Algumas imagens na vida da gente são eternas. Nascimentos, casamentos, batizados... O primeiro beijo, a primeira lagrima. Mas nem sempre essa imagem equivale a um grande evento, ou talvez equivalha, mas de maneira diversa - num foco pessoal.
Recordo uma vez - eu era menina - em que viajamos em família, seguindo de carro de Brasília a Salvador. Se eu forçar a memória e com o auxílio das fotos, vou lembrar das praias e dos pontos turísticos - real objetivo final - e lembrarei das ocasiões das fotos. Mas toda a viagem, vinte e tantos anos depois, me volta à lembrança na forma de uma imagem eterna captada em uma cidade na qual dormimos durante o percurso, na divisa de Minas com a Bahia.
Lembro do hotel, das casinhas, das ruas estreitas... Lembro que era perto do natal, a seleção brasileira de futebol estava hospedada no nosso hotel e até encontramos os jogadores na escada; lembro da cama de casal em que dormimos eu, minha mãe e minha irmã, pois não haviam outras camas disponíveis.
E me lembro que da janela do hotel, se via toda a cidade dormindo e, refletida na iluminação da rua, estava uma fotografia que não foi tirada em máquina, mas está gravada em minha retina. Chovia, ou antes, garoava e os pingos que caiam eram substituídos de maneira tão simétrica, num moto contínuo tão perfeito e realmente parecia um tecido, um véu de água fina que cobria as casas e refletia a luz amarela do poste, brilhando milhões de gotículas no ar.
Jamais vi novamente uma chuva como aquela, a magia que existiu naquele momento, jamais se repetiu. Me faltam hoje os olhos que tinha e com os quais contemplei a cena. Olhos que viam a vida com poder de captação - olhos que viviam a vida. Naquele dia, na janela do hotel eu me embriaguei de paz; minhas células, meus neurónios, meus átomos se anestesiaram de tranquilidade e de uma certeza magnànima de que eu fazia parte daquilo - assim como cada gota daquela chuva que na sua existência, mesmo que efêmera, era completa.
Toda as vezes em que vejo uma chuvinha fina, procuro por um poste de luz amarela e tento recriar o retrato, mas meus olhos estão embaçados por que minha visão hoje é muito ruim. Minha visão é contemplativa, aprecia a beleza e até se emociona, mas não sou mais parte de nada - ao contrário - me tornei um indivíduo com opiniões próprias e com um medo gigantesco de perder essa nova condição, de perder uma pseudo-identidade que garante o equilíbrio de pessoa adulta.
Essa tal "maturidade", obrigação primeira de ostentação humana, é que faz alguns tomarem remédios de tarja preta e outros procurarem refúgios para suas almas.
E eu continuarei à cata da minha garoa perfeita, mesmo que meus olhos não ajudem, mesmo que meu intelecto se interponha, ainda que eu tenha a certeza de não a poder encontrar mais.
Talvez eu ainda volte à quela cidadezinha e me hospede naquele hotel. Quem sabe tudo o que eu disse acima seja uma tremenda besteira e a mágica toda esteja flutuando na atmosfera de lá.
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