurança quanto à identidade, caso tenhamos possibilidade de cotejo com algum vestígio somático resguardado, um fio de cabelo, um pedaço de unha, u’a mancha de sangue etc.

Enquanto Adão explanava, Anésio corria os olhos na relação das pessoas à espera de serem chamadas. Foi assim que chamou a atenção dos demais:

— Temos aqui um exemplo que poderá elucidar o interesse do nosso sacerdote. Trata-se de um acidentado na linha férrea. Espetáculo horroroso para qualquer um, que dizer para o pobre que irá deparar-se com o defunto!...

Adão quis sentir até que ponto ia a curiosidade do padre:

— Quer arriscar esse caso?

— Qualquer um.

— Então tome esses comprimidos que Alice lhe trouxe.

Eram duas cápsulas transparentes, uma com conteúdo vermelho.; outra, com conteúdo azul. Ao apanhar os medicamentos na palma da mão, Adonias sentiu um certo frêmito a partir do contato, como se estivessem carregadas de eletricidade. Mas calou a impressão que teve, com medo de que pudessem considerar indício de transgressão do princípio da fleuma que havia anunciado.

Tendo tomado o medicamento, aguardou algum efeito sedativo. No entanto, o que lhe ocorreu foi exatamente o contrário: ele como que despertou para a realidade circunstante, como se todos os seus sentidos se aguçassem.

Não resistiu e confessou aos médicos:

— Estou sentindo-me muito mais plenamente, como se tivesse recebido uma alta dose de estimulante.

Anésio foi quem esclareceu:

— É essa a reação desejada, pois queremos vê-lo mais cônscio de suas reações, para poder subjugar o que poderia constituir-se em fonte de excessivo estresse. Estimulando os centros de capacitação da vontade, caracterizamos melhor a entrada das informações que devem ser bloqueadas antes de causarem prejuízos. Não é verdade que o estado de melancolia, por exemplo, gera certa apatia e, portanto, uma abertura para as más influências? Não é verdade que o efeito das drogas em geral é alienante, de sorte que se liberam de vez as más tendências, tanto que muitos criminosos precisam dopar-se para praticarem seus crimes e, quando não no fazem, é porque a reação orgânica libera determinados produtos químicos que exercem o mesmo efeito?

Adonias se surpreendia com a facilidade com que ia absorvendo as explicações de Anésio, muito diferentemente do que lhe ocorrera durante o último exame. Chegou mesmo a se arrepender de tê-lo chamado de “enfadonho”, mas não teve tempo para outras considerações, pois ia sendo encaminhado para o saguão em que havia um número inimaginável de gavetas hermeticamente fechadas, onde, concluiu ele, deviam estar guardados os cadáveres.

Realmente, foram logo introduzidos naquele ambiente silencioso três pessoas, um médico, uma jovem médica com a pessoa indicada para efetuar o reconhecimento. Não havia nenhum funcionário encarregado de abrir e fechar a gaveta, de modo que coube ao médico acionar o botão que efetivou a extração mecânica do corpo desnudo para a frente do infeliz interessado.

Adonias se concentrou na observação do cadáver, querendo avaliar se a visão do desastre ferroviário lhe causaria algum transtorno psíquico. De fato, não era nada agradável o que via: uma pasta de carne e de ossos que só não estava esvaindo em sangue porque congelada. Foi quando ouviu um grito lancinante que se voltou para a pessoa amparada pela doutora. O desgraçado reconheceu o defunto, evidentemente, embora a Adonias não representasse ser possível que alguém pudesse dizer quem é que estava ali embalsamado.

Mas tudo se passou muito rapidamente. A pessoa que se desesperava de início, encostou o rosto no ombro da médica, enquanto se recolhia o cadáver ao sepulcro provisório. Depois saíram, restando a Adonias uma pergunta que considerou sublime, no sentido de perceber a razão que levara os companheiros a tomar a atitude que tomaram:

— Por favor, Adão, ou o senhor, Doutor Anésio, digam-me por que é que permaneceram os dois extáticos, deixando todo o problema do atendimento do coitado para os outros?

— Porque, disse Adão, a nossa preocupação é com você. Nós não nos habilitamos em relação ao espectro das possíveis reações daquela pessoa, mas os médicos que atendiam, sim. Desse modo, somente sob solicitação deles é que atuaríamos. Isso responde à sua pergunta?

— Responde. Mas eu gostaria de saber como é que foi aquele defunto reconhecido. Não vi nada que pudesse levar o outro a identificá-lo.

Anésio se adiantou:

— Existem traços pessoais que se fixam na mente de tal forma que uma unha mais ou menos abaulada é suficiente. No caso em tela, o sujeito reconheceu previamente as roupas, de sorte que se concentrou em alguma característica muito própria, como formato das pernas e dos pés, dos dedos das mãos, da cor dos cabelos, algo que só ele mesmo poderia conhecer.

Adonias insistiu:

— Sei que vocês não estão preparados para isto, mas, se meu pai estivesse aqui, me seria dado reconhecê-lo?

Adão:

— Perfeitamente. Vamos sair até o terminal do computador que podemos pedir a informação correspondente.

Adonias sentiu uma espécie de calafrio que disfarçou. Teve receio de que pudesse estar na pele do infeliz.

Enquanto Adão pesquisava no aparelho eletrônico, Anésio, ajudado por Alice, media a pressão e fazia a contagem dos batimentos cardíacos do padre.

— Meu amigo, disse Anésio, você se deixou alterar um pouco. Não seria o caso de sairmos?

— É que eu mesmo me deixei surpreender por uma possibilidade funérea. Mas acho que vai passar logo.

Adão acrescentou:

— Vai passar quanto ao fato de saber que o corpo de seu pai está no jazigo perpétuo de sua família. Eis aqui a data do falecimento dele, que, se não me engano, se deu alguns dias após a sua internação aqui na Igreja Cristã.

Adonias aproximou-se dos dados da tela, percebendo que, exatamente três dias depois de haver saído de casa, o pai morrera. A causa da morte não estava assinalada, mas também não havia lugar para esse registro. Foi quando resolveu perguntar a Adão:

— Podemos saber de que morreu meu velho?

— Podemos e não podemos. Tal informação somente é liberada em caráter sigiloso, por determinação judicial. Você não quis perguntar para sua mãe?

— A notícia me deixou meio estupidificado. Agora mesmo, se não fosse o remédio que tomei, poderia dizer que essa data deveria contristar-me deveras, ainda mais porque, algumas noites antes, eu havia sonhado com meu pai, que me recomendava para tomar cuidado com esta instituição. Mas, como foi apenas um sonho, não dei importância ao fato.

Foi Anésio quem fez o próximo convite:

— Está disposto a ver um rapazote de dez anos em um reconhecimento?

— Não existe nenhum parente maior de idade para isso? Por que deixar uma criança em possível estado de choque?

Anésio:

— Somente são admitidos neste setor pessoas com inteiro domínio de si mesmas. Antes do efeito emocional mais forte, como estamos fazendo com você, por solicitação imperativa de sua vontade, demonstramos a dor de outras pessoas e analisamos as reações de cada qual. Esse garoto passou por uma preparação eficaz, com certeza. Quer comprovar?

De volta ao saguão, já lá se encontravam um rapazinho e seu acompanhante, senhor de certa idade, muito bem vestido, com o indefectível crachá na lapela.

Os médicos acenaram respeitosamente, mas o distinto senhor se aproximou deles, fazendo questão de abraçá-los, sem esquecer de estalar nas faces de Alice os três beijos da praxe.

Adão fez as apresentações:

— Doutor Félix, este é o nosso amigo, Padre Adonias, que está em vias de se integrar ao corpo docente da casa, na qualidade de superior do Departamento de Teologia Cristã, emérito que é nas Escrituras Sagradas.

O outro estendeu a mão e desejou-lhe boa sorte nas próximas iniciativas. Desculpou-se dizendo que estava atarefado, elogiou a coragem de Adonias em enfrentar a dura passagem do reconhecimento, pediu a todos que orassem pelo rapaz, não que precisasse mas que um reforço de assistência etérea sempre haveria de ser muito bom.

Estranhamente, Adonias quase não ouviu as palavras ditas pelo outro mas as compreendeu muitíssimo bem. Considerou que seus sentidos estavam afiadíssimos e pôs-se em oração, juntando-se ao coro de seus três acompanhantes, num suave padre-nosso.

Nesse instante, ouviu um longínquo cantar de muitas vozes, harmonioso coro que fazia o ar fremir em paz, dando-lhe ao coração um bem-estar que há tempos não sentia. Tentou decifrar o sentido dos versos, mas pareceu-lhe que não havia letra inteligível, ao menos para o seu conhecimento lingüístico. Também não se deu conta de que se tratasse de latim nem de qualquer das neolatinas.

Nesse meio tempo, Félix abraçou o menino e acionou a gaveta que trouxe para fora o corpo de uma criança de, no máximo, seis anos, quatro ou cinco anos mais nova que o jovenzinho ali presente. Este, não dando demonstração de tristeza, apenas afagou os cabelinhos do corpo sem vida e beijou as mãos de seu protetor, num gesto do mais profundo agradecimento.

Adonias aproximou-se do cadáver e pôde observar os mesmos traços familiares da criança ali presente cheia de vida. Foi quando lhe perpassou pela memória uma figura absolutamente insólita para aquele momento, talvez trazida ao consciente pelo fato de também ele, o Renato, ser um rapaz bastante novo.

Enquanto o velho e o mocinho saíam, Adonias como que se refez de um pensamento mórbido que fazia questão de apadrinhar. Passava-lhe pela mente a possibilidade de estar ali para um reconhecimento definitivo. Então, desejou estimular uma resposta dos presentes:

— Eu bem poderia supor que um irmão mais velho tivesse vindo comprovar que aquele defuntinho era de um querido membro de sua família. Mas, em se sabendo que o tempo aqui marcha para fornecer aos jovens um crescimento adequado ao seu cabedal bioenergético, segundo a programação física de seu organismo... Em suma, juntando as coisas, eu acho que não se tratou, nos dois casos que presenciei, de um reconhecimento mas de uma confirmação. O mais velho se viu diante de um desastre.; o mais novo, se contentou com as informações que recebeu, conforme aquele plano de assistência a que vocês se referiram. Eu mesmo não tenho como duvidar de que o atendimento que se presta aqui para qualquer dos internados é de superior qualidade. Sendo assim, os fatos, sabendo que o tempo passa para todos, pondo em relevo a própria organização corpórea de forma até mais lenta, às vezes, trazendo, ao contrário, mais mocidade aos que são mais velhos, me levam a concluir que esta instituição é uma daquelas que agasalham os seres que se despedem da vida e que têm boas perspectivas de um crescimento condigno, porque não se abrem as portas do inferno para ninguém, como permanecem fechadas as do céu, porque nem pensar em se permitir que seres imperfeitos freqüentem o paraíso. Esta música divina que estamos ouvindo me põe em êxtase para orar agradecido ao Pai por tanta misericórdia, ao me trazer o mais suavemente possível à compreensão de que passei pelos portais da morte, em um passado que não estou apto a dimensionar. Se vocês quiserem aceitar a minha manifestação de intenso agradecimento, apogeu que me é possível neste feito da mais pura concepção da verdade, atendam o meu pedido de perdão por tanto trabalho que lhes dei, pois estou entendendo agora qual era o bloqueio que me impedia de vasculhar os arcanos de minha memória, durante uma temporada em que não me interessava saber que estava atuando em outro campo vibratório. Sei que vão abrir uma portinhola e expor o meu cadáver. Tudo bem. Não terei para com ele mais do que comiseração por ter deixado a vida tão cedo.

De repente, pareceu a Adonias que, se continuasse, colocaria para fora todas as dúvidas em que se transformavam as passagens existenciais longe do corpo denso. Percebeu que sozinho não daria conta de responder a todas. Achou inexpressiva sua manifestação de agradecimento e sentiu que corria o risco de desfalecer. Mas se recordou de que estava sob efeito de um poderoso elemento magnético ou energético, que não sabia definir de que se tratava, de modo que acabou por compreender que a supremacia do intelecto estava sendo induzida para seu próprio benefício.

Quase insensível para os eventos de caráter fundamental para seu destino dali para a frente, simplesmente abraçou demoradamente cada um dos três companheiros, terminando por acionar ele mesmo um botão qualquer na parede, crente de que, qualquer que fosse, revelaria o seu próprio cadáver.

De fato, abriu-se a portinhola e de lá do fundo saiu um corpo vestido com batina. Era ele mesmo, ou melhor, o que fora no momento do desastre, porque falecera vitimado por acidente automobilístico, recordação que lhe veio por inteiro naquele instante, sem dor alguma, a não ser um forte desconforto quando lhe ocorreu que o motorista não era ele.

Imediatamente, Adonias se desinteressou pelo cadáver, apertando de novo o botão para que se recolhesse o mecanismo e ameaçou encher de questões os parceiros. Mas, seja porque houvesse terminado o efeito dos comprimidos, seja porque lhe surgia na mente uma presença querida a seu lado na cena final da vida, a verdade é que mal teve tempo de ser amparado, sem consciência de que eram outros os fatores que o mantinham no círculo existencial em que se encontrava.

Iria acordar em uma daquelas salas em que se recolhiam as pessoas antes e depois da identificação. E sua primeira expressão foi:

— Pai, meu pai no mundo, que dor você deve ter suportado por ter provocado a morte do filho de seu coração!

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