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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — XLVII -- 02/09/2003 - 06:53 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

De repente, Rupério acordou, olhou ao derredor como se não estivesse diante de ninguém e afastou-se pensativo, dando tratos à bola, sem entender por que se recordara do antigo colega e se voltara contra ele, quando, na verdade, deveria apenas ter boas recordações da época da escola.

Deodoro quis saber de Joaquim se o pessoal da colônia não poderia ajudar o colega.

— Já estamos ajudando. Caminhará aparentemente ao acaso mas irá deparar-se com alguns socorristas disfarçados de antigos colegas, para a reintegração da memória sobre fatos não-opressivos. A partir daí, tendo em vista o vasto sofrimento que se impôs, poderá refletir mais saudavelmente sobre as realizações infrutíferas com o fito de suplantar as deficiências da personalidade. Se você estiver disposto, poderá dedicar uma parte de seu livro para a elucidação da corrente de causas e efeitos que resultou neste desembocar junto a nós. Não nos disse você que lhe vinham à lembrança três colegas? Para tal deve ter havido a intervenção dos protetores deles, cientes de que a sua presença lhes poderia fornecer recursos para o trabalho que vêm empreendendo. Isto significa que você está abrindo a mente para a recepção de mensagens que dizem respeito a outros seres. É maravilhoso sinal de que está apetrechando-se para a tarefa socorrista.

Mas Deodoro queria analisar outros aspectos:

— O que o instrutor está dizendo-me induz-me a não ser precipitado na evocação de ninguém. Se me tivesse dirigido ao encarregado do meu colega, com certeza teria tido um quadro completo das necessidades dele. Terei razão se suspeitar que não teria vindo até nós se não estivesse em condições de receber orientação, dado que o pessoal da colônia está alerta para o que fazemos?

Joaquim sorriu e concordou:

— Se desejar chamar alguém francamente avesso ao encontro com um inimigo declarado (e você tem alguns nesse estágio), não merecerá o nosso apoio, dado que o grupo que o acompanha tem como tarefa primordial deixá-lo à vontade para aprender as lições do socorrismo, mas não de forma perigosa ou aleatória. Através da meditação, irá estabelecer sistematicamente os critérios de atendimento aos carentes de assistência. Não foi à toa que me deram a missão de chefiar a comitiva.

— Depois do susto, consulto o mentor da conveniência de chamarmos o meu caro Augusto.

Joaquim concentrou-se e, em seguida, informou:

— Não há nada a fazer em relação ao seu parceiro de traquinagens escolares: está encarnado e vive pacificamente ao lado da família. Sem dúvida, a esse fato se deve não se ter apresentado no hospital. Quanto ao terceiro de sua lista, o “Segunda-feira”...

— Era assim que eu chamava o Domingos. Aliás, só não era conhecido por esse dia da semana, porque todos os outros eram apelidos dele.

— Pois o Domingos está encarcerado num mosteiro de sacerdotes, no aguardo de transferência para o Paraíso. Caracterize-o para nós quanto à propensão para os estudos.

— Era o mais apegado aos livros. Respondia a tudo o que se perguntava de maneira a reproduzir os textos com fidelidade. Tanto decorava as lições que não tinha tempo para outras coisas. Era custoso convencer o moço a participar dos esportes, mesmo sob a ameaça dos deméritos. Soube, mais tarde, que aceitou permanecer em São Paulo, na qualidade de coadjutor na Paróquia de São Bento, exercendo as modestas funções de intendente das provisões. Faleceu aos oitenta e tantos, conforme a notícia...

Suspendeu Deodoro a lengalenga que ameaçava transbordar em excessos de nostalgia.

Margarida pôde comentar as emoções que perpassavam pela aura do companheiro diretamente para a sua:

— Sinto a sua extraordinária ternura ao descrever as reminiscências da juventude. No entanto, não me parecem muito agradáveis as sensações da idade adulta, como se repercutisse em sua consciência a crítica histórica que fez da falta de ambição do parceiro. No entanto, esse estado gerou a passividade atual, no aguardo da recompensa de Deus pelo sacrifício da vida. Não valem mais as lições decoradas mas deve apegar-se a elas há mais de quarenta anos. Contudo, não sofre a não ser a ânsia de ser resgatado pelos anjos. Desses conheci muitos, estando a serviço na fronteira entre a colônia e o monastério. Creio que Joaquim aprovará uma incursão para o despertar do irmão para a realidade do etéreo, naturalmente após estudos completos do seu ânimo. Não era isso, querido, que desejava saber?

— Era isso, mas suspeito de que não tenhamos autoridade para fazê-lo nós mesmos, uma vez que deve existir um grupo especializado em resgatar esses elementos inócuos para si e para a sociedade etérea, da mesma forma que desempenharam na Terra tarefas de humildade duvidosa, tendo em vista o resultado grandiloqüente da cobrança das promessas que ouviram e que fizeram da salvação das almas através da Igreja. Não quero ser azedo nas apreciações, mas penso que as virtudes mais propícias para a indução de seres assim ao entendimento da realidade que encontramos neste círculo existencial sejam a paciência, a tolerância e a perseverança.

Joaquim aplaudiu a dedução do aluno:

— Muito bem formulada a tese da prudência quanto a efetuar o resgate. É fato que existem grupos encarregados da tarefa, todavia, não teremos dificuldades em nos aceitarem como membros interessados em assistir aos amigos na qualidade de irmãos em débito para com a humanidade em geral, diligenciando para a compreensão das soluções para os nossos problemas mais prementes. É assim que todos trabalham sob as ordens dos responsáveis e guardiães. Será esse o próximo passo?

Eufrásio tinha outra saída para o atendimento do amigo Domingos:

— Ou muito me engano ou conheço o sujeito a que vocês se referem. Sei que está no mosteiro por onde transitou Deodoro. Talvez até os demais aqui presentes tenham lembrança de quem se trata. Se não for aquele velhinho que reclamava da comida...

Alfredo interrompeu-o:

— É isso mesmo. Não foi uma só vez que o ouvi dizendo que no Purgatório as coisas iam de mal a pior no serviço de intendência culinária. Aposto que Arnaldo sabe quem é.

— Claro que sei. Foi um que não nos deu trabalho algum para trazê-lo de volta ao etéreo. No entanto, assim que se instalou em sua cela...

Aí Margarida descobriu que atendera um velhinho por quem não teve nenhuma simpatia:

— Ranzinza, queixava-se de tudo, imprecando contra todos, ameaçando com ralhos de subalterno na chefia de inferiores.

Eufrásio retomou a palavra para explicar a sua idéia:

— Iremos nós seis à cela em que dorme sozinho. Dar-nos-emos a conhecer na qualidade de mensageiros do Senhor. Um pouco de efeito pirotécnico e acreditará que está diante de anjos. O diabo é que é bem capaz de reconhecer cada um de nós, menos Joaquim.

Coube a Deodoro perguntar a respeito da frase do diabo:

— Lá na Terra, o irmão não diria semelhante expressão. No entanto, como será possível descobrir o nosso segredo se formos disfarçados? Penso que, se fosse para me reconhecer, ele teria ido procurar-me quando lá estive. Ou terá a mesma acusação de vaidade que ouvi de Rupério?

Joaquim interveio:

— A questão é válida. Quem sabe tivesse mesmo Domingos instigado a turba contra a sua presença, favorecendo a revolta que os desalojou de lá? Quem será capaz de rememorar aquele dia, tornando o mais objetiva possível a tela em que os acontecimentos se desenrolarão?

Eufrásio entusiasmou-se com a perspectiva de demonstrar ao protegido uma nova técnica:

— Se alcançarmos sucesso na empresa, teremos um cineminha animado, como se a projeção se desse de modo absolutamente coerente com o que vimos. Uma câmara reproduziria a cena de um ângulo. A proposta de Joaquim acrescenta mais três pontos de vista...

Margarida corrigiu:

— Se Joaquim não esteve lá...

— Não estive.

— Então serão as reminiscências de todos os outros, ou seja, em vez de quatro, cinco focos de apreensão da realidade.

Prosseguiu Eufrásio:

— Vamos concentrar-nos nas lembranças, enquanto o nosso instrutor se comunica com a colônia para o auxílio magnético de captação das imagens que estivermos desejosos de transmitir. Em pouco tempo, serão processadas as diferentes...

Não concluiu, tendo percebido que ninguém prestava atenção, uma vez que todos estavam buscando dar a sua contribuição.

Aos poucos, foram restaurando a consciência do momento, até que Joaquim declarou que estava pronta a cinematografia mnemônica.

Criou-se uma tela fluídica sobre a qual incidiu a composição resultante da união das cenas. Conforme os acontecimentos se desenrolavam, cada qual percebia que o quadro era o que estava em sua mente.

Coube a Eufrásio proceder a algumas informações ao grupo:

— A nitidez da cena é artificial. A aparelhagem da colônia tem a capacidade de suprimir as vibrações emocionadas que elegeram uns aspectos em detrimento do conjunto, de acordo com os interesses da ocasião. Para isso, utilizaram como cenário a reprodução fiel da sala de refeições do monastério, de sorte que podemos admirar o sentido de profundidade e de perspectiva, como se fosse filmado com a ajuda de instrumentação material e não como reprodução de meras reminiscências. Como nos interessa a atuação de Domingos, assim que o reconhecermos no meio da multidão, vamos recortar os enquadramentos dele e solicitar aos técnicos que montem o trecho em que se destaca.

Não foi difícil de encontrar a figura de um velho octogenário junto à porta de entrada dos copeiros e garçons.

No início da ação, manteve-se alheio ao que ocorria na mesa principal, claramente preocupado com os restos de comida.

— Apreciem o trabalho de continuidade realizado eletronicamente. Com certeza, existem apenas retalhos de visões. O efeito, contudo, se dá como se todos os movimentos tivessem sido apanhados pela câmara.

Deodoro levantou uma hipótese:

— Havia mais quatro conhecidos presentes. Será que as lembranças de Joaquim, Hermógenes, Roberto e Everaldo também foram requisitadas?

Coube a Joaquim responder:

— Sem dúvida foram solicitados a colaborar.

Notava-se um fato curioso na apresentação das imagens. Era como se congelasse a projeção toda vez que alguém chamava a atenção do grupo para algum fator estranho ao que se passava na tela. Assim, quando voltaram a olhar para o écran, deu-se seqüência à atividade de Domingos. Ao fundo, ouvia-se a voz de Deodoro realizando o seu discurso. Foi quando a expressão de Domingos ganhou vida. Percebeu que estava ali o antigo colega, evidentemente. Quando houve o tumulto em represália aos termos empregados pelo orador, a figura do amigo desapareceu de cena. Deu-se, nesse ponto, longa apresentação em que apareciam Crisóstomo e Deodoro, até que se apresentaram os quatro que iriam seguir com o monsenhor. Aí se pôde ver Domingos chorando. Foi a derradeira cena do filme.

As lágrimas do velhinho eram um mistério. “— Que lhe estaria passando pela cabeça para emocionar-se?” — perguntavam-se entre si.

Joaquim atreveu-se a buscar a interpretação de tal movimento da alma:

— Não sou bom em ler diretamente na face das pessoas, ainda que retratadas com sua imagem etérea. Se tivéssemos a possibilidade de projetar-lhe na tela a aura, iríamos caracterizar-lhe com firmeza as tendências psíquicas. Isto teria sido possível se alguém do grupo estivesse especialmente interessado nele. Por exemplo, se Deodoro houvesse trocado algumas palavras com Domingos, as impressões estariam gravadas indelevelmente em seu cérebro perispirítico. O que não padece dúvida é o fato de externar algum sentimento. Será de tristeza ou será de alegria?

Esperou uma resposta, a qual lhe foi dada por Deodoro:

— Se fosse uma reação favorável a mim, Domingos iria aplaudir-me o discurso. No entanto, não prestou atenção às minhas palavras mas apenas em minha pessoa. Logo, não teve como compreender a razão de me haverem expulsado do monastério. Chorou de tristeza, relembrando a nossa vida juntos no seminário. Eu mesmo não vi ninguém entusiasmado com a situação em que se padecia a espera de ser levado ao Paraíso. Por que não me chamou, não gritou o meu nome, não correu atrás de Crisóstomo quando nos levou até a porta da rua? Se alguém achar que estou sendo precipitado nas conclusões, por favor, manifeste-se.

Eufrásio desejou expor as suas idéias:

— Conjetura por conjetura, posso admitir que Domingos chorasse de dó por ver o amigo sendo escorraçado do Purgatório para o Inferno, pois era em que acreditava. Existem outras hipóteses plausíveis, como a de que o pranto revelava a miséria de suas realizações em confronto com o brilho de alguém que, nem bem chegou, foi conduzido às áreas ocupadas pelas autoridades e dignitários. Não poderia, também, ter ocorrido que despertasse para a falsa humildade de suas atitudes de servir à congregação de religiosos, com a conseqüente cobrança do reconhecimento da Divindade? Em matéria de imaginação, somos livres de elaborar todas as situações psicológicas de acordo com as próprias experiências. O diabo (ei-lo de novo) é que voltamos à situação anterior, já que todo o esforço cinematográfico acabou perdido para a finalidade socorrista. Valeu, é evidente, para a ilustração científica dos pretendentes a alunos da “Escolinha de Evangelização”.

Foi Joaquim quem completou:

— E para Deodoro e equipe de redação preencherem mais um tópico a ser levado aos mortais.

Mas Eufrásio não queria perder o ritmo dos pensamentos:

— O que me preocupa é se devemos ou não acometer o empreendimento da visita à cela de Domingos, conforme sugeri.

— Pelo menos — acrescentou Joaquim — sabemos agora que ele não teve aquela atitude de estimular a expulsão do amigo.

Deodoro lembrou-se de que desconfiaram da perspicácia do assistido em reconhecê-los sob disfarce.

— Quanto a isso — informou o instrutor — receberemos o apoio logístico da colônia, de forma a modificar substancialmente a aparência de cada qual, até o instante em que for conveniente revelar quem somos.

— As suas palavras — ponderou o monsenhor — parecem-me francamente favoráveis ao procedimento imaginado por Eufrásio. Estou certo?

— Não custa tentar, se o fizermos no justo interesse do amigo, cheios de amor no coração, com a mente limpa de preconceitos, o que se conseguirá com as preces votivas do trabalho a Jesus.

Quis saber Deodoro:

— Se eu permanecer impuro, porque, como denunciou Margarida, tenho criticado o caráter de Domingos, não haverá meios de o grupo ser advertido, para não cairmos na armadilha da desorganização emocional, como aconteceu comigo diante de Rupério?

Não precisou que ninguém redargüísse. Foi o próprio monsenhor quem declarou:

— Preciso refrear os impulsos negativos da personalidade. Como poderei tornar-me socorrista, se a tudo imponho o clima do pessimismo de quem não confia em si mesmo nem nos companheiros equipados e experientes? Se não estiver bem, saberei advertir a turma a tempo. Vamos orar.

Enquanto oravam, Deodoro recebeu uma inspiração. Parecia-lhe que seria imprescindível contatar o protetor de Domingos, para a atualização das informações. Por isso, antes que mais alguém se manifestasse, logo que todos voltaram a si do recolhimento religioso, argumentou:

— Os fatos que presenciamos na tela aconteceram há algum tempo, cerca de vinte anos ou mais. De lá para cá, muita coisa mudou em meu espírito. É o que penso tenha acontecido ao colega. Se não acharem inconveniente, quero estabelecer como regra geral para os atendimentos de sofredores a convocação, sempre que possível, do protetor individual. Talvez aí tenha residido a falha primordial do chamamento de Rupério.

Todos aprovaram a deliberação e coube a Eufrásio considerar:

— Nem sempre o próprio guardião está apto a atender, porque estabelece espécie de vínculo telepático de alarme, o qual é acionado em caso de reestruturação significativa do estado geral do assistido. Como, porém, ao que tudo indica, Deodoro tem sido estimulado a recordar-se do amigo, é bem possível que o protetor de Domingos esteja a par das alterações.

Sem solicitar permissão aos demais, Joaquim fez-lhes um sinal para que aguardassem e chamou o pessoal da colônia para referendar a evocação em pauta. Não demorou um instante sequer e chegou um padre às antigas, vestido da pesada estamenha dos frades mendicantes, pedindo desculpas pelos trajos:

— Não reparem nas minhas roupas, por favor. Vocês me tiraram de entrevista com encarnados, enquanto dormiam. Recebi a notícia de que desejam saber a quantas anda o convencimento de Domingos para deixar o mosteiro. Pois está bem melhor, desde que soltou algumas lágrimas, um certo dia em que reconheceu antigo colega.

— Sou eu, revelou-se Deodoro.

— Pois eu não sei? É bem verdade que a descrição que recebi me levava a uma fisionomia de aproximadamente cinqüenta anos de idade. Esses seus vinte e tantos demonstram o progresso que vem realizando. Pois Domingos, vocês vão ver, está próximo de deixar a casa dos cinqüenta, tão desvelado tem sido com o tratamento dispensado aos reclusos do convento. Já não tem lamentado a má qualidade dos alimentos. Ao contrário, esforça-se por colaborar na melhoria, plantando, cultivando, criando e supervisionando a confecção das refeições. Também tem jejuado continuamente, estando prestes a descobrir que pode retirar o sustento perispirítico diretamente dos fluidos, como nós fazemos. Tenho pressa em volver à tarefa junto aos que chamei para a conferência, mas aprovo sem condições que vão conversar com o meu afilhado, rogando-lhes para que se apresentem sem disfarces, porque deve estar ele ciente de que vocês, em aparecendo, apenas lhe quererão fazer o bem. Mais tarde, se conseguirem encaminhá-lo à sua colônia, irei até lá reforçar os ensinamentos que lhe passarem. Obrigado. Fiquem com Deus.

A permanência do protetor se deu num átimo de segundo, tanto que já havia desaparecido, enquanto todos ainda lhe ouviam a descrição psíquica.

Arnaldo estava impressionado:

— É a primeira vez que me ocorre o fenômeno. Parece que me foi implantada no cérebro uma célula de mensagem energética que se esvaiu por si mesma. Estarei definindo bem o recurso empregado?

— É exatamente isso, concordou Joaquim. O guardião desejou fazer-se presente e deve ter deixado um clone visual na reunião, ao mesmo tempo que elaborou discurso condensado em bolha fluídica capaz de transmitir a gravação na velocidade de nossa absorção de seu conteúdo. Bem comparando, trata-se de um radiotransmissor autodestrutível, de uso único. Entretanto, se quisermos ouvir de novo as suas palavras, estarão registradas...

Deodoro impacientava-se com a possibilidade da repetição de anteriores explicações, tanto que, sem cerimônia, interrompeu o instrutor:

— Também esses conhecimentos estão arquivados em nossas memórias, não é verdade? Então, não percamos o impulso e vamos até o mosteiro, porque estou sentindo-me perfeitamente equilibrado quanto às emoções.

Nem terminou de falar e se viram, sem pirotecnia, sem maquilagem, sem disfarces, dentro da cela onde estudava Domingos.

Foi o enclausurado quem primeiro se pronunciou:

— Fui alertado que seria, uma hora ou outra, visitado pelos senhores. Reconheço Margarida, Deodoro e os demais, menos um.

— Joaquim, coordenador dos trabalhos e vigilante dos sentimentos da turma, ao seu dispor.

— Não esperem de mim nenhuma resposta positiva quanto a segui-los para fora do convento. Estou prevenido quanto às dificuldades que se enfrentam na escuridão. Aqui, ao menos, temos a segurança de desempenho cada vez mais amadurecido dentro da doutrina cristã. Vocês, com certeza, não fazem parte das coortes de anjos que levam os almas dos religiosos para o Céu.

Deodoro retorcia as mãos atrás das costas, descontente por ter sido recebido com tamanha frieza. Ponderou que talvez tivesse sido melhor aparecer jovenzinho, como na época do convívio escolar. Pensou também que a mistificação teatralizada posta de lado pelo protetor talvez repercutisse com mais eficácia para dispor o ânimo do colega favorável a deixar a condição de inferioridade. Superou, todavia, a ânsia de libertá-lo e perguntou-lhe ex-abrupto:

— A que se devem as lágrimas que verteu quando me reconheceu junto de Crisóstomo?

Domingos olhou firmemente para o candidato a socorrista e denunciou:

— Eu sempre o admirei e segui a sua carreira a distância, através dos boletins e noticiários das páginas da imprensa eclesiástica. Soube que auxiliava na regeneração de criminosos. Soube que ministrava cursos de Teologia. Soube que foi transferido para o Vaticano, com a missão de assessoria do Papa para os assuntos da América Latina. Soube que mereceu desfrutar a tranqüilidade da Riviera francesa, onde redigiu os seus estudos e comentários bíblicos. Pena que não tenham sido publicados. Pois bem, eu só atingi a medíocre posição de intendente junto à irmandade dos beneditinos, após ter refeito alguns anos de escolaridade. Imerso no Purgatório, de repente, deparo-me com quem? Com o portentoso ás que tanto venerava. Caí das nuvens. Se Vossa Reverência estava freqüentando o mesmo círculo que eu, não tinha os méritos que lhe atribuí. Quando foi expulso, imaginei a minha triste condição de traste religioso sem qualquer expressão, condenado, portanto, a permanecer aqui por muito mais tempo. Chorei de desgosto e de apreensão. Mas o pranto me fez bem, porque me abriu os olhos para a necessidade de efetuar alguma coisa em favor dos companheiros, repudiando o mau hábito de tudo recriminar. Quando o vi chegar ainda há pouco, voltei a me azedar, pois me dei fé de que você, naquela ocasião, também me reconheceu mas não desejou fazer contato comigo, nem ao menos através de um gesto amigo. Mas eu o perdôo, porque é o que aprendi a fazer, em nome de Deus. Vejo que Vossa Eminência (sem azedume, por favor) está integrado num grupo sob a chefia desse indivíduo vestido à paisana, o que me revela que não tem mais a importância lá da Terra.

Tendo Deodoro feito menção de interromper a arenga, Domingos observou:

— Deixe-me pronunciar o discurso que tenho preparado. Se não for para me proporcionar a ida ao Céu, perdem o seu tempo, porque estou muito bem, já que não venho sofrendo os assédios da consciência por imprecar contra a injustiça do Pai. O trabalho me tem feito muito bem e aqui pretendo ficar, até quando Jesus se lembrar de me admitir numa leva para a esfera da bem-aventurança eterna. Agora podem dizer a que vieram.

Por unanimidade, foi dada a vez a Deodoro, que se imaginou na situação de socorrista desafiado. Principiou por encorajar Domingos a orar com o grupo:

— Vamos agradecer ao Senhor a permissão para adentrarmos o convento sem despertar os guardas e sem atemorizar o amigo. Está disposto a elevar os pensamentos numa prece?

— É o que tenho procurado fazer sempre que me deparo com idéias funestas.

— Então, acompanhe-nos, por favor, num padre-nosso e três ave-marias.

Enquanto recitavam as orações, Deodoro recordava-se das longas conversações entre os quatro colegas do seminário. Dessa forma, estabeleceu um clima de felicidade, procurando envolver nele o grupo todo.

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