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Erotico-->3. COM A FAMÍLIA -- 20/10/2003 - 08:19 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Adonias reparou que deveras estava precisando da ajuda da mãe, que a batina estava engordurada, demonstrando que se encostara em lugares pouco asseados para repousar.

Olhou as horas no alto da torre e constatou que poderia tomar o trem para o subúrbio, pois não era hora de lotar. Na verdade, não gostava de viajar na hora do regresso do trabalho, porque as pessoas exalavam um fétido cheiro de suor, o que não lhe agradava, em absoluto. Contudo, quando não podia fazer diferente e entrava em carros apertadíssimos, conseguia bloquear a sensação nauseabunda, apenas pressionando as fossas nasais, disfarçadamente, para não ofender as pessoas.

Por outro lado, ele mesmo não se considerava limpo a ponto de espalhar um aroma muito bom ao derredor, tanto que, muitas vezes, percebia que muita gente, podendo, se afastava dele, o que também o levava a preferir os horários menos tumultuados.

Entrou no carro com uma leva de pessoas, mas todas se acomodaram nos bancos. Ao seu lado, não se sentou ninguém e ele ficou a relembrar um acidente que sofrera pouco antes de abandonar a Igreja, forte batida na cabeça, razão mais do que suficiente para ter sofrido a lesão nos nervos olfativos. De resto, passou a ouvir e a ver mal e a quase não sentir a quentura dos líquidos ferventes, fugindo dos fogões após algumas queimaduras sofridas sem que tivesse percebido.

“O Doutor Queirós foi muito claro quando me explicou que o meu estado de coma por mais de vinte e quatro horas estava a indicar a possibilidade das rupturas internas dos nervos do sistema central e que haveria seqüelas, devendo agradecer aos céus por não haver ficado paraplégico, que duas das vértebras haviam sido afetadas.”

Atinou que pensava como se conversasse consigo mesmo e suspeitou de que algumas palavras haviam escapado em voz alta. Mas os vizinhos não olhavam para ele com maior curiosidade do que habitualmente, tão estranha era aquela maneira antiga de se vestir o sacerdote.

“O tal do Adão é que estava enfatiotado com gravata e tudo. Acho que continuo a ter razão em pensar que as pessoas buscam agradar, para conseguirem o máximo de proveito da boa vontade alheia. Se os padres se enfeitam com o mais variado sistema de cores e brilhos, mantendo os paramentos vistosos para impressionarem e passarem a idéia de autoridade e poder, também descobriram que, para se aproximarem das pessoas mais simples, têm de retirar a batina, vestir-se com ternos, ficar em mangas de camisa, trajar calças de jeans, como os caubóis, ou até deixar os cabelos crescer ou raspar completamente a cabeça, conforme a tendência da moda. Eu, por mim, mantenho a tradição até sem que nada me obrigue a isso...”

Iria por aí não se despertasse para o convite do outro:

“Será que terei coragem de realizar uma tentativa de aproximação de outra filosofia?...”

O mais foi puro devaneio, sonho ou ilusão, em que se via em palco iluminado, perante assembléia vestida modestamente mas com asseio, pessoas sem vaidade mas cônscias de que precisavam estar bonitas para se apresentarem ao Senhor, dentro do templo, pessoas que cantavam hinos, que seguiam os dizeres dos pastores, respondendo e louvando a Deus, deixando suas espórtulas nas bacias que ostentavam sempre algumas notas mais graúdas. E ele, que falava que era preciso poupar para dias de forte penúria em que grassaria a mais terrível miséria, porque o povo fugia da lavoura, que havia gente armada a defender a terra dos patrões, que o movimento dos “sem-terra” havia acabado pela reforma agrária levada a cabo pelo penúltimo governo, mas que os sinos da igreja haviam mudado totalmente a sua batida...

Acordou com a sacudidela mais forte do trem parando na última estação. Era onde descia, por isso não se preocupara em adormecer.

Não deu importância ao sonho, que lhe parecia um produto de suas preocupações, e caminhou resoluto para a casa da mãe, onde também viviam seu pai e duas irmãs solteiras.

Dona Genoveva sempre recepcionava o filho em festa. Recebia-o a qualquer hora do dia ou da noite, que ele era inconstante, e providenciava a melhor refeição, tendo o cuidado de manter a despensa e a geladeira bem providas.

Também as irmãs eram muito amorosas, muito embora com elas ele não trocasse palavra alguma. Marta e Maria eram mais novas, mas haviam passado um pouco da juventude sonhadora, mantendo, contudo, fortes esperanças de se encontrarem com seus príncipes encantados. Quando Adonias chegava, corriam a preparar-lhe o banho e já aprestavam as tesouras e navalhas, porque sempre voltava com a barba e o cabelo desgrenhados e compridos.

O pai, Fernando, era um senhor de certa idade, mais velho de aparência do que de idade, curvado por uma dor nas costas, produto, dizia ele muito amargurado, do fato de o filho tê-lo decepcionado tanto ao se afastar da ordem. Sempre ficava a repetir que dera duro na vida para tornar Adonias um padre, único filho varão, que ele destinara à Igreja e a Deus, e que se desviara dos altos objetivos do sacerdócio para viver ao deus-dará das ruas e praças, mais para maltrapilho e pedinte do que para servo do Senhor. Quando Adonias voltava para casa, o pai sempre dava um jeito de sumir, arrastando-se para a casa de uns amigos ou para o asilo de velhos e de cegos do bairro. Na igreja não ia refugiar-se das vistas do filho, desde que o pároco lhe havia especulado a respeito. Era mais fácil entrar num recinto de outra fé religiosa, quedando num banco do fundo, sem definida atenção, amorfo e silencioso.

Naquela tarde, Dona Genoveva estava especialmente radiante, porque tinha novidades para contar. E a novidade era que a filha casada estava grávida pela terceira vez e que logo lhe daria mais um neto, prometendo-lhe, o que contou muito a medo ao filho, que, se o rebento fosse macho, lhe daria o nome de Adonias e se empenharia para que seguisse a vocação religiosa do tio.

Adonias, recebeu a notícia no corredor, antes de entrar no banheiro, onde tomou um demorado banho de chuveiro, fazendo questão de ensaboar os cabelos várias vezes, desconfiado de que era portador de piolhos.

Quarenta e cinco minutos depois, saiu embrulhado no seu roupão, sempre dependurado atrás da porta, encaminhando-se para o seu quartinho no quintal, edícula separada do corpo do edifício, onde podia ficar isolado, entrando e saindo à vontade pelo corredor externo, sem acordar o pessoal.

No pequeno cômodo, uma cama, um armário de duas portas, uma pequena mesa debaixo de uma estante dependurada na parede, cheia de livros. No gaveteiro do armário, as peças brancas, meias e lenços. Poucas, mas limpas e remendadas. Numa das gavetas, camisetas brancas. Não havia camisas. No forro do armário, dependuradas, três batinas brancas e uma negra, bem passadas e um pouco armadas de goma, que ele amarfanhava quando vestia ao cair na estrada. Em casa, punha uma das três indefectíveis calças pretas, lustrosas já em determinados pontos, que não se substituíam porque qualquer peça nova ele devolvia a Dona Genoveva, indicando-lhe que guardasse para o Seu Fernando.

Numa das portas do armário, na parte interna, um espelho grande. No fundo de uma prateleira, águas de cheiro e loções. Não permitia a existência de mais nada, devolvendo qualquer novidade posta ali fosse pela mãe, fosse pelas irmãs. Havia um pente grande, cuja parte mais grossa ostentava umas falhas produzidas por seus cabelos embaraçados.

Mas o seu retrato de corpo nu mostrava-lhe que seu esqueleto era bem dotado de ossos, enquanto o rosto se escaveirava, pele apenas sobre uma musculatura translúcida, tanto que o sistema circulatório podia ser examinado sem esforço.

Ficou a observar a quixotesca figura, fixando longamente a vista nas costelas proeminentes, observando o arfar da respiração, admirando-se da criação divina, que o mantinha vivo e ativo com tão pouco.

Enquanto ia pondo a roupa caseira, ia recitando um rosário de preces variadas, sem repetição, pedindo por todo o mundo, elevando alguns pensamentos extraídos dos cânticos em homenagem ao Criador. Foi quando observou mais atentamente a roupa de cama e percebeu que Dona Genoveva havia renovado a fronha e os lençóis. Seu primeiro impulso, como sempre, foi o de arrancar as peças novas, mas, pela primeira vez, susteve o gesto inopinado e se deixou perder em pensamentos a respeito da mãe:

“Tenho tanto orado ao Senhor agradecendo-lhe a existência que ele me proporcionou.; tenho mesmo pedido pela saúde e pela felicidade de minha mãe, mas nunca fiz o mesmo a ela em relação à vida que me deu e aos cuidados com que me traz protegido da maldade humana, enquanto estou debaixo deste teto. Sei que ela se esforça por me ver contente, mas minha sabedoria é soberana e desrespeitosa, sempre acreditando que as mães têm obrigações em relação aos filhos que colocam no mundo, precisando trabalhar pela felicidade e bem-estar deles, como se o amor se resumisse em atos exteriores de agrado e de...”

Paralisou a frase para sondar uma intuição que vinha rondando seu espírito desde algum tempo, quando passou diante de um hospital e maternidade. Lembrava-se de haver ficado por uns tempos recluso após o sério acidente que sofreu, quando despertou para o fato de que ali também vinham ao mundo inúmeras criaturinhas de Deus.

Súbito, viu-se na pele de Nero a retalhar o ventre de Agripina, a mãe, para descobrir, em sua loucura, como é que um organismo tão igual a tantos outros, pudera recebê-lo, um deus, em suas entranhas. Se pudesse, Adonias, iria permanecer durante nove meses extático, a recapitular momento a momento, todas as transformações que passou durante todo o período de gestação. No seu embaralhado pensamento, suspeitava de que conseguiria receber muitos impactos externos, vida de pouca consciência, rememoração que poderia explicar sua vocação religiosa, pelas palavras que os pais deveriam ter trocado a respeito de sua destinação ao sacerdócio.

“Eis que a notícia de mais um sobrinho está realizando um excelente trabalho de referência mental!”

De novo, porém, empacou em suas pesquisas mnemônicas, tendo a nítida impressão de que fora colocado homem feito dentro do ventre materno. Sacudiu a cabeça, desejoso de repudiar o fato de uma criação anterior, porque lhe parecia que sua memória iria fundir-se com o imenso poder de sua fantasia, nos últimos tempos incentivada pela modorra de tantas horas inativas. Quando estava no seminário e, depois, em sua vida conventual, as obrigações eram tantas, os trabalhos tão cerrados, que se mantinha mentalmente ocupado o tempo todo, mal dando as horas de sonolência para uma restauração física e intelectual completa.

A cama estava arrumada de maneira muito simples. Os lençóis descobriu que eram outros somente pelo aspecto da novidade, pois não reconheceu neles os antigos. A fronha era lisa e de tecido sedoso, esta, sim, caracteristicamente uma peça que nunca havia visto. Mas sua memória era boa também para este tipo de recordação de modo que foi capaz de avaliar que a última lavagem deveria ter dado aspecto de pano de chão à antiga. Unindo os pensamentos todos, agradeceu mentalmente à mãe, esforçando-se por voltar a fazê-lo pessoalmente.

Quando adentrou a sala, cedo ainda para o jantar, estavam lá Maria e Marta com os petrechos para o tratamento dos cabelos e da barba.

Elas gostavam de lidar com a aparência do irmão, cada vez mais parecido com a imagem de Jesus, pela iconografia católica mais afeita a demonstrar-lhe seu coração de sofredor e suas feridas nas mãos. Aliás, Dona Genoveva mantinha uma gravura do Sagrado Coração de Jesus bem no meio da parede de fundo da sala.

Naquela tarde, Adonias fez questão de afagar os cabelos das irmãs, como a demonstrar-lhes um afeto que sua ausência jamais confirmara antes. Assim sendo, pigarreou e ousou dizer algumas palavras, com certa dificuldade para controlar o volume da voz, sempre tonitruante para abafar os ruídos dos automóveis e demais veículos que sempre cismavam de passar por onde o pregador se punha a realizar os sermões:

— Mamãe, muito obrigado por cuidar de mim e de meu conforto. Saiba que lhe sou imensamente reconhecido por tudo quanto fez em meu favor desde sempre.

Dona Genoveva não sabia se abraçava ou não o filho, mas este abriu-lhe os braços e a recebeu contra seu peito magérrimo, sentindo-lhe a fofura das carnes e das banhas das costas. Separaram-se logo e a mãe foi atrás das panelas na cozinha, calada, disfarçando toda a sua emoção.

Então, Adonias falou com as irmãs:

— Vocês devem verificar se tenho lêndeas e piolhos, por favor.

Sentou-se na poltrona e fez a cabeça descair para trás, conforme o hábito.

Maria foi atrás de um pente fino e Marta começou a vasculhar as raízes dos cabelos, logo achando o que procurava:

— Sua cabeça não está perdida, mas existem lêndeas, sim. Vamos ter de dar um tratamento sério.

Nesse momento, voltava Maria com o pente:

— Quer dizer que o nosso irmão está piolhento...

Adonias olhou-a com olhos muito agudos, buscando entender o verbo inusitado. Logo esboçou um sorriso, pensando em que ser ele não era, mas estava piolhento...

Aí disse a elas:

— Hoje vocês vão fazer algo novo: vão cortar todos os fios, desde o couro cabeludo. Quero ficar careca. Assim, deixo de estar à mercê desses parasitos.

Seria um desafio acima de nossas forças de autores espirituais a longa discussão que se seguiu, sem proveito para o desenvolvimento da ação, porque, apesar de estarem em maioria, os votos das irmãs não contaram naquela ditadura da opinião do mais forte. O derradeiro argumento de Adonias foi peremptório:

— Peço dinheiro para Dona Genoveva e vou ao barbeiro!

Meia hora depois, uma cabeça completamente alva recebia o mesmo tratamento do rosto escanhoado, que não era um bálsamo caríssimo a causar um rebuliço financeiro na mente de nenhum apóstolo-tesoureiro, mas que ardeu bastante, porque algumas microscópicas feridas se abriram pelos cortes da gilete e pelas incursões dos insetos.

Enquanto os cachos iam caindo no chão, Adonias ia refletindo na reação de Adão ao vê-lo completamente outro, adentrando a sua Igreja Cristã da Misericórdia Divina:

“Se ele estiver pensando em me arrastar para a pregação engajada a um sistema de arrecadação de dinheiro, porque a minha presença iria lembrar ao povo a suavidade de Jesus, quero saber se um sujeito totalmente à moda dos pastores, irá convencê-lo a me manter junto a si para o chamamento evangélico.”

A bem da verdade, teve muitos outros pensamentos relativos à forma externa e ao íntimo, correlacionando as intuições a um prisma que acabou declarando preconceituoso, porque aplicava a um desconhecido antigas reflexões a respeito da ganância dos responsáveis pelas igrejas e pelos cultos. Mas o cruzar das idéias nos dificultaria uma demonstração mais longa, bastando-nos o fato da explicação.

Dona Genoveva voltava para avisar que a comida estava quase pronta e perguntar a respeito dos aperitivos, quando deu com aquela estranhíssima personalidade desprovida de moldura. Foi um choque, mas a reação foi boa e salutar:

— Esse corte à Ronaldinho, pelo menos, é muito mais fresco e lhe dá ares de limpeza e de cuidados consigo mesmo.

Mas Adonias, que não gostava de brincadeiras, resolveu dar um cunho mórbido ao humor que se lembrou de atacar:

— Contanto que a polícia não pense que está diante de um fugitivo da cadeia e me execute, tudo bem...

Mais tarde, diante do espelho, avaliou a devastação que promovera em sua figura ínclita de santo da mais elevada estirpe e se pôs a rir, aparvalhado, como a descobrir um novo indivíduo debaixo da luz trêmula de seu quartinho.

Lembrou-se de que Marta lastimara a perda e que Maria a confortara, prometendo que a cabeleira iria crescer normalmente. Em seu modo de ver, as duas esforçavam-se, diante dele, a representar um quadro de valor evangélico. Mas Jesus iria permanecer nas sombras de sua inteligência mobilizada pela curiosidade do reencontro com Adão.

Antes de pegar no sono, ainda teve tempo para uma reflexão filosófica que considerou ponderabilíssima:

“Acho que estou ficando cansado de viver sob minha conta e risco. Quanto é melhor estar entre pessoas que nos amam, para quem salvar a humanidade significa apenas deixar os seus contentes!...”

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