Era um domingo cuja manhã era a flor que se abria para a primavera com seus perfumes peculiares que
somente aquele que na infància cheirou deste cheiro sabe o que quero dizer. Caminhava na praça olhando o azul do céu com cores de paz. Na minha frente andava um casal que logo senti que conhecia. Quero dizir conhecia ELÊ. Conhecia de um tempo cinzento tão diferente desta manhã. ELÊ era um ex-funcionário de um banco qualquer da vida. Todos sabemos o quanto neurotizante é a máquina de qualquer banco. Sua história era simples. E horrorisante também. Eu o conheci pela primeira vez quando era plantonista de uma Clinica Psiquiátrica aberta no Rio de janeiro. Estava no terceiro ano de medicina e sabia tanto de psiquiatria como um rico se diz conhecedor da caridade. Não importa.Importa sim que uma de minhas obrigações era fazer a história do paciente. E sua história
não lhe dava passaporte para uma internação psiquiátrica. Sofria apenas de dores estomacais de origem emocional. Fiz a história, e embutida nelas soube que era proveniente da mesma cidade que nasci. Ficamos amigos, jogávamos cartas, ping-pong e levávamos bons papos. Era culto ele. Culto e ingênuo tanto quanto eu também o era. Trabalhar nesta clinica além de me deixar confortável financeiramente ainda previlegi0u-me de evitar o convívio infernal da insanidade. Alí não. Aliás, não parecia hospital. E sim uma mansão aconchegante, sem cheiro de remédios e total liberdade. Seu proprietário, cadetrático de medicina era um figurão. Rico à beça, possuía três carros Mercedes novinhos. Andava de sunga pela clinica e fumava cigarrode palha. Graduado em Heilderberg Alemanha. Era também comunista. Fato é, que era conhecido pelos estudantes como patrão que ninguém sobrevivia em sua clínica mais de cinco meses. Fiquei seis anos. Puxava seu saco a mais não poder. E como tinha um perfil culto o enganei bastante tempo. Ele também me enganou. O meu trabalho penoso era só matinal quando se aplicava insulina e deixava o paciente em coma para depois tira-lo com uma injeção de glicose. E também as terríveis aplicações de eletochoques. Para mim este era o procedimento certo, vez que a orientação provinha de um mestre. Cumpria então estas tarefas com naturalidade pensando que os pacientes que eram a elas submetidos, faziam por merecer. Se havia mais de cinco pacientes realmente graves era o máximo. Muitos eram gerentes de banco que procuravam abrigo para fugir da maquina alienante, ou artistas ou eventualmente apenas estudantes que eram perseguidos pela repressão da ditadura.
Pois bem, qual foi minha surpresa numa certa manhã também de domingo, lá pelas 6:hs ver seu nome na lista dos que iriam levar eletro-choque. Não entendi nada. Procurei então o chefe de clinica que viria mais tarde a ser meu padrinho de casamento e o questionei. Respondeu-me como bom amigo que era para eu não procurar saber coisas que poderiam abortar minha carreira. Só que apenas aguçou minha curiosidade. A tal ponto que me fiz amiga da contadora da clinica. Amigo e amante. E Ela desnudou e revelou o que estava por trás daquela pacífica casa. Ou melhor, casa para ganhar
dinheiro. Um prostíbulo da medicina tão comum naquela época. Todo mundo ganhava. Exceto quem estava internado. O médico que encaminhava o paciente tinha sua porcentagem. Orientavam-se tratamentos como eletrochoques ou insulina ganhava muito mais apesar de seu efeito ser de menos. O proprietário ganhava dos bancos credenciados. Era a antitese daquilo que eu julgava ser a psiquiatria.
Bem naquela manhã dominical cinzenta eu chamei o meu conterràneo e sem ele saber o que o esperava, convenci para ir imediatamente para nossa terra. Pasmo, nada entendeu. Porém não sei porque, aceitou minha orientação. Sumiu. Sumiu sem eletrochoque na cabeça. Nunca lhe dize o porque da minha atitude.
E hoje neste domingo passo pelo casal, comprimento de forma respeitosa e vou caminhando em direção a esperança que um dia perdi. Vou caminhando, porém com a sensação do dever comprido. Olho rápidamentepara trás e agradeço silenciosamente o bem que ele me fez.