O que existe de mais natural dentro das instituições cujo objetivo é o de resguardar a sociedade de elementos perigosos é o pensamento de que a liberdade deve ser alcançada de qualquer jeito. Em outras palavras, sempre as pessoas, seja qual for a circunstância, desejam algo melhor ou, se possuem tudo o que poderiam querer, buscam preservar o que têm, providenciando para que as condições de regalia ou de felicidade perdurem.
Ovídio não comandou mas apoiou todo o movimento de revolta dos enclausurados. Houve determinado momento em que precisou ameaçar um funcionário de morte. Não hesitou e arrastou-o pelos cabelos por um longo corredor.
Deveríamos relatar as cenas de violência? Fica a pergunta aos mais sensíveis, porque repugna a nós fazê-lo. Julgamos inútil a descrição dos acessos de cólera, porque o resultado mais habitual é o da destruição dos objetos, dos móveis, dos prédios. Muitas vezes, nem raiva existe mas cálculo, como no caso de se incendiarem várias salas importantes da diretoria ou as oficinas de aprendizagem e trabalho, para que os que cuidam da segurança corram para a defesa de um setor, deixando outros menos protegidos. Se houver surpresa, como é do conhecimento de todos, será possível abrir diversas frentes, para que o máximo possível de detentos possa escapulir.
O que houve a lamentar nessa sedição foi a morte de dois menores às mãos de inimigos internos por vingança. Apenas para consignar, devemos dizer que um dos assassinados havia sido marcado para morrer.; o outro foi um dos executores que encontrou a indigitada vítima prevenida.
Durante o tumulto, Ovídio assistiu a todas essas cenas dantescas, ou não haveria razão para nos referirmos a elas. Fique o registro para futuras apreciações morais.
Pois bem, uma vez na rua, imediatamente contatou os meliantes que lhe dariam cobertura do lado de fora, retirando-se das imediações dos prédios por meio de um carro roubado. Se Plínio buscasse a prometida tatuagem, iria decepcionar-se, porque o dinheiro serviu para subsidiar a fuga.
Ora, um dos comparsas era aquele mesmo da correspondência do Cleto, o qual forneceu o endereço e arrumou a mesma carona para conduzir Ovídio até o irmão.
Era a época em que Anacleto precisou dar testemunho do Cristo, mais precisamente, dois dias depois, de forma que o encontro deles se deu em clima tenso.
— Que veio você fazer atrás de mim?
— Não vou morar debaixo de sua saia. Mas vou querer dinheiro para ir para outra região.
— Você sabe que é culpado de eu estar aqui?
— Você não vai me acusar de ter matado o Ari, vai? Ou que foi por minha causa que a mãe ficou maluca? Se disser que o pai perdeu o emprego...
— O que eu quero saber, Vidinho, é se o dinheiro vai servir para comprar os baseados do seu vício.
— Primeiro, preciso cuidar de mim mesmo. Depois, vou pensar em como posso sobreviver.
— Se você está disposto a ficar uns dias escondido, eu arrumo uma pensão de confiança, ponho você num emprego...
— Se for para ganhar a miséria que pagam aos “boys”, nem pensar...
— Eu tenho um plano. Se você quiser ouvir, muito bem. Eu esqueço tudo o que você fez e abro as portas para um dinheiro cada vez mais fácil.
Ovídio, à menção da segurança financeira, fez com que o irmão expusesse detalhadamente o que havia bolado, para que o outro não deixasse “a casa cair”.
— Você não notou, Vidinho, nada diferente em mim?
— Tudo está diferente: o cabelo, a roupa... Não tem tomado sol?
— Você vai ter de se disfarçar. Como está careca, vai precisar ficar escondido por uns tempos, até o cabelo crescer. Enquanto isso, vou providenciar os seus documentos e vou ver se uns óculos de “bacana” ou de intelectual modificam a sua cara. E vai ter de comer bastante para ganhar mais corpo, que eu pretendo aumentar a sua idade. Eu quero saber se você tem “mandado ver”.
— Você vai acreditar no que eu disser ou qualquer coisa vai servir para me dizer que não é verdade?
— Quando você me obedecia, tudo não “andava nos trinques”?
— Durante todo o tempo que eu fiquei lá, puxei fumaça só três vezes.
Neste ponto, ofendeu os pais ausentes com palavras de baixo calão, dizendo que o único dinheiro que conseguiu foi com muita malícia.
— Isso é muito bom. É sinal de que você vai agüentar ficar sem, por mais algum tempo. Mas, se quiser comemorar a saída, eu acho que vai botar tudo a perder.
— Você está no comando, chefe.
Só então Anacleto adquiriu confiança para contar muita coisa do que fizera até aquela data, concluindo:
— Quando chegar a hora, você vai dar testemunho na igreja, modificando algumas partes da história, conforme nós iremos combinar.
— Qual é a jogada, afinal? Ficar trabalhando como vendedor? Isso não é o que pretendo para mim. Eu acho que você está de olho na herança do patrão...
— Também, mas existe muito mais do que isso na parada. Confie em mim.
Naquela noite, Ovídio dormiu clandestino nos fundos da farmácia, sob a vigilância do irmão. No dia seguinte, procuraram uma sauna e, enquanto Ovídio passava por uma limpeza completa de pele, inclusive cuidando das unhas das mãos e dos pés, Anacleto foi comprar-lhe roupas sociais e uma mala, para lhe dar o aspecto de viajante. Mais tarde, com os óculos sobre o nariz, foram ao templo e solicitaram dos pastores agasalho por algumas noites, até que se ajeitasse nalguma pensão.
— Não vai ser de graça, querido. Vamos pedir que nos ajude no que for necessário.
À vista do sinal de positivo de Cleto, Ovídio teve de ceder, imaginando como é que iria sair daquela “gelada”.
Saldanha acompanhou toda a aventura do agora mais novo membro da família do pupilo, não tendo ficado nem um pouco satisfeito com o desempenho dele durante a fuga nem com as vibrações de desagrado que faziam prejulgar forte tendência para a traição. Achava que o mais velho estava expondo-se a sérios riscos de perder a estabilidade que vinha mantendo às custas de muita sagacidade e inteligência. Por isso, redobrou as solicitações de esclarecimentos aos protetores, para que pudesse auxiliar os jovens a desvencilharem-se dos vícios e da malandragem.
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