— Com que, então, o meu fiel escudeiro está a lustrar a minha armadura?!...
Plínio não gostava dessas tiradas do patrão. Mas sorria amarelo, enigmático, a boca fechada. E respondia, sem inspiração:
— Estou de regime. Preciso perder mais de vinte quilos e, se for almoçar em casa, não vou conseguir.
— É o diabo quando a mulher não colabora. A minha era um palito e se sentia muito bem enchendo a mesa, como se cumprisse a obrigação. Mas foi bom você ter lembrado que precisa perder peso. Eu não faço regime mas malho na academia. É duro manter-me apenas com dez além do limite.
Plínio, enquanto ouvia, ia pensando que o patrão sempre se colocava um ou muitos degraus acima. Estranhou apenas que não dissesse que estava mais de trinta quilos além do peso. Mas acrescentou:
— Trago duas ou três frutas e um iogurte...
— Não vá passar fome, porque a companhia precisa que tenha boa saúde para produzir. Por falar nisso, quanto tempo falta para se aposentar?
— Um pouco mais de dez anos.
— Eu penduro as chuteiras no ano que vem. Por isso, estamos pensando em quem irá ocupar as vagas que vão abrir-se. Pelo que imagino, o Palhares assume o meu lugar, o Coelho, o dele e você passa a chefe do departamento.
Plínio ouvia com olhos que se esbugalhavam. Não se conteve:
— Será mesmo verdade?... O senhor é tão jovem...
— Plínio, meu amigo, você não precisa disso. Depois de quarenta e dois anos no lesco-lesco, mereço ir passear pelas praias do Nordeste e conhecer alguns países da Europa, ainda mais agora como viúvo.
O empregado lembrava-se do passamento da esposa do patrão que ocorrera há mais de sete anos. A declaração soava falso. Estaria mentindo quanto ao resto?
— O senhor está pensando em novo matrimônio?!...
— Vira essa boca para lá! Deus me livre e guarde e os anjos digam “amém”. Mas, se você subir, quem vai deixar no seu lugar?
— Não se preocupe. Eu treino o Moacir, que está na firma há mais de cinco anos.
— Você não acha o Moacir muito lerdo?
— Fico na supervisão. Se falhar, assumo e passo a bola para o Silvinho.
— Eu o autorizo a instruir um dos dois, desde já.
— Muito obrigado, Doutor Simões!
— Virei doutor, agora? Simões, homem, Simões!...
No etéreo, Saldanha se congratulava com Pedro Otávio:
— Teve você excelente expediente para impedir os intentos criminosos do meu afilhado.
— Pode crer que Simões conversou com o seu protegido, sem a minha participação. O que fiz foi acompanhá-lo de volta ao trabalho, instando para que pensasse a respeito da aposentadoria. Mas devo dizer que ele não tem vontade nenhuma de parar, principalmente depois que a esposa faleceu, porque se sente muito só, sem os filhos, que apenas de raro em raro o visitam. O seu entretenimento são os negócios. Se não fosse o dono da empresa, talvez pudesse ser afastado compulsoriamente, haja vista que oficialmente aposentado ele já está há cinco anos, recebendo quireras do Instituto de Previdência.
— Quer dizer que não pretende mesmo sair?
— Se isso for bom para ele, vou instigá-lo. No mínimo, ele está precisando ser mais caritativo. Se bem soube ler-lhe os pensamentos, está com a intenção de manter o Plínio no lugar, porque nem desconfia das intenções de desfalque. O que deseja com o treinamento do outro funcionário é pô-lo em condições de ser guindado à chefia do próprio instrutor.
— Preciso consultar os apontamentos psíquicos do Plínio, para prever a extensão do estrago mental que essa “injustiça” irá provocar. Pelo que imagino, se nada ocorrer que o faça ver a vida como realização cármica, irá programar mais seriamente a transposição para sua conta dos valores que o estão tentando.
— Vibremos pelos dois.
Se Plínio tivesse aguçado o dom da escuta mediúnica, teria percebido que alguém elevava uma prece em seu favor. De qualquer modo, estava imerso em profunda alegria, sentindo-se reconhecido pelos vinte anos dedicados à empresa. Por uns tempos, deixaria de lado a idéia da falcatrua contra o erário do patrão.
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