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Erotico-->37. DE CECA EM MECA -- 13/10/2003 - 08:40 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Plínio recebeu, por telefone, a notícia de tudo quanto se passou com os filhos. Julgou-se em débito para com o Doutor João, ficando altamente estimulado a ir visitá-lo, para agradecer o irrestrito perdão ao agressor.

“Esse homem deve ser uma pessoa íntegra. Disseram que é espírita. Sendo assim, temos pontos de contato muito íntimos, em nome de Kardec. Será que possui mediunidade?”

A partir dessa hipótese, começou a engendrar um plano que incluía os amigos do etéreo, desejoso de ver sua correspondência entregue diretamente, numa sessão, por meio de pessoa que desconhecesse por completo os fatos e os nomes.

“Seria o máximo da comprovação de que os espíritos existem e atuam segundo os princípios consignados nas obras.”

No entanto, a desejada visita sofreu uma contrariedade, porque imaginou que Cleto iria querer conduzi-lo ao templo, fazendo-o ouvir as pregações, talvez ditas pelo próprio aprendiz de pastor, em convite que poderia estender-se ao atendimento noturno dos miseráveis, conforme tinha ele começado a narrativa das aventuras policialescas.

“Eu vou, se insistir, porque preciso deixar de ouvir os pastores nos programas da televisão. Preciso sentir a vibração do povo reunido em preces e cânticos, na unção da palavra inspirada na Bíblia, segundo os procedimentos mentais de quem tem a fé sem análise, confiando em que Deus tenha dito realmente tudo o que foi a ele atribuído.”

Lembrou-se de que fazia muito pouco tempo que adquirira o novo aparelho, a pedido de Margarida, inferiorizada perante as amigas que acompanhavam as novelas, cansada dos livros romanceados dos autores espíritas, incapaz de estudos mais sérios e rigorosos dos textos básicos da doutrina. Foi assim que pôde Plínio avaliar o poderio de certas seitas, capazes de manter longos programas no ar, o que não encontrava no campo de divulgação do Espiritismo.

Estava, pois, interessando-se por ir ver os filhos, quando recebeu, no escritório, a visita de dois antigos colegas de firma, o Coelho e o Palhares, com notícias mais do que extravagantes.

Após os cumprimentos formais e ressabiados dos antigos funcionários, Palhares observou:

— Vejo que vocês estão se dando muito bem. Computadores de última geração. Impressoras, idem. Devem ter um movimento razoável!

Plínio se antecipou a Moacir e Silvinho:

— Temos muito de agradecer a Deus, com certeza, pois suas bênçãos de amor são diárias.

Coelho referendou:

— É visível que o trabalho de vocês está merecendo o amparo da Divina Providência. Deus os ajude!

Plínio, no entanto, estava curioso com a inusitada visita:

— A que devemos a honra?

Na qualidade de superior, Palhares informou:

— Tivemos um sério problema na empresa. Vou direto ao ponto. O protegido do patrão que assumiu o seu posto deu o maior desfalque nos cofres e desapareceu.

Plínio pensou: “Está veraneando no Nordeste.”

O outro prosseguia:

— Contratamos uma firma especializada em auditorias, a qual esclareceu todo o procedimento desonesto do sujeito, que acabou sendo localizado no Caribe. Ainda estamos lutando para reaver o dinheiro e extraditar o bandido. Isto posto, vou dizer o que nos trouxe aqui. Queremos que vocês administrem os nossos serviços de contabilidade.

Os três sócios entenderam-se com um simples olhar. Foi Plínio quem inquiriu:

— Vocês querem desfazer completamente o departamento, inclusive despedindo os empregados?

Desta vez foi Coelho quem esclareceu:

— Se for preciso, segundo o parecer dos novos responsáveis. Se julgarem mais cômodo manter o pessoal trabalhando na empresa, tudo bem. O que desejamos, na verdade, é ter a segurança de que as contas fiquem intactas, sem qualquer possibilidade de transferências de valores sem o aval da diretoria.

Plínio sentia uma enorme comichão de contar que sofrera a tentação dos desvios dos fundos. Conteve-se, entretanto, considerando perigoso que suspeitassem de que havia facilitado a indébita apropriação. Considerou, simplesmente:

— Vamos fazer o seguinte: Moacir, Silvinho e eu iremos realizar um levantamento da papelada (faturas, balancetes, “haver” e “dever” do caixa etc.) Discutiremos, entre nós, qual a solução mais viável para que a empresa se assegure de que tudo está sob controle. Depois chegaremos nós todos a um acordo.

Foi Palhares quem perguntou sobre datas, prazos e importâncias. Silvinho demonstrou, pela tabela de preços e pela agenda dos serviços, que nada seria cobrado além do normal dos escritórios do ramo. A única exigência era a formulação de contrato de prestação de serviços que deveria ser aprovado pela diretoria.

Desse modo, os sócios puderam voltar ao antigo prédio, de onde haviam sido despedidos sem glória, para a oportunidade da reconciliação.

Enquanto iam realizando as preliminares, conversaram sobre o que poderia levar uma pessoa religiosa a falcatruar. Foi quando Plínio, muito a medo, lhes confessou aquelas íntimas necessidades de desvario material, quando estava completamente deprimido pelas condições de sua inferioridade em todos os setores da vida.

Silvinho concluiu:

— Mas você superou a crise.

— Fui superado por ela, porque os acontecimentos se precipitaram, como se os meus guias, velando por mim, desencadeassem as desgraças de quase dois anos atrás. Não estou dizendo que são eles os responsáveis pela morte do meu Arizinho. Mas os acontecimentos se encadearam para o infeliz desfecho, não me permitindo sequer uma reação de desespero, porque precisei cuidar de Margarida e da casa, para restabelecer os ideais da juventude, agora sobre as bases da doutrina espírita. E a quem devo tudo isto? A vocês, naturalmente.



Foram dois meses de preocupações profissionais, sem que, no centro, ninguém recebesse nenhuma mensagem assinada pelo espírito João Evangelista.

Houve tempo, portanto, para que Plínio e Margarida mobiliassem o quarto dos filhos, porque consideravam que estariam eles seguros lá depois dos entendimentos com as autoridades.

Não obstante, Margarida insistiu para que fossem dar um abraço no Doutor João. Queria ter certeza da disposição moral do delegado.

Plínio ponderou:

— E se o Cleto nos arrastar para o templo? Não teremos de engolir as nossas convicções para não sermos sem educação?

— Para ver de novo os meus filhos e conhecer a minha futura nora, faço qualquer sacrifício quanto às “convicções” religiosas. Como é que você está se sentindo entre os crentes da empresa? Acho que, entre os nossos filhos, sempre deveremos estar muito bem.



Num sábado bem cedo, estava o casal aportando no saguão da estação rodoviária. Lá estavam Cleto e Vidinho, impando de alegria e saudade.

Depois de comovidos abraços, Cleto se manifestou favorável à viagem por ônibus:

— Foi bom que vocês não vieram de carro. Agora teremos bem menos preocupações, porque um bom motorista está à nossa disposição.

Realmente, a pequena bagagem logo foi colocada no porta-malas do carro e Plínio teve oportunidade de cumprimentar aquele mesmo chofer da viagem dos rapazes.

— Para onde, Pastor? — perguntou-lhe o motorista.

— Para a residência do delegado, Doutor João.

Plínio intrigou-se:

— Pastor? Como pastor?

Ovídio quis dar a boa nova:

— O Cleto passou pela prova com distinção e já realizou várias pregações, incitando os crentes a cumprirem a palavra de Deus.

— Vocês não me disseram nada.

Ovídio explicou:

— Vale a surpresa. Eu queria escrever para que vocês viessem assistir à primeira apresentação. Mas o Cleto, desculpe, o Pastor Anacleto me proibiu.

Cleto estava sentado no banco da frente. A mãe o agarrou e o beijou com muita emoção, enquanto recebia uns tapas nas costas aplicados afetuosamente pelo pai, que afirmava:

— Estes meus filhos vão longe, vocês vão ver.

Passado o momento de euforia, Plínio caiu na realidade:

— Vocês, tão ligados aos crentes, estão indo para um centro espírita?

Cleto corrigiu-o:

— Vamos para a casa do delegado. É diferente. Mas se nós fôssemos vê-lo no centro, pode crer, meu pai, que não seria a primeira vez. Aliás, o Vidinho freqüenta regularmente as sessões de palestras e me põe a par dos temas discutidos pelos expositores.

Plínio não conteve o assombro:

— E o que os pastores acham disso tudo?

Foi Ovídio quem respondeu:

— Eles não põem muita fé na minha conversão. Acham que estou pendendo muito mais para os espíritas do que para os protestantes. Tanto que pediram para o Cleto me controlar...

O irmão incomodou-se:

— O que eles pediram foi para que não deixasse você participar das reuniões com os espíritos, porque, enquanto a nossa igreja liberta as pessoas das possessões dos demônios, os espíritas agradam esses seres malignos, recebendo-os em seus corpos, sem perceberem os males que causam. Mas não é hora de discutirmos isso, especialmente porque todos nós sabemos que o pai faz exatamente assim. Não vamos magoar ninguém, pelo amor de Deus, que todos temos de respeitar o livre-arbítrio de cada um, conforme tenho lido exatamente nos livros espíritas de Kardec. Isto eu estou dizendo e já afirmei perante os bispos reunidos. Cada um tem o seu ponto de vista e, se a gente for tomar atitudes acintosas...

Margarida interrompeu o filho, enlaçando-o e impedindo que prosseguisse. Cleto se deixou levar pelos afagos da mãe e calou-se. Foi Plínio quem tentou desfazer o mal-estar:

— Quando as pessoas estão fazendo o bem para com os semelhantes, não podem ser acusadas de jogarem fora a vida que Deus concedeu. Naquele tempo em que vocês traficavam e se drogavam, podiam merecer a minha censura. Agora não. Agora vocês estão preocupados em progredir, em evoluir, e isto não vai provocar em mim nenhuma palavra agressiva. Jesus sabe como alcançar a todos nós. Haverá um tempo em que nos reuniremos aos pés do Senhor, porque não podemos crer que vamos passar toda a eternidade nas esferas dos sofrimentos.

Sagazmente, Ovídio observou:

— Pai, é melhor o senhor ir por outro caminho, porque tem gente que não acredita que haja lugar para todos no Reino de Deus.

Foi quanto bastou para que todos fizessem silêncio até o carro estacionar defronte da residência do delegado.

Para desfazer o ar gélido, Plínio perguntou:

— Estamos sendo esperados?

Ovídio respondeu:

— Claro! Eu não queria correr o risco de que vocês perdessem a viagem.

Nesse meio tempo, Cleto desculpou-se, dizendo-se ocupado no templo, combinou que voltaria dentro de uma hora e levou o carro embora.

Os três foram recebidos pela empregada e conduzidos a uma sala de estar:

— O Doutor já vem! Querem um refresco, um café?...

Margarida agradeceu e a moça deixou-os.

Plínio aproveitou aquele momento com o mais novo para interrogá-lo:

— Parece que você está de bem com a pessoa que agrediu. É admirável! O Cleto não está enciumado?

Margarida interferiu:

— Imagine se uma pessoa que está se tornando tão importante vai ter esse sentimento mesquinho! Aposto que ele também tem vindo cumprimentar o homem que perdoou aquele ato da mais pura...

Não soube como caracterizar a ação do filho sem ofendê-lo. Então calou-se. Mas Ovídio não se deu por achado e afirmou:

— O pai está certo. Cleto tem estado muito nervoso. Eu não quis dizer no carro, mas ele está com medo de perder as regalias, porque não consegue me convencer a não ir ao centro. Lembram-se de que eu queria voltar para casa? Pois agora estou querendo mais do que nunca. Eu sei que vou ter dificuldades com a transferência de escola, mas, como está quase no fim do ano, assim que me livrar, vou voltar correndo, mesmo que o meu quarto não esteja preparado.

Não deu tempo para que a mãe falasse sobre a arrumação do dormitório, pois o Doutor João entrou, distribuindo sorrisos:

— Ovídio, esta é aquela senhora que mereceu de Jesus receber a saúde de volta? Como está, Dona Margarida?

Sem que pudesse obstar, Medeiros viu sua mão arrebatada pela senhora e levada a beijar, com palavras de agradecimento:

— Muito obrigada, Doutor! Deus lhe pague! Deus lhe pague! Os meus filhos lhe devem a vida!

— Ora, ora! Por favor! A senhora está me deixando encabulado.

Plínio tomou a esposa pelos ombros, para garantir que não dobrasse os joelhos emocionada. Lágrimas espontâneas de profundo reconhecimento rolavam pelas faces da mulher, contaminando de puras vibrações os outros três.

Mas João se recompôs, acostumado com cenas desse gênero no exercício da profissão. Foi logo buscando desviar-se do centro das atenções, cumprimentando Plínio:

— Sabe que eu queria muito conhecer o senhor, Seu Plínio? Ovidinho me mostrou a mensagem do meu xará, o Evangelista, que o senhor psicografou. Maravilhosa mensagem! Espero que venha recebendo outras de mesma categoria. Sei que é preciso de muita coragem para escrever o nome de personagem tão ilustre e importante...

— Perdão, Doutor — interrompeu Plínio —, mas nós viemos para demonstrar a nossa gratidão e a nossa felicidade por ter o senhor perdoado o gesto do nosso menino.

A partir daí, a conversa girou em torno dos problemas da juventude viciada, chegando até os procedimentos possíveis para que a sociedade civil suplante o mal. Falaram das atividades assistenciais dos centros espíritas e da atuação governamental. Logo o advogado percebeu que o contabilista não ia muito fundo no exame social e psíquico do problema e derivou a conversa para a mediunidade, na esperança de conhecer o processo psíquico que gerou a prestação de serviço do outro às entidades do plano espiritual.

Quanto a Margarida, embebia-se na admiração da segurança verbal e emocional do anfitrião. Por seu turno, Ovídio ia firmando o desejo de formar-se advogado.

— Se vocês quiserem nos ajudar, teremos hoje, aqui em casa, às três da tarde, uma sessão particular, com alguns amigos. Toda semana, recebemos a visita de algumas entidades espirituais que trazem conselhos oportunos e esclarecimentos das dúvidas que levantamos nas reuniões de estudos.

Plínio interessou-se:

— Eu gostaria muito, porque terei oportunidade de testar a minha faculdade em outra situação.

Margarida, contudo, opôs-se terminantemente:

— O Doutor me desculpe, mas prefiro passar algumas horas mais com meus filhos. Neste último ano, se ficamos quatro dias juntos, foi muito.

O delegado concordou:

— Foi apenas uma idéia que me ocorreu. Eu estava sendo egoísta, querendo que o espírito de João Evangelista se manifestasse. Desculpem-me.

Plínio, porém, não queria perder a oportunidade:

— Se eu encontrar quem me traga, estarei aqui na hora. Penso que, às cinco, cinco e meia, estarei livre?...

— Com certeza. Mas se chegar antes das duas e meia, nós poderemos conversar a respeito dos trabalhos.

Um chamado de buzina indicou que Cleto estava aguardando os familiares.

Desse modo, às dez e meia, estavam reunidos na sede do templo, sendo apresentados ao Pastor Honorato e ao Bispo Moisés.

Margarida apertou as mãos dos dois, sem oscular nenhuma, mas agradeceu sobremodo comovida:

— Se não tivessem sido os senhores, os meus filhos estariam perdidos. Deus lhes pague!

Plínio afagava os cabelos da esposa, temeroso de que aquelas emoções fossem demasiado fortes para a sua frágil constituição psíquica. Ela, contudo, pelo contato com as vibrações do marido, manteve-se equilibrada e dona de seus sentimentos.

Moisés conduziu a conversa para o desempenho do novel pastor, elogiando muito a desenvoltura com que expunha os temas mais complicados da Bíblia:

— O seu filho é uma jóia preciosa. Nem precisa de muito burilar para luzir entre os melhores pregadores que temos. Fala com muita convicção e podemos dizer que nestes quinze dias de pastoreio conseguiu atrair muitas ovelhas para o aprisco da igreja.

Vamos poupar os leitores dos reiterados encômios. Ao final, Moisés prognosticou:

— Se as bênçãos de Deus, em nome de Jesus, continuarem jorrando sobre o seu rebento, posso dizer que não irá demorar muito para se tornar num dos principais pastores de visitação, com nomeada certa para a lotação das sedes regionais. É preciso, para isso, que continue estudando e se preparando, como vem fazendo até aqui, para não deixar passar a juventude, que é uma de suas armas mais eficazes. Vocês têm de concordar que se trata de um jovem muito bem apessoado, atraente, bonito, absolutamente elegante, valorizando os seus sermões com a moldura magnética da mais pura empatia espiritual.

Elogiado com tanta pompa, Cleto não sabia se olhava para o bispo, se buscava a confirmação na fisionomia do preceptor Honorato ou se consignava o orgulho que os pais deveriam estar sentindo. Se tivesse observado a reação de Ovídio, talvez pudesse deduzir que havia alguém que levantava sérias dúvidas quanto ao futuro do pastorzinho.

Foi Margarida quem provocou o parecer de Moisés quanto ao mais novo:

— E o meu Vidinho, está dando muito trabalho?

Moisés contemporizou:

— Ovídio tem altos e baixos. Ele é muito independente e não aceita os conselhos dos mais avisados. Para realizar os serviços que pedimos, está sempre pronto. Mas faz questão de bater asas e de voar bem alto nos momentos de folga. Ele pensa que a gente não sabe, mas tem ido muito ao centro espírita, com a desculpa de fazer amizade com o delegado que o perdoou. Deveria saber que o perdão vem de Deus e agradecer a Jesus ter inspirado um certo amor do ofendido pelo mequetrefe que o ameaçou de morte. Vamos ver aonde as coisas vão chegar. Aliás, vocês, que são pais de um jovem tão promissor dentro da verdadeira religião de Deus, devem abandonar o centro espírita, porque não está certo pensar que alguém pode receber mensagens de João Evangelista.

Plínio olhou com extrema severidade para Ovídio, mas Moisés aliviou-o de tão grave carga, referindo-se a como obteve a informação:

— Não foi Ovídio quem delatou o pai. Tenho aqui comigo uma cópia da mensagem que foi distribuída no centro espírita. Vejam bem que não mantenho espião em tão insignificante aglomerado religioso. Pelos Correios, venho recebendo regularmente os impressos de diversas origens e a sua mensagem mereceu figurar em separata num jornal de sua congregação. Não vi nada de mais naquele texto. Aliás, tudo parece muito adequado para incentivar as pessoas a continuarem consultando os espíritos. É dessa maneira que o demônio explora a boa-fé dos inocentes e os mantém sob seu rijo controle. Se vocês dois se converterem à nossa fé, à verdadeira religião de Deus, irão facilitar enormemente o desenvolvimento de seus filhos, exemplificando, de maneira inequívoca, a força da pregação do nosso Pastor Anacleto. Peço-lhes que reflitam muito sobre o que estou falando, principalmente porque, se alguém levantar suspeita sobre a inoperância familiar do pregador, poderá causar problemas até a nós, que estamos dando-lhe cobertura e incondicional apoio.

Nem Plínio nem Margarida sabiam o que responder, tão inesperada foi a solicitação do bispo. Ficaram calados, simplesmente, imersos ambos em seus pensamentos: Margarida a se recordar de Ari, com o qual desejava continuar em contato, ainda que por informações de terceiros.; Plínio a imaginar-se de volta ao emprego, entrosando-se com Coelho e com Palhares, freqüentando os cultos bíblicos em sua companhia.

O silêncio estava causando certo mal-estar, tanto que Honorato propôs:

— Vamos, caro Moisés, dar tempo ao tempo, porque as convicções não se firmam sem a intervenção de Jesus. Eu acredito que as nossas orações serão fortes para trazer o Espírito Santo à presença dos nossos irmãos e eles terão certeza de que estão sendo abençoados. Ainda vamos ter o prazer de batizá-los nas águas da fertilidade da fé.

— Deus o ouça, querido Honorato! Leve os nossos irmãos a conhecer o seu templo e depois traga-os para almoçarem comigo. Eles vão dar-me a subida honra de sua companhia. Aliás, hoje terei, em minha mesa, quinze pastores e respectivas esposas, o que vai ser muito animado.

Em vez, porém, de Cleto levar os pais a visitar o sagrado recinto em que exercia o seu ministério de amor, preferiu conduzi-los à moradia de sua paixão, Aurélia, liberando Honorato para ultimar as providências dos cultos da tarde.

A visita deveria ser muito rápida, conforme haviam planejado os namorados, porque não via Cleto muitos pontos de sintonia entre os sentimentos dos sogros. No entanto, não foi o que ocorreu, porque os mais velhos ferraram numa conversa franca a respeito dos valores da vida, uns enfatizando que os cuidados com a saúde geram condições de superior entendimento das relações com o Criador, pela felicidade corpórea (e por isso insistiam em estender sua rede de farmácias e drogarias), enquanto os outros, concordando, desejavam ainda superar as dores físicas e mentais pela proclamação de que a consciência tranqüila pode vencer todas as crises materiais (referindo-se aos sérios problemas com as drogas, os furtos e o tráfico, que redundaram na perda de um dos filhos).

Ao meio-dia, Cleto fez com que se despedissem, com grande mágoa de todos pelo inexpressivo desenvolvimento de suas teses, prometendo-se correspondência, porque os pais de Aurélia souberam testemunhar a força de vontade dos pais de Cleto, na compreensão do poder de Deus de dispor das vidas humanas, enquanto estes se entusiasmaram com o ideal religioso que visa ao progresso humano, através da doação intimorata de seu destino a Jesus.

No caminho de volta, Margarida fez questão de frisar:

— Cleto, veja se não vai perder essa garota. Ela é linda e sua formação moral e familiar é perfeita. Aposto que ela ama você de todo o coração. Não vá decepcioná-la nunca na vida.

Plínio admirou-se dos elogios mas calou-se, porque também achava que o filho só tinha a ganhar mantendo-se como membro de família proprietária de tantos bens. Mas os seus pensamentos não pendiam para o mesquinho. Antes, dispunha os raciocínios em ordem crescente de vantagens, a partir do fato de que, em seu lar, o jovem alcançara apenas destaque entre os marginais. Foi quando percebeu que as mãos estavam trêmulas, o que Ovídio notou e fez questão de referir:

— Pai, que está acontecendo? Você não está passando bem?

Correu Plínio a justificar-se:

— Tenho meditado bastante sobre os acontecimentos que envolveram vocês dois. Fico muito triste comigo mesmo, quando me recordo de que vocês se viram na necessidade de fugir de casa. Diante do acolhimento de tanta gente boa, sinto-me muito mal.

Margarida foi mais prática:

— Eu reparei que você não tomou mais do que um cafezinho e não tocou sequer numa bolachinha. Deve estar fraco, porque está apenas com o copo de leite que tomou lá em casa.

Plínio concordou com a cabeça, enquanto Ovídio lhe massageava as mãos, buscando aquecê-las. Ao chegarem ao restaurante em que almoçariam com Moisés, Plínio já estava bem.

Enquanto os pastores demonstravam enternecida simpatia pelo novato do grupo e seus progenitores, chamando-os de “meu irmão” e “minha irmã”, Ovídio desapareceu, tendo sussurrado ao ouvido do pai que ia providenciar condução para logo mais, quando voltassem à casa do delegado. A lembrança alertou Plínio para não exagerar na comida, pondo tento em não consumir carne nem em beber álcool.

Não pôde, contudo, fugir de sorver um caldo verde feito com pedaços de músculos de boi. Também teve de aceitar no prato um rotundo bife de filé mignon, do qual precisou comer um naco, por insistência de Moisés, que se situava três cadeiras apenas distante da sua e controlava o que o casal ia consumindo. Quanto às bebidas alcoólicas, estavam proibidas, uma vez que todos os pastores iriam pregar ou à tarde ou à noite. Não obstante, Moisés levantou um brinde simbólico com refrigerante, em honra ao casal que se dignara aceitar o convite do almoço, apesar de não se filiar à doutrina evangélica do filho.

Tanto bastou para que chovessem perguntas incômodas, até que os casais terminaram por deixar o trio isolado, Margarida, Plínio e Cleto, este absolutamente desolado pelo que considerou como falta de tato do bispo.

Plínio, contudo, viu-se em situação favorável para uma retirada estratégica, alegando que gostaria de visitar o templo do filho.

Às duas horas, conheceram o dormitório dos irmãos, admirando a simplicidade dos móveis, a limpeza do recinto, a pequena biblioteca com todos os livros encadernados e um belo computador, com os recursos mais modernos de reprodução de som e de imagem. Cleto fez questão de mostrar o arquivo em que guardava os sermões preparados e os em fase de elaboração.

Plínio levantou uma hipótese:

— Você tem toda a possibilidade de não se repetir jamais, mesclando uns com os outros. Já pensou nisso?

— Claro, pai! É como venho aperfeiçoando a parte que levo memorizada, porque o principal está em simples anotações das passagens bíblicas. O mais importante, contudo, reside na entonação da voz. Por isso, mantenho um arquivo de vídeos. Mas não vou mostrar nenhum por absoluta falta de tempo, pois, às três, tenho inadiável compromisso, como fiz questão de lhes informar quando vocês avisaram que viriam. Está claro que vocês vão comparecer e acompanhar o culto...

Inesperadamente, Plínio se viu livre para ir à reunião mediúnica, por uma intervenção da esposa:

— Eu vou, sim. Mas acho que o seu pai precisa ficar descansando, senão acaba sentindo-se mal de novo. Ovídio fica com ele. Qualquer coisa, é fácil de chamar por ajuda.

Margarida estava sendo sincera e veraz mas Plínio e Ovídio calaram o seu intento de sair. Sendo assim, exatamente às duas e meia, enquanto Cleto recebia os fiéis à porta do saguão principal, providenciando para que fossem bem acomodados, Plínio era recebido por João e conduzido ao escritório da residência para as prometidas explicações.

— Chamei-os reservadamente, porque desejo preveni-los quanto aos aspectos especiais da nossa reunião. Quando me mudei para cá, encontrei esta casa com um belo salão ao fundo. O interessante é que era sublocado para um grupo umbandista, o qual me pediu para manter o seu pequeno santuário intacto. Não me opus e agora eles se utilizam da antiga garagem durante a semana, entrando e saindo por uma porta independente. Aos sábados, quando não há atividade no centro, vários companheiros médiuns vêm para cá, a fim de conversarem mais livremente com os protetores, sem o compromisso da doutrinação de espíritos obsessores. É uma sessão em que as pessoas conversam com as entidades, interrogando-as sobre temas variados, sempre no sentido de esclarecimento de dúvidas surgidas nos estudos das obras de Kardec e outras. Temos tido a sorte de sermos atendidos por amigos bem gabaritados, claro que não da categoria de um João Evangelista. De qualquer modo, peço que não estranhem o ambiente fora e dentro. No jardim, vocês vão ver certas plantas místicas, como arruda, espada-de-são-jorge, mentruz etc. Lá dentro, existe um altar vedado por um cortinado meio transparente, onde poderão divisar os petrechos utilizados para homenagear os guias e santos dos cultos da Umbanda. Se quiserem, depois da reunião, poderemos visitar o lugarzinho reservado, sem qualquer risco de ofender os orixás.

Plínio desejou expor o seu desconhecimento dessa espécie de religião:

— Eu nunca estive num terreiro, por isso para mim haverá de ser novidade participar de um culto dessa espécie.

João, contudo, dissuadiu-o dessa expectativa:

— Nós faremos uma reunião mediúnica nos moldes daquelas do centro. Nesta hora, os médiuns estão concentrando-se, após as leituras habituais de alguns trechos dos livros de Kardec. A única diferença significativa é que a direção está sob a responsabilidade do plano espiritual e não de um doutrinador encarnado. Sendo assim, um dos médiuns recebe ou incorpora o espírito do principal espírito do dia, que pode ser um preto velho, um índio ou qualquer entidade com forte sotaque para a caracterização de seu nível evolutivo, como acontece com o Doutor Fritz, por exemplo, e essa personagem assume o comando, distribuindo as tarefas. No seu caso, meu caro Plínio, com certeza, vai ser encaminhado para a psicografia, para o que lhe darei papel e lápis. Eu mesmo só participo como escrevente. Não é um trabalho fácil, porque as conversas entre as pessoas e as entidades chamam a atenção para os temas e, muitas vezes, a gente perde a concentração, sem perceber que outras mensagens devem ser transcritas. Nesse caso, cabe ao orientador anotar a presença dos espíritos que desejam comunicar-se por escrito.

Ovídio estava sumamente curioso:

— Será que vai sobrar algo para eu fazer?

— Você vai prestar atenção nas conversas. Se houver alguma coisa em que possa ajudar, será avisado.

— É por causa da minha idade?

— Kardec trabalhava também com jovens de menos de quinze anos. Sendo assim, é preferível pensar que você está completamente cru, precisando desenvolver-se, o que se dará, se mantiver a concentração nas possíveis intuições que lhe passarem pela mente. Arme-se de papel e lápis e escreva, se algum tema lhe parecer estar sendo ditado do etéreo. Se estiver com medo...

— O senhor sabe que bem pouca coisa me assusta no mundo.

— No mundo, bem entendido... E no plano sobrenatural?...

Os três riram, dando João por encerrada a introdução do médium à sessão que decorreria em seguida.

Plínio tinha diversas perguntas mas, devido ao horário, teve de sofrear os impulsos inquisidores.

Quando saíram para o quintal, o amplo jardim estava muito bem cuidado, não faltando rosas, cravos e crisântemos a chamar a atenção para a beleza natural das flores. O quarto dos fundos era bastante amplo e a longa mesa logo captou o interesse de Plínio, porque estava coberta de imaculada e alva toalha. Havia duas jarras cheias de água e diversos livros. As pessoas sentadas ao derredor mantinham-se de cabeça baixa, como a orar, deixando de notar a presença dos dois estranhos. Alguns vestiam-se de branco.; a maioria, porém, trajava roupas comuns. Havia cinco homens e sete mulheres. Ao fundo, atrás do cortinado que escondia o altar, puderam observar uma vela acesa, porque bruxuleava, havendo também uma lâmpada de cor vermelha. O que era mais contundente para o modelo de centro espírita impresso na mente de Plínio era o forte odor de incenso, cuja fumaça se percebia diluída na atmosfera. Não era enjoativo mas também o médium não se agradou dele pela falta do hábito.

João indicou os lugares para o pai e o filho e sentou-se na cabeceira da mesa, longe dos dois. Após uns dois minutos de profundo silêncio, uma das pessoas se levantou, dirigiu-se até a porta, fechou-a, acendeu uma luz mais fraca, apagando as mais claras, tornando o ambiente obscurecido, porque as janelas tinham as cortinas fechadas. Mas dava para Plínio escrever, se fosse estimulado.

Aquela mesma pessoa elevou a voz e recitou a prece de abertura da sessão que se encontra entre as que Kardec registrou em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Foi o que valeu para tranqüilizá-lo dos intentos do grupo.

Logo em seguida, a personagem em destaque modificou completamente a entonação da voz, passando a falar de forma rouquenha, quase incompreensível para os ouvidos desacostumados de Plínio. Mas entendeu ele que a entidade incorporada solicitava que os médiuns expusessem mentalmente os temas de seus interesses, de forma que pudessem obter os esclarecimentos solicitados. Quando Plínio começava a percorrer com a vista as pessoas ao derredor da mesa, foi convidado pelo orientador a escrever:

— Meu amigo, você está sendo requisitado por alguém que afirma conhecê-lo. Não perca tempo.

A partir daquele instante, Plínio se esqueceu por completo do local em que se encontrava, parecendo-lhe que flutuava, como quando entre os companheiros do centro. A mensagem começou de maneira bastante característica:

“Meus filhinhos, Deus ama a todos nós e nós devemos amar a Deus sobre todas as coisas, porque Deus é amor. E também, em nome de Jesus, devemos amar uns aos outros, sem nenhuma condição, porque a felicidade reside na doação de nossa alma à existência que nos ofereceu o Criador.”

Depois de escrever rapidamente por mais de uma hora e meia, Plínio assinou como “João Evangelista”, terminando a tarefa agradecido pela deferência da visita em hora e dia totalmente fora do contexto a que se habituara.

Se tivesse prestado atenção ao que ocorria entre os demais, saberia que havia bem cinco minutos que se fazia silêncio, no aguardo de que o recém-chegado terminasse a sua participação.

João foi quem tomou a iniciativa de encerrar, solicitando a todos que informassem caso não estivessem conscientes, insistindo com cada um em particular, para sentir-lhe a reação. O único que se esfalfara e que se encontrava ainda meio confuso era o que acolhera o guia. Mas recuperava-se, dando mostras de estar recebendo etéreas vibrações para restabelecimento fluídico.

Por isso, João fez questão de orar um pai-nosso, antes de efetuar a prece de encerramento.; a mesma de Kardec.

Era chegada a hora das apresentações, estando todos voltados para quem escrevera com tanto desembaraço, tão velozmente e por tanto tempo. Era fato inédito naquela mesa.

João presidiu as apresentações e, em seguida, ofereceu-se para ler as mensagens:

— Além de mim e de Plínio, também Ovídio escreveu.

Este logo foi informando:

— Escrevi, sim, mas apenas tomei notas das idéias que julguei que poderiam ser discutidas ou pesquisadas. Nenhuma psicografia, se é esse o interesse dos médiuns.

Relutou Plínio quanto a entregar as várias folhas que preenchera com sua letra de escriturário:

— Não sei se os meus garranchos serão decifrados com facilidade. Não será preferível que leve para casa, transcreva e envie uma ou duas cópias para vocês?

— De jeito nenhum. Você não sai daqui sem nos dar conhecimento dessas preciosidades. Se não quer que eu leia, leia você.

Não havia como escapar, não obstante, Plínio ainda tentou um derradeiro argumento:

— As sessões do centro que freqüento são secretas, quando as mensagens trazem assinaturas de personalidades de renome. O espírito que assinou a minha página foi o de João Evangelista. Sendo assim, não gostaria de correr o risco de ser chamado disto ou daquilo, porque o meu trabalho foi febril e nem pude compreender direito tudo o que foi ditado.

— Isto todos nós vimos. A sua maneira de escrever foi febricitante, como você lembrou, mas nem por isso deve ter sido sem importância. De qualquer modo, leia para nós e, se julgarmos que o espírito veio para nos enganar, no que não acredito, pela paz e pela tranqüilidade em que decorreram os trabalhos, aí nós faremos rigoroso exame dos dizeres, quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo doutrinário. Antes de mais nada, quero dizer que o meu pedido foi satisfeito, porque desejei muito que o meu xará viesse manifestar-se neste humilde recinto. Vamos lá! Coragem!

Plínio não teve saída. Foi assim que, após ter lido o trecho da apresentação, comentou:

— Disseram-me que, no final da vida, o apóstolo, bem velhinho, tratava a todos como filhos muito queridos, iniciando as pregações sempre pela sua mais célebre frase, ou seja, “Deus é amor”. Estou dizendo isso para que não fiquem impressionados, quando descobrirem esse hábito que ficou registrado na história. Prossegue o texto: “Fiquei de falar a respeito de Jesus, quanto ao desempenho físico, porque afirmei alhures que não perecera na cruz. É assertiva que encontra respaldo em vários escritores modernos, porque muitos não compreendem como é que, em tão pouco tempo dependurado no lenho, alguém pudesse sofrer mortal síncope cardíaca. Ainda que um soldado lhe tenha perfurado um dos lados do peito, só o fez movido pela necessidade de comprovar a morte. Ora, Jesus havia vencido a morte, tendo feito ressuscitar não apenas uma pessoa. Jesus burlava a vigilância das multidões, saindo do meio delas, sem que ninguém notasse. Jesus curava, de perto e a distância, as pessoas atacadas de males tremendos, como a lepra, a hemorragia, a cegueira, inclusive, de nascença, e quantas enfermidades se desenvolviam junto à população. Como não haveria de superar o cansaço que lhe fora infligido pelos açoites, ainda que estivesse jejuando há vários dias? Não conseguiu carregar a trave da cruz, tendo sido ajudado pelo cireneu Simão, obrigado pelo soldado da guarda romana encarregada das execuções. Mas esse era um procedimento habitual, porque os algozes se frustravam quando o condenado perecia mercê dos castigos preliminares. Devo aqui levantar sério problema: o da natureza do corpo do Mestre, porque, desde aquela época, se desconfiava de que o seu domínio da matéria era tão extraordinário que seria capaz de materializar um símile de sua mesma estatura e forma, que Kardec chamou de agênere, para pôr em seu lugar, a fim de receber o suplício. Tal era a concepção de muitos, tanto que, ao aparecer aos discípulos, alguns dias após a crucificação, quiseram testemunhar-lhe as feridas, obrigando-o a demonstrar que estava ali presente, através do consumo de alimentos. Desejam os amigos conhecer a verdade? Nem eu mesmo estou absolutamente ciente dela. Tudo o que levanto são hipóteses plausíveis, segundo os recursos desse ser de escol, o exemplo mais digno de humanidade e perfeição que qualquer espírito pode apontar. Não se transfigurou no monte? Houve testemunhas. Não andou sobre as ondas? Não transformou água em vinho? Não fez tantos prodígios cuja compreensão natural nos fugia por completo e aos quais chamávamos de milagres? Hoje, sabemos que os espíritos evoluídos, e Jesus é o mais evoluído de todos, conhecem as leis que regem o Universo e sabem aplicá-las com desenvoltura a favor de seus propósitos de benignidade. A verdade é que desapareceu da sepultura. Estaria no seu projeto de vida tornar-se o mártir salvador do seu povo? Pela referência histórica, os judeus admitem o filho de José e de Maria, o descendente da linhagem de Davi, apenas como mais um dos profetas.; entretanto, não aceitam o Nazareno como o filho prometido por Deus para a libertação de Israel. Sendo assim, podemos considerar que os apóstolos não alcançaram sucesso em suas pregações junto aos de sua raça. Quem brilhou foi Saulo, que mereceu de Jesus a honra de um chamamento especialíssimo, porque se zangara o Cristo com as perseguições que culminaram com a morte de Estêvão. Jesus sentiu a necessidade de espraiar a sua doutrina, sabendo que o povo hebreu não lhe herdaria as concepções, fechando todas as portas da religião, principalmente porque se haviam manchado com o sangue inocente do divino cordeiro. Da mesma forma que fizera muitos cegos enxergar, ofuscou o campo de visão do inimigo originário de Tarso, na estrada de Damasco, fazendo-o, simbolicamente, recuperar a luz, quando as lições ministradas por Ananias tiveram efeito moral. Quer dizer que Jesus possuía dois corpos, utilizando-se de um ou outro, segundo as necessidades? Não é o que estou afirmando. Como todos nós, Jesus nasceu de mulher, tendo por pai um homem de carne e osso. Desenvolveu-se segundo a sua natureza animal, adquirindo, paulatinamente, completo domínio sobre a matéria, conforme a grandiosidade de seu espírito. Quando se machucava, escorria-lhe o sangue e o sistema nervoso comunicava ao cérebro as sensações de dor. Mas, diferentemente de quase todas as criaturas, desenvolveu o poder de bloquear as reações físicas desagradáveis, conseguindo reconstituir os tecidos lacerados quase instantaneamente. Podemos afirmar que o seu aparato carnal se eivasse de fluidos etéreos, segundo uma organização espiritual própria? Seguramente, não. Quando chegou sua época de deixar a carcassa material, o chamado invólucro terreno, ele o fez como qualquer mortal, e seu corpo foi devorado pelos vermes. Resta saber se foi um agênere que se fixou no madeiro infamante. Reitero que Jesus estava ali de corpo e alma, sofrendo os horrores da mais atroz injustiça. No entanto, se me interrogarem a respeito de que tenha sido esse o sacrifício extremo que se atribui ao Salvador, devo dizer que não foi. Muito mais extenuante e dramático foi o enlace de seu divino espírito ao perispírito desta esfera, exigindo dele tremendo esforço de adaptação, acrescido de muitas outras dores morais (digamos assim, por falta de melhor expressão), quando da concepção física e do ingresso no mundo de expiação e provações, para o exercício da augusta missão. Não sei se vim muito longe nestas explicações e se consegui esclarecer um ponto polêmico que tem dividido em duas facções o próprio movimento espírita. Neste aspecto, se as convicções estiverem por demais arraigadas, se foram fixadas nas mentes por acendrado amor-próprio, se estiverem fundamentadas em pontos de vista interessados na manutenção do statu quo que vem rendendo posições de destaque, em ambos os lados, se se possui o sentimento da disputa como natural nos encarnados, então, qualquer informação que se preste, no sentido de conciliar os desafetos, será tomada como simples pusilanimidade ou excesso de ingenuidade do espírito que assina, com pompa e circunstância, um nome assaz glorioso. Todavia, se houver interesse em decifrar o mistério, sob as luzes magníficas que esplendem dos escritos da codificação, ver-se-á que este mensageiro, além de cumprir antigo compromisso com a verdade, que ajudei a desvirtuar, conforme descrevi em comunicação anterior, também aqui se apresenta com o intento de pacificar os ânimos e orientar os filiados do Espiritismo para as metas cristãs do amor universal, através do lema da caridade sem limites, dentro dos padrões excelsos da moralidade evangélica. Não me preocupa o fato de que as mensagens venham a ser menosprezadas ou anuladas pela sapiência técnica dos sábios. Penso que sempre haverá quem reflita sobre as verdadeiras diretrizes doutrinárias, endereçando os pensamentos e sentimentos para a compenetração de que a evolução é prisma inalterável de todas as concepções espíritas. Será, pois, através desse projeto de vida propenso à descoberta da verdade que os homens irão realizar o ideal fraterno da unidade universal, para facilitar o reingresso nas esferas superiores de todos os seres em condições de colher os lucros de vidas de benemerência e de trabalho solidário, em nome do Cristo, por amor ao Pai. Meus filhinhos, a paz do Senhor esteja com todos, não importando se a sua opção seja por esta ou aquela seita, por este ou aquele culto, por esta ou aquela religião. Cumpram os preceitos do bem e da virtude. O mais vocês auferirão em acréscimos de bênçãos. Graças a Deus!”

Assim que terminou a leitura, Plínio teve a atenção despertada pelo filho para o adiantado da hora. Contudo, não pôde furtar-se a ouvir muitos elogios e algumas ponderações admirativas quanto ao teor do texto.

João estava embaraçado, querendo e não querendo mostrar o texto que redigiu. Finalmente, não havendo quem lhe solicitasse a leitura, advertiu para o fato de que Plínio poderia querer levar embora a mensagem do “evangelista e lhe pediu para realizar uma cópia ali em casa mesmo, porque tinha como fazê-lo.

Enquanto João levava as folhas para dentro, Plínio e Ovídio despediram-se efusivamente dos colegas espíritas, todos muitíssimo satisfeitos com o fato de terem sido honrados por texto e personalidade tão insignes.

Não foi difícil convencer João a conduzir os dois até o templo de Honorato, onde encontraram Cleto e Margarida aflitos, porque ninguém soube informar aonde é que a dupla fujona tinha ido. Foi a esposa quem reclamou:

— Eu deixei um para descansar e outro tomando conta e não encontro nenhum dos dois. Que é que eu podia pensar? Que tinham ido a algum hospital, no mínimo. Mas bem que nós vimos quem foi que trouxe vocês dois. Só podem ter ido àquela sessão espírita...

Só aí percebeu que tinha batido com a língua nos dentes, porque mantivera em segredo tal possibilidade, tendo deixado Cleto ainda mais preocupado do que estaria, se soubesse do convite. Mas o filho esteve à altura da tranqüilidade que se pode esperar de um verdadeiro pastor de almas e não fez qualquer recriminação nem ao pai nem ao irmão. Queria, sim, que a mãe descrevesse o sucesso da reunião religiosa que ele presidira.

— Mãe, diga para eles como é que você se divertiu, conforme me afirmou.

Foi o bastante para Margarida esquecer as manhas e observar com profunda alegria:

— Foi maravilhoso. Após o Pastor Honorato ter dito algumas palavras e apresentado Cleto, este fez um belíssimo sermão, convidando o povo a agir segundo o modelo do Cristo, fazendo o bem a todos e dando à Igreja condições de prosseguir auxiliando os irmãos carentes que pululam pela cidade. Falou das excursões noturnas e mostrou como é que a polícia vem maltratando os pobres, considerando todos verdadeiros marginais. Falou do desemprego e da falta de comiseração do poder público, considerando que, sem que os particulares abram as bolsas, muitas crianças irão morrer à míngua.

Nessa altura, Cleto brincou:

— Mãe, pedi para que descrevesse as suas emoções e não que reproduzisse palavra por palavra tudo o que eu disse. Até parece que você tem um gravador embutido no cérebro! Parabéns! Eu não conhecia esse seu pendor.

Margarida encareceu esse aspecto:

— Na verdade, foi como se bebesse da fonte fresquinha que jorrava de seu sermão. Gostei muito de tudo mas o que mais me deixou sensibilizada foram os cantos. Eu acho que você desafinou um pouco. Não seria bom que tivesse aulas de canto?

— E quem lhe falou que Cleto não está com professor particular?!... — foi logo informando Ovídio. — Enquanto eu estudo as matérias da oitava série, ele se dedica às artes: canto, música, oratória...

Cleto incomodou-se com o destaque que o irmão estava dando-lhe:

— O ofício de pastor exige que a pessoa não seja amadora, mas que se profissionalize, impostando a voz, sabendo captar a recepção emocional do público. Para insistir mais num aspecto do que noutro, tem de perceber a hora propícia para passar as informações bíblicas importantes e daí para a frente. E tem de conduzir o rebanho através do canto, porque os hinos litúrgicos estão cedendo a vez à música de ritmos populares, que é disso que o povo gosta e é o que traz mais gente para o culto. Bem que eu reparei na mãe sacudindo os braços ao comando do regente...

Margarida, porém, desejava demonstrar que havia observado outros fatos:

— É claro que tudo isso colabora para que o efeito no espírito dos crentes seja o mais eficiente possível. Mas a gente não pode esquecer de que o rapaz está destroçando os corações das mulheres. Eu mesma senti que as mais velhas, quando souberam que a mãe do orador estava presente, me invejaram, medindo-me de alto a baixo, como a perguntar como é que de dentro de mim tinha saído alguém com tantas qualidades.

Para Plínio, estava ótimo que a esposa se deixara envolver com tamanho entusiasmo ao evento religioso. Parecia vê-la rejuvenescer e acreditar de novo na vida. Até um dia atrás, ela não dizia três palavras sem que uma recordasse o filho morto. Agora, estava rindo plenamente satisfeita, como se Cleto lhe tivesse aberto as portas do paraíso.

“Nunca” — refletia o marido — “nunca, dentro do centro espírita, nem quando recebeu as informações de que Arizinho estava bem, ela reagiu com o coração tão aliviado. Ou muito me engano ou vou ter de receber o impacto de um pedido cabal para engrossar, com a nossa presença, as fileiras da crença protestante.”

Foi Ovídio quem provocou o desenlace fatal:

— Só falta vocês se mudarem para cá e freqüentarem a sede em que o meu querido mano está aprendendo a pastorear as ovelhas, os cordeiros, algumas cabras...

Mas Cleto não lhe permitiu ir mais longe:

— Eu ficaria deslumbrado com tal possibilidade. Mas ainda não tenho como arcar com as despesas decorrentes dessa profunda alteração de vida. Vamos esperar um pouco mais. Quem sabe, dentro de um ano ou dois, após meu matrimônio com Aurélia...

Plínio não perdeu a oportunidade de explorar o assunto:

— Você tem certeza dos sentimentos dela e dos seus? Vocês são muito jovens e o seu passado deve ter atemorizado bastante a simpática família da linda jovenzinha, apesar de toda a solicitude para conosco, hoje cedo. Não se esqueça de que existe muito dinheiro envolvido, ainda porque ela é filha única e os pais são riquíssimos. Se não cismarem de passar tudo para a Igreja, a filha vai levar para o casamento um dote dos mais “sadios”.

Não era o objetivo do pai, mas Cleto demonstrou que era sensível às considerações pouco elogiosas ao seu caráter:

— “Seu” Plínio, meu caríssimo e preclaríssimo progenitor, vejo que desconfia de minhas intenções. Não adianta fazer esse gesto fingido de desagrado. Sei que deseja desmistificar o amor que faço transparecer pela Relinha. E você tem razão, ou melhor, teria razão, se tivesse “levantado a lebre” há um ano atrás, quando a conheci. Mas o convívio e a ternura do coraçãozinho da menina me fizeram compreender que preciso de uma alma gêmea para poder desenvolver-me como pessoa humana. Quando era traficante, não pensava nos outros. Vocês podem imaginar o que não fiz com certas moças... Mas essas águas já passaram por debaixo da ponte. Hoje, o que tenho feito mais, no campo de meus pensamentos íntimos, é tentar livrar-me da culpa de haver proporcionado ao maninho Ari aquela dose letal. Vejam bem que estou abrindo completamente o meu coração, porque me sinto abençoado pelo perdão do Cristo, tanto que sou bem capaz de conceber que tenho imensas responsabilidades em relação ao Vidinho, assumindo, como viram, as funções de irmão mais velho e de preceptor, defendendo-o quanto posso dele mesmo e dos pastores, que não estão satisfeitos com a sua atuação, que está deixando a desejar.

Ovídio, arguto e cordato, observou:

— Meu “maníssimo” Cleto, você estava indo muito bem, desnudando a sua alma e demonstrando as suas falhas. Não queira desviar a atenção dos nossos pais para a minha apagada figura. Continue, por favor, a falar de você mesmo.

Este narrador não teve meios de saber se Margarida se viu apta a decifrar todos os enigmas das falas dos filhos. A verdade, porém, insofismável, é que ampliou suas vibrações de enorme contentamento, maravilhando-se com o desempenho verbal dos rapazes que nunca vira tão sutis e tão enérgicos intelectualmente.

Quanto a Plínio, deliberou que deveria deslindar alguns mistérios que permaneciam inatingíveis para sua perspicácia, num momento de surpresa e de nostálgica presença do espírito que lhe transmitira a esplêndida mensagem.

Após alguns minutos de silêncio, cada qual respeitando os eflúvios emocionais que percebiam uns nos outros, foi a vez de Cleto volver à realidade:

— Vocês pretendiam voltar hoje mesmo. Não querem passar a noite num hotel, para assistirem às funções religiosas de amanhã cedo?

Antes que Margarida optasse pela aceitação da oferta, Plínio foi incisivo:

— O plano original foi organizado...

Ovídio brincou:

— Pai, você não está falando com os empregados da empresa...

A mãe apoiou:

— É verdade, Plínio! Deixe de bobagem e diga logo que vamos passar a noite aqui!

Mas o homem não quis ceder:

— Vamos fazer o seguinte: eu vou embora, porque tenho compromissos a cumprir no centro logo cedinho. Sua mãe fica e, depois de “babar” mais um pouco com os filhos, volta para casa, para lamentar estar tão longe. Não será exatamente isso o que terei de enfrentar daqui por diante?

Certo tom de mágoa na voz dissuadiu a esposa do intento de se deixar seduzir pela magnífica interpretação do mais velho no palco da igreja. Percebeu que estava entronizando-o muito cedo num nicho de santo e sentiu que precisava desempenhar o seu papel de esposa, tantos favores estava devendo à lhanura do marido. Por conseguinte, encerrou a discussão:

— O pai de vocês tem toda razão. Se eu ficar, serei apenas mais uma pálida estrelinha na constelação que acompanha...

Não soube como terminar a figura, porque as caretas dos outros três indicavam para uma admiração apenas jocosa. Foi assim que decidiram voltar de ônibus, antes mesmo de efetuarem a refeição da noite.

Durante todo o trajeto da volta, cada um se deixou embalar pelas doces recordações daquele dia pleno de sucessos inesperados e prazenteiros.

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