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Erotico-->12. OS ESTUDOS -- 29/10/2003 - 09:58 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

“Vamos ver se venço estes meus ranços preconceituosos. A bem da verdade, a minha atual estrutura religiosa vem sendo disposta de molde a facilitar o acesso a todo o modo de pensar a vida, o mundo, o universo, a existência, para dar agasalho natural a todas as criaturas, distinguindo-as entre si pela maior, menor ou nenhuma responsabilidade sobre os efeitos deletérios das leis, e das organizações alheias às leis, exercidos sobre a felicidade material e moral de cada um. Que importância tem o credo pessoal para quem está praticando o bem? E que importância terá para quem bate no peito, como tantos que conheci e conheço ainda, e que, fora do ambiente sacratíssimo do templo, prosseguem, sem nenhuma reforma íntima, a perpetrar os atos contrários às determinações lúcidas de Jesus? Que digo eu? Essa gente não é capaz sequer de cumprir as leis do judaísmo mais ortodoxo, mosaico, levítico e farisaico, aquele que determina o cumprimento das leis de Deus dentro dos muros...”

Tendo percebido que encaminhava os pensamentos perigosamente para a crítica mais acerba aos pecadores, tendendo a julgar todo um povo enfeixado numa única condição de pensamento e de vida, resolveu Adonias que era melhor começar os estudos antes que os seus sentidos começassem a definhar de novo.

Abriu o primeiro volume e foi direto à introdução, para ver se descobria a misteriosa nota esclarecedora. De fato, encontrou uma chamada na palavra final do texto que remetia ao rodapé. Ali se consignava o fato de estarem aproveitadas as perguntas e respostas do livro de Kardec, cujos comentários, explicava-se, foram supressos por razões que se compreenderiam quando da leitura do segundo tomo da coleção. No entanto, ressalvava-se que todos os textos pertencentes ao intelecto do Professor Rivail (ficava claro que Allan Kardec era pseudônimo dele), se encontravam reunidos no final do volume, para satisfação da curiosidade de quem quisesse saber quais houveram sido as preocupações do estudioso mestre francês relativamente a orientar seus leitores para a melhor compreensão possível das respostas dos espíritos.

Foi assim que se viu Adonias absolutamente íntegro perante a lisura e a honestidade daquela obra.

“Será que a precipitação de ontem...”

Só então atinou que estava absolutamente perdido no tempo.

“Em todo caso, Alice me prometeu uma boa refeição. Vamos ver quando virá, muito embora não esteja nem um pouco com fome.”

Recordou-se da primeira questão e confirmou no livro. Lá também se consignava a célebre pergunta: “Que é Deus?” A memória lhe demonstrou que a resposta coincidia perfeitamente com o que tinha diante dos olhos.

“Preciso afeiçoar-me à resposta atribuída aos espíritos ou posso manter a minha idéia de que Deus é um ‘espírito perfeitíssimo’ etc.? Que diferença existe entre inteligência, como leio aqui, e a idéia contida na teologia católica?”

Aí lhe ocorreu que estava diante de conceitos.

“Tanto quanto sei, os conceitos se vinculam à inteligência que os concebe. Se foram gênios humanos que disseram ‘espírito perfeitíssimo’, se foram gênios espirituais que disseram ‘inteligência suprema’, que posso eu colocar como adendo significativo ao inteiro teor do texto? Quem sabe alguém poderia levantar a hipótese de que a palavra ‘espírito’ remeta a um sentido mais de criatura do que de criador. Mas quem me diz que o termo ‘inteligência’ não está prenhe das conotações mais entusiásticas pelo desempenho intelectual do homem, um artifício sutil para atribuir à Divindade uma qualidade da criatura? Acho que tenho de suspender as minhas considerações unilaterais, porque temo que não irei progredir muito em relação às idéias que me ocorrem e que não se deixam estruturar num sistema filosófico muito coerente, principalmente porque tantas foram as vezes que repeti a definição dogmática da religião que o simples enunciado de uma possível modificação me assusta. Por outro lado, sinto que o meu cérebro está abrindo-se deveras para um entendimento mais universal, como se a igreja onde me formei e para a qual trabalhei estivesse limitando-me o campo de visão. Não estou intuindo nada no sentido de atribuir ao sistema de Kardec uma performance mais universal ou mais abrangente, no entanto, só o fato de estar predispondo-me ao exame das noções filosóficas, sem o peso da consciência religiosa, já é um passo adiante na contenção que devo exercer dos eflúvios meramente emotivos, aqueles que me fizeram desandar. Ao contrário, sinto o meu poder mental em pleno desenvolvimento, como se me fizesse bem estar a considerar a pujança das concepções alheias em confronto direto com a pequenez de minha visão individual.”

Tão contente ficou o padre com o fato de estar dominando as suas reações que resolveu rezar uma velha e amada oração, buscando estar atento a todos os termos, para ver como repercutiam face à nova disposição mental:

“Creio em Deus-pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra...”

Sem querer, obstou o desenvolvimento da prece e se concentrou na primeira palavra.

“Eis que se apresenta, de cara, a condição da fé. Como enfrentar esse conceito sem envolvimento emocional?”

Por mais que revirasse a memória para encontrar resposta adequada aos anseios hodiernos, Adonias não atinou com a explicação que lhe daria total domínio da idéia. Mas não se deixou deprimir. Sobre a mesa havia um caderno e uma caneta de ponta de cerâmica que deixava uma linha fina e cintilante de tinta azul.

Rapidamente escreveu a pergunta que não alcançara responder, refletindo que, se Adão fugisse das perguntas como fizera antes, iria consignar um questionário valioso para responder oportunamente, quando da leitura dos próximos volumes.

Foi quando Alice apareceu com uma bandeja fumegante:

— Eis aqui, reverendo, a sua prometida refeição. Ao invés de perguntarmos aos pacientes do que é que eles mais gostam, nós fornecemos uma variedade muito grande, com a obrigação de preenchimento de um questionário em que solicitamos uma nota de zero a dez para cada prato. Em noventa e cinco por cento das vezes, as próximas refeições correspondem exatamente ao paladar da pessoa. Vamos comer?

— Eu estive pensando que não estava com muita fome. No entanto, como estou com o paladar aguçado, vamos à degustação e às notas, o que não deve ser tão difícil assim...

Realmente, havia mais de cinqüenta pequeníssimas porções. Adonias considerou a batalha que tinha pela frente e resolveu fazer uma seleção prévia dos acepipes.

— Posso começar pela salada?

— Perfeitamente.

— Eu costumava plantar agrião no terreno encharcado do fundo do convento. Não era com o fito de agradar os outros nem de atender às ordens do meu superior: era porque eu gostava de verdade. Nos últimos tempos, venho comendo o que me oferecem, quase sempre uma fruta ou um prato feito. Faz tempo que não experimento esta crucífera. Marque aí: nota dez.

No vigésimo quinto bocado, Adonias pediu clemência pelo fato de estar desistindo:

— Acho que vinte e duas notas dez e três notas nove são suficientes para caracterizar as minhas preferências. Estou certo?

— Pela minha experiência, são poucos os que são capazes de acertar os pratos prediletos sem degustarem, pelo menos, quarenta ou cinqüenta. O senhor está entre os de melhor performance. Contudo, quanto ao teor nutricional de suas opções, opinará nosso orientador especializado, porque nós temos aqui um engenheiro de alimentos, sim, senhor! Agora vamos tomar o nosso remediozinho para ajudar na digestão, sabendo que dará um pouco de sono.

Não demorou dez minutos e Adonias dormia tranqüilamente.

Acordou novamente no escuro. Desta feita, porém, não se levantou. Limitou-se a rememorar tudo por que passara desde que saíra careca da casa dos pais. Era uma viagem curta, de sorte que rapidamente pôs perante a visão da mente, como em painel cheio de claros e escuros, cada minutinho dos últimos dias. Em pouco tempo, estava diante do último bocado que agüentou, ditando a nota para Alice.

Então, se ergueu do leito e fez um esforço supremo para não tentar acender as luzes. Contentou-se em ir ao banheiro munido do primeiro volume da série, onde mal conseguia divisar as linhas e buscou realizar um exercício especial de memória, havendo solicitado, para o intento inabitual, a ajuda de seu anjo da guarda: queria relembrar todos os dizeres do livro, sendo capaz de suprimir os comentários do autor, para ver se chegava a um resultado parecido, numa tentativa de descobrir os segredos das informações ali constantes.

De fato, a realização mental ultrapassava com muita folga o desempenho material da leitura, apesar de sua acuidade visual estar denotando que enxergava agora melhor naquela semi-obscuridade do que há poucos dias em plena luz do sol.

Mas não quis Adonias decifrar o mistério. Pôs tudo na conta de sua serenidade, agradeceu em breve oração os desvelos de que se via apaniguado e seguiu em frente, não suspendendo o exercício desafiador senão quando chegou à derradeira resposta dos espíritos, a de número mil e dezenove, relativa à pergunta: “O reino do bem terá algum dia como situar-se neste planeta?”

Só aí percebeu que ficara entretido com sua tarefa hercúlea de memória, sem prestar atenção ao teor dos textos.

“Não tem nenhuma importância que não haja discutido comigo mesmo, muito menos com o falecido autor, melhor dizendo, com os falecidos autores, já que, hoje em dia, nenhum desses que lidaram com esta obra se contam entre os vivos, porque agora posso dizer a Adão que não encontrei nenhuma diferença entre um e outro texto, o impresso e o de minha memória, a não ser alguns deslizes quanto às traduções, evidentemente...”

Surpreendeu-se a comentar um tema completamente alheio à verdade inserida na obra, estendendo-se suas recordações para a época da leitura original, quando se debruçara sobre o texto em francês, diretamente. Percebeu que sua mente fizera uma versão própria para a comparação que efetivou e que os defeitos de tradução estavam encerrados em sua mente.

“Sei muito bem o que está acontecendo. Naquele tempo, eu confrontei a minha leitura com uma versão em português, para fixar melhor os dizeres, de sorte que me deixei impregnar pelos defeitos do segundo texto. Como era mesmo essa pergunta no original? ‘Le règne du bien pourra-t-il jamais avoir lieu sur la terre?’ Talvez tivesse sido melhor que o lugar fosse o sujeito da ação: ‘A Terra, algum dia, conseguirá constituir-se no reino do bem?’”

Não se espantou com a prontidão da língua estrangeira, no entanto, por mais que se esforçasse, não conseguia enxergar, ao lado do livro em francês, nenhum outro em português. No entanto, via-se a si mesmo com perfeição em seu minúsculo apartamento no seminário, absorto em decifrar os dizeres estrangeiros.

“Devo estar tendo algum tipo de bloqueio, porque deixei que avultasse o problema em meu cérebro. Eis que os cuidados que devo ter devem ser redobrados, porque, por muito pouco, já me vejo derivando neste mar encapelado de meus desígnios de perfeição.”

Antes que se desdobrasse a última observação, análise sobre análise, resolveu que era melhor assinalar no caderno a pergunta que se lembrara de fazer ao médico. Foi, portanto, até a mesa, acendeu a luz (surpresa: ela deveras se acendeu), iluminando o recinto de maneira indireta, porque os focos estavam escondidos em escaninhos ao longo de todas as paredes, dando a impressão de serem lâmpadas fluorescentes.

Perdia-se Adonias nas observações dos recursos de designer do arquiteto mas sem perder de vista o objetivo de assinalar a questão no caderno, onde, por fim, escreveu:

“Por que não consigo lembrar-me da época da leitura de um texto que apareceu em minha memória, sendo que dele eu me lembro perfeitamente?”

Não largou a caneta e escreveu em seguida:

“Qual a razão de você, doutor, me dizer que poderiam existir alterações nas transcrições do livro de Kardec, quando, na verdade, não achei nenhuma?”

Ainda uma vez, escreveu:

“Se trago todo o livro guardado na memória, por que devo preocupar-me em levantar problemas agora e não deixar para a oportunidade da aplicação prática e imediata de suas soluções? Melhor dizendo: a teoria, tida apenas na qualidade de estudo, ainda que desenvolva interesses intelectuais de monta, não estaria obstando a prática da caridade? Ainda melhor: não encontraríamos todos nós as respostas que lemos nestes livros, sem precisar efetuar as perguntas, só pelo fato de vivenciarmos as situações na realidade? Ou será que, para a pregação da superior moral do Cristo, não basta dar o exemplo de uma postura irrepreensível perante as tentações mundanas?”

Foi só então que percebeu que as perguntas caíam como cascata de dúvidas sobre a impávida folha, que se coloria de azul, pela letra magnífica de alguém que se dedicara um dia à cópia de longos textos, em função de aprender caligrafia, porque achava que era muito importante legar à posteridade, além de divulgar comercialmente, as maravilhosas páginas evangélicas e outras que o mestre do escritório determinava a ele e aos companheiros que escrevessem.

Todas essas recordações finais, provocadas pela admiração diante do próprio exercício caligráfico, não tiveram seqüência, porque se deu um instante antes de se acenderem as luzes dos corredores e o ar impregnar-se de suave melodia que bem podia ser de Bach, não fora uma linha melódica mais bem marcada no sentido do ritmo. Mas Adonias não teve tempo de criticar as adulterações, porque Alice chegava com a disposição habitual para a colheita dos elementos necessários para os exames clínicos.

— Bom dia, caro madrugador! Dormiu bem?

— Devo ter dormido um bocado, porque caí de sono em pleno dia. Só tinha de acordar cedo. Aliás, bom dia, minha querida protetora angelical! Deus a abençoe e a toda a sua família!

Adonias não se conteve e fez o gesto proibido, levando a mão direita a descrever no espaço o sinal da cruz.

Alice se persignou discretamente e se ajoelhou, no que foi imediatamente erguida por Adonias. Era como se ele houvesse recuperado a lucidez dos tempos de pregação na praia. Era como que a confirmação de que deveria respeitar a exoneração que sofrera da parte da Igreja.

Alice chorava em silêncio e as suas lágrimas colocavam em suas faces dois filetes de luz.

Adonias atribuiu toda aquela emoção à alma feminina, pelas doces recordações de tempos mais felizes, talvez mesmo no amplexo amoroso de algum ser que se perdeu nas brumas do passado. Mas teve medo, ele mesmo, de se deixar arrastar por algum tipo de sentimentalismo que viesse a arruinar de novo o equilíbrio precário de sua mente.

— Minha filha, disse ele, coragem! Sinta o poder de Deus e tenha fé em que os anseios de felicidade de toda a gente que trabalha por amor ao próximo, como você vem fazendo, merecem a recompensa sublime do reconhecimento de Jesus.

E mais não disse, percebendo que estremecia.

Então, sentou-se à beira da cama e deu a mão a picar e a veia a perfurar. Tomou os remédios diluídos nos sucos e estendeu-se no leito para nova análise eletrônica do coração e do cérebro por meio dos fios presos no aparelho que toda vez entrava e saía.

Quedou em silêncio, buscando caracterizar os sons e odores ambientes, num teste que estava fixando-se como permanente em seus hábitos de escoteiro sempre alerta. O exame íntimo pareceu-lhe ótimo pelo resultado surpreendente quanto ao domínio que começava a exercer sobre as sensações que vinham de longe ou que pairavam no ar ao derredor, porque estava tendo o ensejo de, numa espécie de triagem, dar atenção exclusiva a determinadas vozes longínquas, decifrando o código lingüístico que lhe chegava mesclado com outras vibrações sonoras, conseguindo entender o que se dizia. O mesmo com os odores, que selecionava a ponto de se agradar com os mais amenos, sabendo de onde partiam, separando, para não sentir, os que lhe eram desagradáveis.

Ao mesmo tempo, os pensamentos se desfechavam num entrecruzar-se de informações rapidíssimas, mas tão complexas quanto objetivas, no sentido de se perceber de posse de todas as intuições, sem definir as idéias, contrariando a observação da outra hora de que os pensamentos se formulavam como que em discurso a ser pronunciado de público.

Notou, olhando ao derredor, que haviam entrado, em silêncio, vários médicos, a ouvir as explicações técnicas a respeito do paciente pelo Doutor Anésio, concluindo que se tratava de residentes ou de alunos de algum hospital-escola. Não revelou interesse pelo teor da lição e se deixou ficar quieto até que lhe dirigissem a palavra.

De onde estava, com o rabinho dos olhos, porque evitava mexer com a cabeça, viu Adão a folhear o seu caderno de anotações. Ficou feliz, porque evitavam, assim, as formalidades e as informações circunstanciais.

Foi Anésio quem, rapidamente, examinou os resultados dos testes e declarou, enfático:

— Tenho a certeza de que o tumor foi extinto, definitivamente. Caso se queira levar o nosso Adonias ao tomógrafo, será bom para confirmar a cura. Estamos todos de parabéns, especialmente o paciente, porque soube acatar com muita inteligência e sabedoria as recomendações clínicas. Se todos os enfermos fossem capazes dessa mesma disciplina intelectual, por certo o nosso trabalho ficaria imensamente facilitado.

Antes de sair levando atrás de si o povo todo, Alice inclusive, ficando apenas Adão, fez questão de dar um caloroso abraço no padre, que se havia sentado no leito para se libertar dos fios.

— Agora, bom amigo, trate de fazer a barba, porque você vai ser despejado e deve se apresentar mais bonito ao responsável pelo setor onde irá exercer suas atribuições, sejam quais forem.

Não houve tempo para que Adonias sequer agradecesse, limitando-se a orar em silêncio e contritamente pela saúde e pela salvação daquelas generosas almas.

Adão deve ter percebido a concentração religiosa facilmente identificável, porque Adonias fechara os olhos e cruzara os braços diante do peito, aguardando até que lhe desse atenção.

Adonias entreteve-se tanto com a prece, alheando-se do momento, que, quando abriu os olhos, lhe pareceu que havia transcorrido um século, já que, principalmente, se dissiparam todas as sensações de seu aparato de relação material, como se estivesse num outro plano de realidade, numa espécie de campo energético protegido das influências externas, dentro do qual se situava apenas Adão, dentro dos limites impostos pelas paredes do cômodo.

O médico, então, ousou perturbá-lo:

— Parabéns, querido irmão! Você venceu a moléstia!

Aquela voz retumbava nos ouvidos de Adonias como provinda de dentro de um grosso tubo, desses que servem para canalizar as águas pluviais.

— Adão, perguntou de chofre, que está acontecendo comigo que pareço flutuar, sem, contudo, sentir nenhum receio, a não ser uma espécie de expectativa pelo fato de termos de conversar a respeito das questões que você leu nesse caderno?

— Há dois ou três anos atrás, eu não saberia definir o que ocorre. Agora posso dizer-lhe que o seu cérebro está concentrando algumas substâncias mais ou menos alucinatórias, um tipo de ácido lisérgico de efeito apenas benéfico, porque induzido e produzido por seu próprio organismo, uma forma de prêmio natural que o seu organismo lhe propicia como reação involuntária de sua vontade, mas cujo registro se encontra nos escaninhos mais sutis de sua estrutura primária. É um avanço considerável que apenas os sábios mais preeminentes tem conseguido. Eu mesmo só alcancei obter esse dom uma vez e, assim mesmo, por benemerência de nosso administrador geral, que gerenciou a síntese desse fluido e que me deu a experimentar para efeito de conhecer, para auxiliar a minha conduta médica. Se você saísse do prédio ou fosse até a praia, iria obter impressões totalmente novas do ambiente, como se captasse certas emanações invisíveis para o comum dos mortais.

— Sabe que já tive uma espécie de reação desse tipo quando vinha vindo para cá?! Eu senti as cores se desvanecerem, como a criar uma vida totalmente diferente.; os próprios prédios adquiriam certa transparência mais ou menos opaca, como se projetassem as suas formas na minha direção, de modo que eu via através dessas imagens, sem ultrapassar as paredes propriamente ditas. Eu me assustei um pouco. Agora você me tranqüiliza. Mas nós precisamos conversar a respeito para que eu possa definir em que isso poderá servir-me como apoio em que basear os meus objetivos de vida, principalmente porque este distanciamento das criaturas comuns irá fazer de mim um ser especial e eu não vou aceitar regalia nenhuma. Eu sei que as pessoas sofrem e que devem ser ajudadas a superar todos os problemas. Afinal de contas, eu só resolvi atender ao seu convite por haver concluído que a minha atuação como orador de praça pública não estava repercutindo nas mentes, de molde a favorecer benéficas mudanças de pensamento e de correspondentes atitudes. Perdoe-me este tipo de reflexão, mas você poderá ver que está integralmente na linha das perguntas que deixei por escrito e que você já examinou. Principalmente, eu gostaria que me levasse em conta o desejo de não efetuar estudos teóricos mas que me permita realizá-los durante a prática de minhas funções evangélicas. Se for preciso obter conceitos nessas obras, não oferecerei nenhuma resistência.

Calou-se o orador, sem dar mostra de nenhum cansaço ou de nenhuma emoção. O próprio Adonias estranhava que, qualquer que fosse a resposta do médico, iria aceitar pacificamente, uma vez que se omitia em relação a qualquer hipótese.

Por seu turno, Adão tomou os onze volumes de uma vez, dizendo:

— Vamos colocar estas obras em seu lugar, na prateleira da biblioteca. Você vai aproveitar o passeio para conhecer o prédio e para efetuar aquele exame sugerido por Anésio. Quanto aos estudos, vou dá-los por concluídos, temporariamente, pois eu acredito piamente que você mesmo, com o desenvolver das tarefas, irá perceber que não sabe tudo, como ninguém pode se vangloriar disso, tantas são as especializações hodiernas. Mas, em termos de moralidade evangélica superior, creio que você domine o assunto como verdadeiro teólogo e mestre. No entanto, dado que o inteiro teor do texto do primeiro volume está memorizado, recomendo-lhe que reflita passo a passo sobre cada pergunta e cada resposta. Quanto às sua dificuldades relativas às lembranças que não lhe ocorreram da época do evento, embora tenha consciência do conteúdo e até da forma daquela obra de Kardec, não sei explicar, ou você, meu inteligente amigo, acredita em que eu esteja no domínio integral de sua mente? Se nem mesmo você está...

Adonias fez menção de sair, carregando alguns volumes, mas, lembrando-se da recomendação do outro médico, fez uma observação:

— Acho que devo raspar a barba.

Adão tomou a iniciativa de chamar Alice, apertando o botão, de modo que, em breves instantes, a moça se dedicava a escanhoar a face ainda esquálida do sacerdote.

Assim que terminaram, saíram pelos corredores, parecendo a Adonias estar envolto em nuvens tenuíssimas de vapor colorido, com várias tonalidades absolutamente pastéis.

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