Usina de Letras
Usina de Letras
25 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62330 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22543)

Discursos (3239)

Ensaios - (10406)

Erótico (13576)

Frases (50709)

Humor (20055)

Infantil (5474)

Infanto Juvenil (4794)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140845)

Redação (3313)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6220)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Erotico-->14. NO AMBULATÓRIO -- 31/10/2003 - 06:25 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Resignou-se Adonias a esperar sentado na sala cheia. Olhares curiosos repousavam sobre ele, que correspondia com acenos e sorrisos, os melhores que sua figura cadavérica parecia emitir.

Na sala, havia exatamente doze pessoas, todas de certa idade, com exceção de uma criança de uns nove anos, acompanhada da mãe, chorosos e conformados, afagando a velha senhora os cabelos loiros da criança, que se aconchegava em seu colo.

Não se passaram cinco minutos e um dos velhos se levantou com alguma dificuldade e caminhou até ele:

— Padre Adonias, que faz o senhor aqui?

Puxou o sacerdote pela memória e alegrou-se por reconhecer o outro:

— Como está, Professor Antônio?

— Vejo que faz tempo que não nos vemos. O senhor está me confundindo com meu falecido pai. Eu sou o Vicente, o filho mais novo do professor, professor eu mesmo, de física, coroinha nos meus tempos de garoto e antigo freqüentador de seu confessionário.

Adonias fixou atentamente os olhos no velho diante de si. Homem que, pelos seus cálculos, não poderia ter agora mais do que quarenta, quarenta e cinco anos, mas que estava com o aspecto macilento de uma pessoa de quase setenta. O padre, no entanto, queria saber mais:

— Com que, então, sempre o Professor Antônio veio a falecer. E você, meu caro, como é que está tão acabado?

Vicente sorriu dando mostra de haver compreendido a surpresa do sacerdote, pediu e obteve um lugar ao lado dele, e se deixou esparramar por mais de quinze minutos de explicações. Havia sofrido muito com a esposa, que o abandonara com dois filhos menores. Mais tarde, em segundas núpcias (não oficiais, porque a Igreja não sacramentava o matrimônio de pessoas divorciadas), teve de abandonar ele mesmo as crianças às mãos dos avós maternos, precisando aturar os “pestinhas” da outra mulher, que o atormentaram por mais de dez anos. Sofreu um acidente (momento em que fez questão de lembrar aquele sofrido pelo padre e que lera nos jornais e vira na televisão, tremendo choque de dois carros, a propósito perguntando a respeito do pai de Adonias, o Seu Fernando, que se envolvera no mesmo acidente, recebendo a informação sucinta de que o pai estava bem mas que o evitava desde que fora expulso da Igreja). Fora excomungado? Pois Vicente não sabia. Mas passou ao largo dessa notícia, muito interessado em demonstrar que vivera no hospital por mais de cinco anos, debilitado a mais não poder, recuperando-se agora, muito embora estranhasse sobremodo a fantasmagoria que sua figura representava aos olhos de quem o conhecera forte e robusto. Contou que se encontrara com alguns alunos já adultos que tiveram a mesma estranheza perante a sua antecipada senectude. Quando ia começar a falar a respeito dos tratamentos que vinha recebendo, ouviram no alto-falante a voz suave que pedia para que Vicente comparecesse à sala de número oito, no fundo do corredor. E lá foi ele, não sem antes estreitar o sacerdote, que não teve como não pensar em que dois sacos de ossos estavam num amplexo que só duas figuras medonhas da morte com suas alfanjes poderiam proporcionar.

Assim que o outro desapareceu porta adentro, Adonias correu para o reservado masculino, com a indefectível cartola cruzada por uma bengala sobre umas luvas, a se ver no espelho.

“Raios! Que eu estou bem mais bem parecido que o pobre físico de físico pobre.”

Sorria perante a facécia vocabular e de satisfação de ver sua imagem escanhoada, refletindo uma idade pouco mais ou menos compatível com os seus cinqüenta e dois anos de idade. Reparou em que os cabelos também estavam aparados, já crescidinhos, com uma pequena escovinha à testa, e em que haviam recuado uns cinco centímetros dos lados. Em torno da cabeça, no entanto, notou que haviam passado a navalha ou a gilete, sem que, contudo, tivesse fresco na memória esse trabalho de barbeiro, desde que nenhuma atividade concernente a isso havia Alice desenvolvido naquele mesmo dia.

“Será que, quando desmaiei, entrei em coma, pensando estar observando tudo ao derredor, mas despertando muito tempo depois, quando os socorros de Adão e companhia estavam surtindo efeito?”

De qualquer modo, ficou melhor impressionado com a sua fisionomia do que com o arremedo de caveira do Vicente.

Quando voltou à sala de espera, todos os lugares estavam ocupados. Logo, porém, foram sendo chamadas as pessoas, notando Adonias que algumas que lá não estavam quando se ausentou, partiam para os exames antes dele.

“Bem feito. Você não sabia que iria perder a vez?...”

Nem bem fez a repreensão íntima e ouviu o seu nome:

— Padre Adonias, por favor, sala oito, no fundo do corredor.

No caminho, deu com Vicente voltando cabisbaixo. Ia deixá-lo passar, a ver se o notava, mas um passo antes de se cruzarem, ouviu do outro:

— Fique em paz, amigo confessor. A sua sina não pode ser pior que a minha. Vá com Deus!

— Deus o abençoe, meu filho! Vou rezar por você.

E cada um seguiu seu destino.

Na sala de número oito, o Doutor Anésio:

— Desculpe-me, Adonias, mas as regras são para atender os que chegam primeiro.

— Doutor, explique-me por que algumas pessoas passaram na minha frente, só porque fui ao banheiro.

— Você não se encontrou com um velhinho saindo desta sala?

— Sim.

— Quer dizer que ninguém passou na sua frente. É que neste corredor existem muitas salas com diferentes especialidades. Você entende, pois não?!

Adonias resguardou-se e mediu a intensidade de suas reações emocionais. Por tão pouco, estava dando-se ao trabalho de se perturbar, correndo um risco absurdo de perder aquele domínio que se via ainda exercendo sobre os sentidos. Na verdade, notou que as paredes não emitiam mais as vibrações sutis nem os sons vinham das profundezas. Os odores, no entanto, lhe indicavam a presença de alguns produtos hospitalares, tendendo para o éter, para o álcool ou para os anestésicos, que ele não soube caracterizar direito.

“Preciso concentrar-me em Jesus e em Nossa Senhora. Mas não vou pedir por mim. Vou pedir pelo Vicente, que precisa mais do que eu.”

Enquanto o preparavam para a tomografia, desligou-se do ambiente e situou-se mentalmente no meio de sua sala de conferências, lugar que deveria tornar sagrado com os convites que faria aos santos e aos anjos. Naquele ambiente ideal, repousou o olhar no horizonte, vendo o mar pintado na parede modular suas ondas e espreguiçar-se nas areias. Sentiu-se na praia, aspirando a maresia e agradeceu ao Pai a felicidade da vida e da existência, pedindo para o esquelético irmão professor um pouco daquela paz e daquela plenitude de felicidade.

Quando se deu conta, o exame já havia terminado e o enfermeiro fazia a limpeza do gel que ajudara a fixar os eletrodos.

Um instante depois, Anésio apareceu:

— Adonias, venha observar-se por dentro da cabeça.

Era um convite irrecusável.

Na sala ao lado, havia uma estranha aparelhagem eletrônica. Estava desligada, aguardando o comando do facultativo. Então, Anésio começou:

— Assim que eu ligar o aparelho, você vai ver uma espécie de crânio transparente em três dimensões, como se estivesse projetado dentro desta tela de computador. Através destes botões, eu posso fazer que gire para qualquer dos lados, como ainda que se volte para baixo ou para cima. Em suma, a máquina transfere uma imagem real. Mais ainda: uma imagem que permite vasculhar o interior de seu cérebro, setor por setor, de forma a definir as possíveis dificuldades de seu aparelho bioenergético um tanto usado e maltratado. Não se assuste com as mudanças de coloração dos filamentos nervosos e outros que irei solicitar que o computador identifique. Saiba, desde logo, que o seu tumor desapareceu completamente. Não há vestígio algum dele. No entanto, existem alguns pontos de estrangulamento que estão bloqueando o livre curso de seus neurônios. Você quer explicações mais técnicas?

— Gostaria muito, se eu tivesse como traduzi-las para o meu jargão eclesiástico. Mas, como não me dediquei ainda aos estudos de medicina...

— Muito bem. Uma vez caracterizados os problemas para o paciente, temos a certeza, nós desta equipe médica da “Igreja Cristã”, que receberemos integral apoio para a superação das dificuldades, principalmente porque estamos diante de um homem de fé e de Deus, que sabe louvar o Criador pelas criaturas. Diferentemente do professor de física que o antecedeu, que recebeu uma grave censura por desleixar os pensamentos positivos.

Lembrou-se Adonias do aspecto caído do ex-confessado e de suas palavras desalentadas no corredor. Mas Anésio acionava os botões e Adonias se maravilhou com a tecnologia de última geração. Espantava-se com as filigranas reveladas pela verdadeira cinematografia que lhe mostrava um mundo íntimo inteiramente eletrificado por pequenas explosões luminosas que percorriam os filamentos nervosos, indo depositar as informações eletrônicas ou bioquímicas nos reservatórios que percebia como um verdadeiro poço sem fundo, a captar tudo o que se passava do lado externo e que lhe era encaminhado por uns grossos feixes que se encontravam na base do crânio.

Quando precisou que prestasse atenção nos pontos críticos, Anésio percebeu que o padre estava simplesmente extasiado na contemplação de seu próprio organismo.

— Sabe no que estou pensando, doutor? Nesses infelizes que destroem essa maravilha da criação divina com o consumo de drogas, e nos criminosos que dão cabo dos irmãos, sem pensar em que estão, de certa forma, dando cabo da própria magnificência da inteligência suprema que deu origem a todas as coisas.

— É verdade, Adonias. Quanto mais eu estudo, menos me arrependo de haver nascido entre os mortais, muito embora eu sinta, pela profissão que abracei, que até este maravilhoso mecanismo biológico, fisiológico, com todas as suas estruturas...

Nesse ponto, Adonias se perdeu em conjeturas, imerso em sua mente, querendo perceber por dentro de si mesmo o que tinha diante dos olhos. Desejava criar a consciência de sua face interna, do mesmo modo que esquadrinhara a cabeça refletida no espelho. Sem perceber, interrompeu a série de ponderações do médico:

— Doutor, é possível, ao mesmo tempo, estar sendo examinado e vendo o que se passa nesta tela? Seria como as mães que vêem seu feto na barriga, nos aparelhos de ultra-sonografia.

— É possível e, em certos casos, recomendável, quando pretendemos demonstrar ao paciente que, sob certos impulsos, se apresentam determinados resultados. Não é o seu caso, porque a nossa necessidade se prende ao fator de anti-estresse, ou seja, queremos que sua mente esteja absolutamente descomprometida com os eventos depressivos que soem ocorrer quando o indivíduo se preocupa com fatos desconhecidos. Veja bem, eu não estou afirmando que você não irá jamais passar por um exame “ao vivo”. O que quero deixar claro é que nós mesmos ainda não diagnosticamos plenamente as causas que vêm provocando os distúrbios que ainda agora detectei. Você é capaz de caracterizar quais são os filamentos energéticos que apresentam defeitos no seu cérebro? Não, evidentemente, porque desconhece os mínimos atributos de cada órgão e quais as funções que se descrevem na tela, pela análise feita através do programa que estamos empregando para uma leitura mais inteligente e precisa...

De novo, Adonias perdeu o fio da meada. Mergulhou fundo na memória e buscou reavivar alguns textos que havia transcrito no convento, com sua letra magnificamente bem torneada. Deparou-se com um texto em latim medieval, São Jerônimo adaptado para uma leitura mais propícia aos modernos. No entanto, tal lembrança o encheu de sombras íntimas, pela desconfiança de que, de novo, não iria se recordar das circunstâncias em que fizera a cópia. Acordou para a hora e disparou contra o médico:

— Doutor Anésio, o senhor que sabe tanto a respeito da cabeça humana, poderia me esclarecer quanto a um processo de memória que me tem deixado um pouco confuso, porque sou capaz de me recordar de inteiros teores de textos sem, contudo, relacionar esse conhecimento com fatos de minha vida, principalmente no que respeita ao tempo que passei no seminário e, depois, no convento. Ainda há pouco, perpassou-me diante dos olhos da mente um texto integral em latim. Quando desejei refletir a respeito de como havia penetrado no âmbito de meu lóbulo cerebral das recordações, se assim posso expressar-me, me vi totalmente bloqueado, o que, eu bem que senti, me ocasionou um estremecimento que me fez temer até pela segurança de minha estabilidade intelectual ou de meu equilíbrio como ser humano dependente das reações desse centro cerebral irradiador de comandos nervosos, através das interpretações que está habilitado a fazer de todas as informações que recebe continuamente. Que me está acontecendo?

Anésio coçou a cabeça antes de responder, mas, de qualquer modo, pretendeu dar uma idéia o mais exata possível do funcionamento da memória, começando por definir melhor os termos, volvendo a caracterização dos órgãos para seus aspectos técnicos, no que inseriu a terminologia correspondente aos ganhos científicos no setor. Foi quanto bastou para Adonias, pela terceira vez, desligar-se do enfadonho orador.

Desta feita, porém, ficou a brincar com a “Carta” de São Jerônimo na mente, desejoso de ler as palavras sem entender o texto. Bastava-lhe a “Vulgata”, ou seja, a tradução para o latim dos Evangelhos providenciada pelo santo.

Anésio chegava ao fim:

— Necessariamente, existem vários planos de memória no cérebro humano. Posso dizer que um deles deve ter seu fulcro na alma, porque ninguém poderia compreender que, com a decomposição dos tecidos do cérebro, principalmente após a morte, a alma iria ascender ao céu totalmente esquecida de tudo quanto passou no mundo. Quem sabe a sua dificuldade não se situe justamente na transposição desse portal mnemônico entre o cérebro carnal e a alma imortal? Nesse caso, não será este nosso aparelho que irá propiciar um diagnóstico, porque foi ele projetado para decifrar os mistérios capazes de serem transladados, através de ondas sonoras e luminosas, para o bojo eletrônico do descodificador computadorizado. Penso que a minha resposta tenha sido suficientemente clara para remetê-lo aos estudos do nosso volume de número dois que, se você tivesse lido, não estaria fazendo esta cara da mais absoluta interrogação perplexa e inconformada.

Se dissermos que Adonias estava pensando em tudo o que ouvira, mentimos. Ele estava simplesmente desejoso de efetuar um teste de memória, crendo que, se apenas ouvisse, poderia, mais tarde, avaliar a sua capacidade de restauração da palestra do médico, momento em que juntaria aos sons os respectivos sentidos vocabulares e frásicos.

Mas Anésio desligou o aparelho, dizendo que o próximo paciente deveria estar ficando impaciente... Assim, dava o aviso definitivo de que o padre tinha que se retirar.

No corredor, Adão esperava por ele.

— Por que não entrou, doutor?

— Estou acabando de chegar. Carregue de novo alguns volumes e vamos levar a coleção à biblioteca.

— Acho que vou interessar-me pelo volume de número dois.

— Ótimo. Sendo assim, vamos passar antes pelo seu novo cubículo...

— Cubículo? Mas o quarto que eu ocupava era bem amplo...

— Quartos da ala de cura e tratamento exigem maiores dimensões. Agora você vai ficar agasalhado em uma espécie de cela de convento, talvez bem menor. Mas não vamos perder mais tempo, porque está quase na hora de sua refeição. Vamos seguindo por aqui que eu vou entrar em contato com Alice para saber se tudo já está providenciado.

Enquanto Adão falava no aparelho portátil, Adonias ia brincando com a visão distorcida que lhe chegava das paredes, espécie de neblina colorida que lhe dava a certeza de que emanações partiam de todos os objetos, uma aura, um perispírito ou algo semelhante. Deteve-se no conceito de perispírito, abrindo mentalmente o livro de Kardec: corpo físico, corpo espiritual e espírito propriamente dito. Achou tudo até certo ponto coerente, mas preferiu desviar as suas observações para as irradiações meramente térmicas, que era capaz de perceber desprendendo-se das paredes.

Ao entrarem no elevador, o interesse pelo futuro imediato apagou as impressões subjetivas de sua psique alterada.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui