Assim que entraram, logo foram encontrando pessoas conhecidas, sabedoras dos males por que passava a família. Sendo assim, bastaram umas poucas palavras para que se entendesse que Margarida estava precisando de auxílio.
Teria Saldanha logrado despertar a atenção de Dona Antonieta? Vamos ficar sem saber, porque deu na veneta de Margarida que necessitava conversar com a vizinha. Foi o suficiente para que ligassem para a casa dela e a chamassem, não tendo demorado mais do que quinze minutos para chegar.
Assim que entrou, Plínio foi ao seu encontro, com palavras de evidente pedido de alívio de sua carga:
— Bendita seja, boa amiga! Margarida está em crise de fraqueza, delirando, não falando coisa com coisa. Veja se a senhora consegue fazer com que coma um pouquinho, porque o médico disse que ela está sofrendo de profunda anemia.
— Calma, “Seu” Plínio! Vamos ver como é que ela está e vamos providenciar que restabeleça a razão. O senhor reparou nas roupas dela?
— Como assim?
— Estão enormes. A mulher emagreceu “horrores”.
Plínio prestou atenção no aspecto físico da esposa, surpreendendo-se com as metamorfoses que se operaram, como se, de repente, ela tivesse envelhecido dez anos. Vários sulcos profundos vincavam-lhe o rosto e, no pescoço, uma pele macilenta, entrelaçada de rugas, denunciava a perda do conteúdo que a vinha mantendo lisa.
O coração do homem fez-se pequenininho. Sem saber por que, saiu da sala e pôs-se a andar pelos corredores e pátios, encontrando aberta a porta da saída, em cujo degrau se sentou, cabeça entre os joelhos, a rogar, sem saber que o fazia, pela misericórdia divina.
Nessas horas, parece que a mente humana prega umas peças incompreensíveis, de forma que, como atoleimado, insistia em repetir, no pensamento, a frase do desenho: “Mulheres, iates, mulheres, mansões, mulheres, dinheiro, mulheres...”
Lá dentro, Margarida abraçou-se demoradamente com a amiga, derramando muitas lágrimas, como a pedir perdão aos seres superiores por haver falhado no cumprimento da missão.
Antonieta deixou-a extravasar os sentimentos, em silêncio, enxugando ela mesma lágrimas de comiseração pela dor da outra. Assim que foi possível, passou-lhe um lenço úmido pelo rosto, limpando os excessos de maquilagem, restaurando a cor primitiva, esquálida pele que ganhou um pouco de rubor pelo esfregão.
Sem dizerem nada, caminharam até a cozinha da instituição. Margarida foi acomodada junto à mesa, diante de um prato de sopa. Incentivou-a Antonieta, enchendo um prato para si mesma:
— Você vai me acompanhar neste caldo quente. Depois a gente conversa a respeito de tudo o que está acontecendo a você, ao seu marido e aos meninos.
Margarida, graças a Deus!, aceitou tomar tantas colheradas quanta via a companheira ingerir, de sorte que, se Antonieta não estava com fome, se obrigou, de qualquer modo, a comer.
Saldanha exultava, sabendo que, sem que o físico esteja bom, a mente não raciocina direito e o espírito fica estagnado, a marcar passo, sem possibilidade de progresso.
Quando Antonieta percebeu que aquilo era o máximo que conseguiria, pediu que fossem buscar o marido, para que se entendessem.
— “Seu” Plínio, o senhor aceita também um prato de sopa?
Tirou ele do bolso o embrulho com o sanduíche:
— Eu trouxe este lanche porque pensei que a gente ia ficar esperando abrir o centro. Se a senhora me permitir, eu vou aceitar um pratinho, porque estou com fome.
Trouxeram o caldeirão, encheram um prato, deram-lhe uma colher e ele pôs-se a sorver o caldo, como se praticasse um ritual sagrado, alimentando muito mais o espírito com a tranqüilidade da mulher do que o corpo com a comida. Não teve pejo em pegar a carne do bife e colocar no meio do prato, comendo-a aos nacos, cortando-a com a faca que lhe emprestaram, ao mesmo tempo que partia o pão e ensopava os pedaços que ia levando à boca. Para cada movimento que fazia, tinha uma palavra íntima de agradecimento ao Pai, como se estivesse comungando da fraternidade universal, através daqueles simples elementos. Sentia perpassar-lhe pelo corpo um frêmito de paz, tanto se derreara naquelas últimas semanas pelos trágicos eventos de que fora vítima.
Terminada a ligeira refeição, acompanhada com interesse por todos os presentes, como se estivessem compreendendo o que ocorria ao infeliz, Antonieta perguntou:
— Margarida, explique para a gente o que você veio fazer aqui. Na outra noite, você queria conversar com o jovem Ari. E agora?
A inquirida não atinou com o sentido da questão e respondeu:
— Você não ficou sabendo que eu conversei longamente com ele?
— Sobre que vocês falaram?
— Ele me contou que está num lugar maravilhoso, cheio de amigos, que largou o vício e que se encontrou com o meu avô, que está cuidando dele com muito carinho.
— Muito bem! Muito bem!
A pobre mulher olhava insistentemente para o Plínio, querendo saber o que de verdade havia naquilo. Plínio entendeu e consertou:
— Nós viemos buscar dois remédios que ficaram faltando na lista que recebemos do doutor, no posto de saúde. São estes dois.
Antonieta examinou os nomes, levantou-se, foi à farmácia e, pouco depois, voltou com os frascos:
— Por sorte, nós temos e vamos dar-lhes. Eu sei que estão passando por momentos muito difíceis, mas, assim que puderem, restituam em espécie, para recompormos o estoque. A gente é pobre e trabalha com a boa vontade do povo. Esses remédios não são dos mais baratos...
— Foi por isso que eu não pude comprar. Mas, logo que receber o dinheiro do Fundo, trago de volta.
Antonieta sabia que o vizinho fora mandado embora de um bom emprego e que deveria ter alguma reserva. Foi por isso que estranhou o pedido e instou na restituição.
Plínio complementou as explicações:
— Eu sinto muita vergonha em dizer, mas o nosso Ari levou as nossas economias para comprar a droga com que se envenenou. A senhora me perdoe a franqueza...
— Fique tranqüilo, vizinho, que a vida reserva muitas surpresas para todos nós. A gente pensa que vai indo muito bem e, quando menos espera, recebe uma descarga elétrica no temporal das desgraças...
Não concluiu a frase das palestras proferidas nas reuniões do centro. Julgou-a exagerada naquela circunstância, pomposa e absolutamente incoerente com o real sofrimento do casal, que rogava pela benemerência alheia, mesmo porque a sua própria existência carnal fora pontilhada apenas de momentos de muita felicidade, não sabendo exatamente o que significava a dor da perda de um filho, de um irmão ou de um pai. Passou-lhe pela mente que os avós morreram, mas estavam velhinhos e partiram sem traumas morais de monta.
Pode parecer aos leitores amigos que estejamos estendendo o nosso assunto porque temos poucos episódios a acrescentar ao prato de comida restaurador dos ânimos. Avaliem o quanto de páginas vêm por aí e saibam que estamos demorando-nos na descrição dos acontecimentos daquela tarde, primeiro, porque deu tempo para que cada personagem refletisse com vagar a respeito de cada pequenino gesto ou idéia e, segundo, porque têm sido tão melancólicos os capítulos que temos a obrigação de dar um pouco de conforto emocional aos que acompanham a história. Não foi uma boa idéia?
Enquanto os três aguardavam que alguém tomasse a iniciativa de voltar para casa, os remédios que Margarida tomou foram fazendo seu efeito, de sorte que chegou o momento de ela repousar a cabeça sobre os braços postos sobre a mesa, entregando-se a um sono pesado.
Não havia acomodação apropriada, de modo que, com a ajuda de algumas mulheres, Margarida foi posta no banco traseiro do carro e levada embora pelo marido. Com algum esforço, este a conduziu ao leito, sentindo, junto ao seu, o corpo debilitado da esposa. Não estava, como ele mesmo constatava, exatamente magra. Mas o exagero de gordura tinha diminuído bastante, conforme ele tinha notado em relação aos furos do próprio cinto que ameaçavam terminar.
Enquanto a carregava, perpassaram-lhe diversas lembranças pela mente, cujo resultado foi levá-lo a pôr-se diante do aparelho de televisão queimado, onde desfilaram muitos quadros obscurecidos de sua vida.
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