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Erotico-->7. NA RUA -- 24/10/2003 - 06:47 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ao sair à rua, Adonias sentiu uma estranha e diferente sensação. Não é que estivesse com algum mal-estar, mas lhe pareceu que a falta de exercícios ao ar livre nos últimos dias lhe causava um descompasso entre seu poderio sensório e as impressões que ia recebendo do exterior. Pensou em suas deficiências gerais quanto à audição, à visão, ao tato e ao olfato, lembrou-se de que a comida não lhe parecia tão saborosa, tanto que a quantidade diminuíra drasticamente o que gerara aquele corpo magricela, e agora havia esse conjunto de percepções deficitárias do meio ambiente.

Olhava atentamente para tudo, mas o fundo mal se delineava, as montanhas apenas se avolumavam sem contornos definidos, as pessoas passavam de um lado para outro como sombras, os vultos dos veículos assomavam ao longe, acometiam através do leito carroçável e passavam quase completamente silenciosos.

“Preciso tomar cuidado, porque estou quase cego e surdo. Talvez seja o excesso de luminosidade. Tenho de entrar numa loja, para tomar fôlego e acostumar a vista com as coisas banais, considerando que em casa não deixei de ler linha alguma de qualquer dos livros.”

Ajeitou os óculos bifocais para enxergar os dedos e as unhas e não notou diferença alguma. Estavam lá todos os indícios de uma vitalidade que palpitava nas veias. Os pelinhos se deixavam observar e até a película retirada pelas irmãs demonstrava os cuidados a que se dera.

“Cego, deveras não estou. Então, devo estar com pressão baixa ou algum distúrbio neurológico mais sério. Quem sabe mesmo a minha contusão na cabeça não esteja degenerando-se em tumor...”

Mediu em toda a extensão as conseqüências dessa possibilidade letal mas não se afetou com a idéia do encerramento das atividades vitais.

Nesse momento, encontrou uma porta aberta e entrou. Era um açougue, com nacos de carne dependurados, outras peças sobre o balcão e mais uma série de produtos dentro da transparência dos vidros da geladeira. Pensou em sentir um enregelamento característico e um odor mais forte de sangue putrefato, mas não percebeu nada disso. No entanto, a visão acentuava nitidamente as cores vermelhas das carnes e o branco leitoso das banhas.

Como estivesse bem trajado, embora não reconhecesse o pessoal que atendia, ouviu o seu nome claramente:

— Padre Adonias, quanta honra em tê-lo de novo em nosso humilde comércio. Como tem passado Vossa Senhoria?

As palavras e a forma de tratamento, inequivocamente, lhe soaram como de algum lusitano. Olhou bem para o rosto bigodudo do outro lado do balcão frigorífico, percebeu-lhe as cãs e o sorriso alvo e saudável e foi capaz de se lembrar de um nome:

— Senhor Homero. Sabe que por pouco deixo de reconhecê-lo? O senhor me perdoe, mas eu entrei porque precisei sair um pouco do sol.

Sem lhe perguntar nada, o homem desapareceu por instantes e logo voltou com seu avental maculado de vermelho e um copo de água cristalina e gaseificada.

— Beba, que logo o senhor irá sentir-se melhor.

De fato, sentado na cadeira que lhe trouxeram e havendo colocado a cabeça entre as pernas, em pouco tempo já se sentia recuperado. Contudo, algo lhe pedia, no fundo do coração, que deixasse aquele lugar.

Adonias, contrariando o velho costume de pôr tudo em panos limpos, dessa feita assentiu na intuição e despediu-se, sem estender a mão ao outro, mas lembrando-se de benzê-lo com um sinal da cruz, que foi recebido em recolhimento, de cabeça baixa. Quando Homero ergueu os olhos, já não viu mais o ex-padre.

De novo na calçada, Adonias pôde perceber que havia melhorado bastante, embora as casas mais próximas não se fixassem direito em sua coloração original. Ao contrário, apresentavam-se, não enfumaçadas ou disformes, mas era como que a sua vista pudesse dar-lhes uma transparência que punha para fora dos edifícios uma luz de cores suaves que perturbava o olhar. Recordou-se de que um glaucoma poderia estar instalando-se, porque era como lhe haviam descrito os efeitos dessa moléstia. Todavia, o fato não penalizava a caminhada, de forma que não desistiu de avançar na direção da via férrea.

No meio do caminho, lembrou-se de que havia algumas notas a mais em sua carteira e desejou um conforto que nunca mais havia gozado desde que pronunciara o voto da pobreza. Estendeu o braço e requisitou um táxi.

O veículo parou, o motorista abriu por dentro a porta traseira, dando passagem ao senhor de terno e gravata, que nada denunciava como sacerdote. Mas ouviu que lhe diziam:

— Para onde, Monsenhor?

— Eu o conheço, meu filho?

— Claro, Padre Adonias, o senhor me estimulou a sair de uma vida de crimes.

— Quando e onde, por favor?

— É verdade. O senhor não tem como saber. Eu freqüentava o seu confessionário e ouvia os seus sermões. Isso já faz bastante tempo. Arrumei uma condição favorável. Deixei de beber e de me drogar. A família me recebeu de volta e me deu dinheiro para me vestir convenientemente. Além disso, eu me empreguei numa empresa de táxis e hoje possuo a minha própria viatura. Nunca tive oportunidade de lhe agradecer, mas fiquei sabendo do seu acidente e de nunca mais aparecer na igreja. Soube que o excomungaram. É pena, porque o senhor, para mim, foi um santo. No confessionário, falei do senhor para o pároco que o substituiu, mas ele me pediu que o esquecesse, porque o senhor tinha sido condenado. Mas faço questão de levá-lo para onde quiser, como oferta da casa.

Adonias teve o coração disparado e todo o seu aparato sensório lhe pareceu volver a funcionar como quando em plena saúde. Estava com o endereço escrito num papel, que passou ao motorista, o qual fez questão de pegar-lhe a mão, levando-as aos lábios.

— Deus o abençoe, meu filho! Vou rezar por você, embora as minhas preces não tenham o mesmo valor de antigamente. Agora vamos embora, que eu quero chegar cedo nesse endereço.

— Posso pisar?

— Não, querido...

— Valério.

— Não, Valério, vá bem devagar, porque eu tenho de colocar umas idéias no lugar.

Era o recado para o outro calar-se. Inteligente, o motorista passou um zíper nos lábios e só voltou a dizer alguma coisa na hora de se recusar a receber o dinheiro que Adonias lhe estendia.

— Muito obrigado, meu filho. Vá com Deus!

Esperou que o carro desaparecesse no trânsito do centro velho da cidade, para só então examinar detidamente o aspecto do prédio de três andares que tinha diante de si.

Lá estava, em letras coloridas, o registro completo do nome da entidade: “Igreja Cristã da Misericórdia Divina”.

Ao invés de adentrar pela porta aberta, muito a medo, atravessou a rua de maneira segura pela faixa de pedestres e foi sentar-se num banco de balcão do bar bem em frente, de onde pudesse avaliar o movimento de entrada e saída do edifício. Puseram-lhe um copo e uma garrafa de refrigerante, que ele pagou sem tocar na bebida. E lá ficou durante um tempo que não se interessou em medir, absorto pela grande movimentação de pessoas que transitavam, muitas entrando no recinto do templo e outras de lá se retirando, ninguém que pudesse notar em trajes miseráveis ou, ao menos, surrados. O que o intrigava, sobremodo, era o fato de estar tendo a capacidade de ver e de ouvir com extremos de precisão, tanto que notava até as cores das roupas e as conversas entrecortadas dos passageiros dos ônibus que cruzavam pela sua frente.

“Vejo que preciso urgentemente fazer uma consulta médica.”

Tal foi a derradeira reflexão que fez antes de atravessar de volta a rua e entrar pelo portal de vidro da casa de atendimento religioso.

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