Estes poemas foram escritos durante os anos de solidão que vivi nos quartos de hotel. Trazem em si a tristeza do chefe solitário, já que ninguém é mais solitário do que um chefe. Talvez seja porisso que meus poemas tendem mais para as coisas passadas, falam mais da morte do que da vida.
Agradecimento
Agradeço ao pipoqueiro da Catedral pelo primeiro saco de pipocas com queijo que me vendeu. Quando cheguei em Taubaté, nunca tinha comido antes uma pipoca tão gostosa. Foi o pipoqueiro o culpado. Foi ele quem me fez ficar aqui para sempre...
Taubaté
Colméia de casas pequenas
Juntinhas, escorando-se mutuamente
A orgulhar-se de suas minúsculas portas e janelas,
Desenhando ruas estreitas, mais de mil vielas
Por onde passa o povo a caminho do país das frutas
Na rota certa do Mercadão sem igual.
Seguem todos com carrinhos e sacolas na mesma direção
Pra buscar verduras, melancia verde-vermelhinha ou
Saborear abacaxis cor-de-rosa —doces arco-íris em rodelas...
Beber água de coco na dona Maria
Cuja polpa mole, gelatinosa, a gente pode levar pra casa.
Do coco, diz a menina, é a parte mais gostosa...
Ali perto tem a “Breganha” de coisas velhas
Onde gente simples troca sonhos —e vai vivendo a vida devagar.
Tem muito mais. Tem coisas de dar saudade:
Tem cheiro de pastel quentinho, de torresmo coradinho
Sempre no mesmo bar.
A conversa requentada, a mesma história
Mil vezes repetida e engraçada.
Tem o caldo de cana sagrado,
Que o diabético pode tomar
Tem erva, tem pau-tenente, mato pra tudo curar
Até bota “Sete Léguas” se encontra pra comprar...
Tem “secos e molhados” teimosos
“Vendas” que nunca se vê noutro lugar.
Na Casa do Philadelpho entro pra sentir o cheiro
Gosto da soma deles —de um mundo de temperos,
De ferragens e cereais, cheiro do cravo, da canela
De açúcar cristal —que ainda se vende a granel.
Tem aroma de rapadura, de melado,
De infinitos doces mais
Tem favos brilhantes, simétricos, perfeitos,
Obra-de-arte em vidro das abelhinhas,
Espelhos cheios de mel.
Há pirulitos nas entradas, ao longo das passarelas,
Chupetas-galinhos, vaquinhas açucaradas.
As crianças pedem, insistem e ganham as delas
Na praça da Catedral, porém,
É onde nasceu a grande invenção
A maior de todas elas: pipoca com queijo!
Alegria dos adultos —a beleza da criação.
Come-se antes do primeiro beijo
E depois da Santa Missa,
Obrigação solene, uma espécie de prece
Coisa que ninguém jamais esquece.
Essa é a Taubaté que eu não conhecia
Um mundo de coisas vivas onde aportei
E aprendi a amar um dia.
Descobri que a vida aqui se renova
E tudo pode acontecer de repente:
É um velho armazém de saudade
Que faz bater depressa o coração da gente!
Preferia ser boi
Mesmo que eu não tivesse casa nem vizinho
Eu quisera ser um boi no pasto sozinho...
Se vivesse apenas cinco anos e não oitenta,
Acho que seria mais feliz assim,
Livre da alma que atormenta.
Maldição dos frangos vivos
Tenho pena dos frangos vendidos vivos no mercadão.
Têm olhares perdidos e sem futuro.
O futuro deles não é bom: é curto, com prováveis horrores.
Serão saboreados bem ou mal passados
Quando assados, levantarão cheiros e sabores...
Ao vê-los assim engaiolados,
Comparo-os com a brevidade da minha vida:
Eu também vivo preso numa gaiola estreita
Aberta, mas muito bem feita
E, como a deles, sem saída.
Serei eu a próxima vítima escolhida?
Claro, tudo foi feito sob medida!
Frangos engaiolados, consolem-se comigo.
Viajamos juntos no mesmo vagão amontoados
Nossos editais de morte já foram publicados...
Somos meros prisioneiros olhando pela janela.
Ai daqueles que gostam de comer frango vivo!
O tempo se vingará deles —o tempo é o nosso guia
Terão seu momento de calor intenso e merecido
Gemerão no fundo de uma panela —o fogo bem aquecido
Depois da festa do último dia...
A velha pasta de amostras
A você, que por acaso encontrar
A minha velha pasta de amostras
Perdida, coberta de folhas e musgo
Neste canto da floresta
Imploro que a recolha e abra.
Encontrará algumas bulas rasgadas,
Velhas caixas molhadas,
Talvez uma ou outra amostra vencida.
Procure, procure bem devagar...
Certamente vai encontrar
Uma carta que deixei escrita.
Não faço conta, nem me importo
Pode ler meu segredo e pode contar.
Falo da mulher e dos filhos
Que amei —e do meu jeito eduquei.
Dos médicos que visitei
Dos chefes bons que tive
E dos muitos amigos que ganhei.
Encontrará nesta velha pasta
Um pouco do resto de mim.
Meu corpo não procure,
Nem vasculhe a floresta —desista!
Não tenho mais corpo, só uma coisa me resta:
Alma de propagandista...
A greve do ovo
Depois de muitos anos perdidos
E de muitas gerações goradas
Entraram em greve as galinhas do tio Jonas.
Qual foi o motivo, a causa dessa parada?
Certamente que foram os milhões de ovos
Que por culpa dos humanos gulosos não vingaram
E dos muitos pintos que não cresceram...
Os primeiros foram saboreados quentes ou cozidos
Os segundos, fritos ou assados...
Então, têm razão as galinhas do tio Jonas!
É mais do que justa a sua greve do ovo!
Pois ainda que botem tudo e amanhã botem de novo
Não haverá ovo nem pinto que sacie a vontade do povo...
Ela já era
Minha esposa
Já foi princesa e rainha
Hoje só reclama.
Geme se passa roupa
Xinga se faz a cama.
Cozinhar, nem pensar!
Do fogão ela pegou nojo
De dia me serve sopa
À noite é só miojo.
Blenorragia
Jamais me esquecerei dos quartos mofados
Daquela casa indiscreta de Barra do Piraí.
Era a minha segunda morada
—a ilha dos meus pecados!
Paraíso de gonorréias infinitas
Pátria de milhões de chatos
—miríades deles viviam em mim grudados.
Mas eu era teimoso e todo fim de mês telefonava
Combinava o preço e cruzava a ponte!
Chegava a pé —às vezes ia de bicicleta.
No salão, cheio de luzes, as mulheres pareciam lindas
A Rodriguinha, a Gaúcha, a Amélia e a Soninha
Sorriam, dançavam e faziam a festa!
Era um amor pago —ó doce hipocrisia!
Mas tudo ali se conseguia...
Altas horas, satisfeito e aliviado
Rapidamente dormia.
Mas eu sentia muito medo e meus nervos tremiam:
Ganhara talvez uma nova gonorréia como brinde
E dentro de mim, isso era quase certo,
Milhões de novas bactérias e treponemas cresciam...
Fui mas não fui
Sempre quis conhecer o mundo.
Vivi sonhando com os mares de Cuba
Mas nunca passei além da fronteira.
Viajei nos livros de Neruda,
Imaginei como seria Temuco.
Com Cora —aquela que foi doceira.
Estive nos sertões de Goiás
Virei farricoco e chorei ante vendo a fogueira
Com Guimarães Rosa virei bicho
Fui aos sertões das Gerais
Fiz um grande sacrifício
Livrei-me da pele de macuco
E fui até Pernambuco
Mas lá não volto mais
Felicidade
Felicidade é a passageira
De um trem que nunca vem.
Vivo a esperá-la na estação da vida.
Se um dia ela chegasse
E o seu trem me atropelasse
Não contaria pra ninguém.
Talvez até gostasse...
Abelhas amiguinhas
As abelhinhas da Apis, coitadinhas,
Trabalham noite e dia sem parar.
Pelo mel e própolis que vão buscar
Não têm registro na carteira nem recebem bom salário,
Apenas têm uma casinha no apiário...
Elas vão pro campo e logo voltam
Trazendo um produto de que muito gostam.
Curioso é que ninguém lhes manda ou pede...
E as bobinhas nada têm, nem mesmo
Uma carteirinha da Unimed...
Serra da Mantiqueira
Se eu vivesse mais cem anos
Gostaria de passá-los namorando-a
Mirando-a pelo vão da minha janela.
Morto, quero viver nela
Na Serra da Mantiqueira
Minha estadia, prometo, será passageira!
Programando
Quando eu morrer
Aceito morar no Municipal
Não é bem o que eu queria
É um cemitério de pobre,
Tem barulho e fumaça de caminhão
Mas não faz mal: finjo que não escuto
Prendo a respiração...
Temores do Velho Elefante
Esses são os meus temores,
Confesso aqui os meus maiores segredos:
Morto, temo que me vejam feio,
Que vasculhem minhas narinas
E que reparem na engrenagem enrugada
Dos meus dedos...
É porisso que irei embora
Andarei à procura de um lugar discreto
Um lugar pra morrer que me seja perfeito,
Um lugar que seja deserto.
Quero morrer no anonimato.
Quero morrer num lugar
Onde ninguém me reconheça
Que seja mais longe do que perto...
Uma ilha no mar, um oásis no deserto.
Serve também uma caverna em Petra, na Jordânia
Ou quem sabe um bar, em Sevilha, na Espanha...
Tia Noêmia
Depois que a tia Noêmia morreu
Esqueceu o caminho de casa.
Até parece que criou asa.
Não adianta chamar por ela.
Está no céu, certamente,
Brincando de roda com os anjos
E de “vaca-amarela” com a gente...
Olguinha
Quando a Olguinha anda na calçada.
Ninguém se desvia dela.
Seu sobretudo é um “sobrenada”
É tão magrinha que parece que não existe.
Num dia almoça, noutro come alpiste.
O vovô que virou ovo
Cansado da solidão das netas,
O vovô se acomodou sob as cobertas:
Ele não precisa mais de amor —só de calor.
Sua mulher —agora apenas uma usina-reator
Já sabe que o galo de antigamente
Não existe mais —nem vagamente!
Juntinho dela, entanto, ele faz de conta:
Finge-se de jovem e volta no tempo
Quando vivia crescendo —era réptil novo!
E saía lépido de dentro do ovo...
Engenheiro
Deus é um engenheiro fraco
Formou-se em Vassouras...
Vive brincando na praia,
Erguendo castelos na areia
Sujeitos à vontade do mar...
Construiu a vida —essa grande bobagem
Um “faz e desfaz” que não acaba mais.
O dia de Domingo
Para a minha mulher
O domingo é um dia sagrado
Ela vai à missa, passeia e come pipoca
Com muito queijo torrado
Para mim, como o meu tempo não passa,
Espero, ando, disfarço
Fico peidando na praça.
Estação da Luz
A vida é um sonho,
Um pesadelo, talvez.
É como esperar um trem
Pra Aparecida
Que só passa uma vez
Com bilhete só de ida...
Boi bobão
O boi é mesmo um bicho bobão,
É feliz no pasto e não tem medo de nada
Encara o fim da vida como se tocasse viola
Altivo, viaja num caminhão-gaiola.
Na longa estrada, a caminho de Barretos,
Vai como se fosse rico
Artista de rodeio e carne de frigorífico...
E por quê não eu?
Ficaria muito grato a Deus
Se não precisasse morrer!
Mas se a Cora Coralina morreu,
Por quê não morreria eu?
Se Pablo Neruda morreu,
Por quê não morreria eu?
Se a minha mãe também morreu,
Por quê sobraria apenas eu?
Chocadeira
Era uma vez, um casal de velhinhos
Moradores de uma terra gelada
Que voltaram a sentir muito frio de novo...
Mas, pra aumentar o calor do ninho,
Tudo muito respeitosamente
Ficaram novamente juntinhos...
Ela se tornou uma santa-galinha
E ele virou um santo-ovo...
Olívia
A Olívia é pequenina
Mas muito forte. Dei sorte
Ela é uma dama:
A minha Maria Kodama.
Musa passageira
Ela ficava paradinha na porta da igreja
Às vezes ela passava sozinha.
Era tão bela que fiz um poema pra ela.
Agora ela ainda passa.
Mas é uma montanha de roupas que passa...
E eu nem ligo pra ela.
Percebo o seu olhar triste,
Perdido no horizonte, vazando
Através do vão da nossa janela...
O vizinho do andar de cima
Eu morava no andar de baixo
Ele no andar de cima.
Todas as manhãs, bem cedinho,
E no mesmo horário de sempre
Ele percorria o mesmo caminho:
Vinha da sala pro quarto
Fazendo a festa contente
Dava bom dia pros donos
Agitava o rabo inexistente
(um resto de rabo de antigamente)
O cachorrinho Branco era feliz
Anunciava o novo dia, tamborilava e fazia festa...
Quando veio o horário de verão, pensei:
“Agora ele perde a hora!”
Que nada! Acertou os seus “ponteiros”
E continuou fazendo o mesmo caminho,
Datilografando, escrevendo as manhãs,
Festejando a vida, como sempre, no meu teto...
Maria Fumaça
Viajante sem destino, a caminho de lugar nenhum,
Cheguei numa velha estrada de ferro abandonada.
Havia trilhos vermelhos, marcados pela ferrugem
O mato crescia entre os dormentes seculares
Eram apenas paus recheados de cupim.
Já fazia cem anos que o último trem passara por ali.
Eu, viajante solitário, cansado
Deitei-me entre os trilhos para vencer a noite
Todavia, só porque era eu quem ali estava,
Qualquer coisa, mesmo a improvável, poderia acontecer
A revogação da lógica acontece comigo!
Será que naquela noite o trem não passava?
Será que o trem não vinha?
Precavido, sempre alerta, não consegui dormir.
Ouvia um apito imaginário, de um trem que não havia
Era a maria-fumaça dos meus pessimismos
Alimentando a minha insônia eterna,
Furando a noite —rolando na minha direção...
Vó Judite
Minha Vó ficava sempre só.
Sua casa sempre vazia.
Era pra enganar a gente
Tinha fila de anjos na porta
Tava "assim" de anjos lá dentro!
Ninguém acreditava ou ouvia
Mas ela teimava, insistia
Que falava com Maria.
Meu grande medo
O meu grande medo
e meu último segredo
É dormir e não dormir
—morrer e não morrer,
Manter os olhos fechados,
Mas ficar vendo o tempo passar
A longa caravana dos séculos:
Esses camelos lerdos
Que andam devagar...
Reizinho
Quando me casei, mudei pra longe.
Nas férias de fim de ano
Eu voltava pra Taubaté.
Ficava um mês na casa da sogra
(na casa velha da rua São José).
Ali eu dormia em colchões macios,
Cheios de baratas da cor de nescafé...
Antigas almas penadas,
De pessoas queridas mortas
Me espreitavam atrás das portas.
Mas isso não importava —eu queria ser rei.
Reizinho me proclamei!
Nos hotéis eu pedia, mas na casa velha eu mandava.
Minha mulher —feliz na casa da mãe,
Num docinho se transformava.
A sogra, feliz com a visita da filha,
Virava minha dócil escrava.
Ah, como eu gostava!...
Eu gostaria
Eu daria tudo pra assistir à cena
Da minha própria morte.
Porém, se tiver força e alguma sorte,
Fugirei de perto.
Sonolento, medroso, depois de sorver
O último frasco de soro
Talvez um misto de analgésicos e morfinas,
Voltarei voando pras montanhas de Minas...
Eu e ela
Apenas uma coisa nos separa: tudo!
As circunstâncias, o tempo, o medo.
Sou velho, e ela é nova!
Eu já parei e ela ainda sonha.
Ambos somos medrosos,
E, mesmo assim, sinto que é possível amá-la,
Ó doce Amélia dos meus olhares,
De quem não sei sequer o nome verdadeiro!
Sei apenas dos seus passares e andares,
Dos meus desejos, do seu tímido sorriso
Quando finge que não me vê...
Sei do meu quase gozo quando a vejo
Esperando por alguém, que talvez seja eu mesmo,
Parada na porta da igreja...
Voltei pra Serra
Agora sou apenas cinza,
Sou um monte de poeira
Espero que ela ainda me queira...
Estou de volta pra minha terra querida
Pra minha Serra da Mantiqueira!
O guarda-noturno
O guarda-noturno ainda vive.
Eu sei que ele ainda vive.
É o mesmo que passava no meu tempo de menino.
Ainda ontem o assaltaram defronte à minha casa.
Ou será que ele é filho daquele guarda antigo?
Os seus apitos irritantes, a bicicleta barulhenta, são os mesmos.
Acho que ele ainda não conseguiu comprar uma bicicleta nova.
Também ele nunca passou pra receber!...
Quem será que paga o trabalho do guarda-noturno?
Antigamente, nas noites de chuva, o guarda-noturno nunca vinha.
O toque-toque das goteiras caindo dos telhados
Impunha mais respeito do que o seu apito.
E tudo continua igual.
O guarda-noturno sabe que os ladrões são preguiçosos,
E não exercem a função nas noites de chuva.
O guarda-noturno é malvado, gosta de saber
Que os meninos insones e bobos têm medo dele.
Bem feito! O guarda-noturno também tem medo de lobisomem.
Medo dos ladrões de verdade, do chupa-cabras,
Dos homens de capa preta,
Dos cachorros grandes —quase bezerros!— hidrófobos.
Medo de lobisomem, que, dizem ser quase-homem,
Dizem que eles surgem das vielas em segredo,
E cruzam a rua com olhares atrevidos.
Ah, esse guarda-noturno não me engana:
Eu sei que ele é o mesmo guarda de antigamente.
É ele que tirava meu sono e me dava medo.
Nas noites de chuva nunca apitava
E ficava bem quentinho na cama, juntinho da mulher
Ele vive de quê?
Mas eu dou um aviso: tem gente pensando em assaltá-lo novamente.
Desse jeito, o guarda-noturno nunca vai comprar uma bicicleta nova.
O pobre vai continuar apitando pela noite afora
E nunca mais vai me deixar dormir.
Felicidade
A felicidade é passageira
Virá num trem que nunca vem.
Vivo a esperá-lo na estação da vida.
Se um dia ele, de surpresa, me atropelar
Não contarei pra ninguém.
Acho que até vou gostar...
Platônicos amores
Amei a todas elas:
Amei a menina do circo
A filha da dona Isaura
A espanhola que usava trança
A que ficava na porta da igreja.
A que não gostava de dança
A que trabalhava na sapataria...
Tive muitos amores.
Vários e tantos, que perdi a conta.
Eu sentia o perfume delas
Decorei a cor das suas casas,
O desenho das suas janelas
Tomei mil banhos junto com elas
Gozei sem nunca lhes ter tocado
Ou conhecido os sabores...
Sonhos
Meus sonhos são galácticos
A maioria deles sonhos impossíveis.
São barcos feitos de vento,
Movidos a velas multicores
De papel celofane.
Se não forem realizados em vida
Façam deles minha mortalha colorida.
Vacina
Riqueza, fama e poder
São antídotos inócuos contra a morte.
Antes a tornam mais dramática.
Morrer no anonimato é talvez
Melhor sorte
“A troca”
Na “Breganha” tudo se pode trocar
Uma coisa, porém, não se troca lá:
Trocar um homem vivido
Por uma coisa velha e usada
Essa permuta ninguém faz.
A coisa tem o seu valor
Mas o velho já não serve mais
Não serve pra ser trocado
Menos ainda pra ser vendido.
Acontece que o velho tem marcas no corpo
Que denunciam o seu tempo passado
Virou uma “doença que pega”
Esse seu tempo vivido...
Eugenópolis, 1942
Era o ano de 1942.
Eu só nasceria três anos depois.
Lá, onde eu estava,
Vivia tranqüilo, dormindo descuidado.
Nasci, mas se tivessem me perguntado
Escolheria permanecer do outro lado...
Pensão das Meninas
Eu almoçava e jantava
Na melhor pensão de Taubaté
As donas eram duas irmãs solteironas
A Noêmia e a Marieta.
Elas faziam uma deliciosa comida
O fogão era de lenha, barreado de branco
Ninguém cozinhava melhor do que elas
Um dia a Marieta resolveu se casar.
Pra quê casar, Marieta?
A Noêmia ficou muito triste e morreu
Acho que foi de vergonha que ela morreu!
Aqueles fregueses solteirões
Que só iam vê-las por serem comilões
Nunca mais passaram por lá
—nem foram ao enterro da Noêmia!
Durante muito tempo ficamos perdidos
Com saudade do seu tempero
Vagamos pelas ruas de Taubaté
Achando que a Marieta não precisava ter se casado.
Nem jamais a Noêmia ter morrido
Ao passar pela rua XV de Novembro
A gente sentia o cheiro do velho fogão de lenha...
E um clamor silencioso subia do nosso peito:
Marieta, você nunca devia ter se casado!...
Você, Noêmia, jamais devia ter morrido!...
E agora, quem vai cozinhar gostoso pra nós?
O segredo das chaves
Zaré e Maria
Eram duas velhinhas
Elas já não trabalhavam, nem podiam.
Mas o tempo delas voava!
Aquele era um segredo que ninguém descobria
Tudo era muito simples: durante o dia
Procuravam as chaves
Que à noite perdiam...
Rugas de tempo
Eu era esperto
E descobri um estranho movimento
Que havia no Mercadão de Taubaté:
Os feirantes distribuíam rugas gratuitas
A quem comprasse frutas e legumes...
Elas eram colocadas escondidas nas sacolas
Astuto, fugi pra bem longe. e só voltei trinta anos depois
Mas foi tudo inútil —eu não precisava ter fugido:
Descobri que em todos os lugares
As rugas são oferecidas como brindes de Deus
Belos brindes, camuflados nas nossas sacolas...
Barranco do rio
No fim da estrada, no barranco do rio.
Serei um barco de recurso parco
Serei o navio e o capitão.
Outros barcos, feitos de papelão.
Também estarão descendo junto...
Centauros fantásticos
Com cabeça de homem e corpo de cortiça
Feito galho seco, pleno de corvos em busca de carniça.
Flutuarão, mortos de medo, descendo o rio...
Não, ninguém terá mais pressa.
O ritimo será ditado pela corrente
Sem motor nem vela, guiados apenas pela sorte...
Desceremos todos o grande rio...
O rio desconhecido da Morte.
Casa dos caminhos
Lembra-se das duas meninas?
Hoje elas já são velhinhas,
Que apagam e acendem velas!
Os moços de quem fugiam, hoje fogem delas...
Viveram na mesma casa por tanto tempo
Fecharam portas e tantas janelas
Que viraram presas voluntárias
E a casa virou dona delas...
Claudinha
É a minha sobrinha mais caladinha
Diferente das demais
Quando a beijo, abraço e aperto,
Ela fica brava e sai de perto...
Mas nos dias de festa
Quando chego de repente
(sou o seu tio maluco)
Ela me traz de presente
A primeira fatia de bolo
E o primeiro copo de suco...
Insônia
Os galos de antigamente
Anunciavam as manhãs
Pelo relógio da natureza.
Agora é mais fácil para eles:
Hoje, pra saberem se a noite já virou madrugada
Basta que vejam minha sombra recortada
Nas luzes da minha janela:
É onde estou eu digitando a minha tristeza
A única que ainda continua acesa!...
Tio Pedro
O meu tio Pedro Pedrinho
Foi um pedreiro de sonhos
Um dia ele foi o meu Príncipe Valente
Foi o meu barqueiro e único parente!
O comandante corajoso e amotinado
Que me levou através de um mar sem fim
Fui seu passageiro na hora mais triste
Digo a você, Pedrinho, muito obrigado,
Agradeço por tudo e nunca esqueço!
Sem você o que seria de mim?
Carona orgulhoso
O cachorrinho que vi desfilando
Passeando de carona,
Ao lado da sua dona
Desafiava as pessoas e as ruas da cidade.
Ele era feliz de verdade!
Só queria saber do vento.
Nem ligava para o povo
Não se importava se o carro era velho,
Nem mesmo se o carro era novo...
Trinta anos depois...
Bateu a saudade e voltei a Guará
Parei na mesma vaga,
Aquela usada pelo Luiz Gonzaga
Na sombra, ao lado da Matriz.
Mas não encontrei os velhos amigos
Que sempre almoçavam no Hotel Kafé
Eles não vão mais lá, ficaram distantes.
Eles nunca ouviram o “Ganso” conversar
Propagandistas agora são representantes.
Frustrado, voltei sozinho pra Taubaté.
Na Dutra, quase chorei, me lembrei do Osmaldo,
Um carona que andava sempre junto.
Do Carlos Diniz, contando a mesma história
Da Portuguesa derrotada —sempre o mesmo assunto
Então, e só então percebi
Que o meu plano de amostras tinha acabado.
Que não havia mais nenhum médico pra ser visitado...
Menina de Rua
Se quiser vê-la sorrir
Convide-a pra sair.
Dentro de casa ela fica triste
Fica na janela olhando a lua
Ela tem um belo teto
Mas sente-se uma “sem-rua...”
Haicai
Depois de vinte anos passados
Abriram o túmulo do japonês Ossada
Nenhuma surpresa:
Ele continuava o mesmo...
Dentista
A morte vem tão de repente
Que o sujeito mal sente.
É como quebrar um dente...
Na janela do trem
Quero viver os próximos anos
Talvez os meus últimos cem
Encantado e olhando pela janela do trem
Prestarei mais atenção aos sons da vida
Sem falar com ninguém
Filmarei com os olhos cada curva
E todas as retas do horizonte.
Anotarei na agenda da alma
Cada vale, cada monte...
Juro que nada mais escapará à passagem
Do meu último trem:
Registrarei na retina da alma cada toco queimado
Restos de antigas cercas rompidas
Por boiadas bravas, falsas manadas sonolentas...
Na janela do trem, açoitado pelo vento, parado ou correndo.
Quero tocar os campos verdes, cheirar a flor amarela
A fruta madura.
Abraçar a árvore, contornar o morro.
Descer ao fundo da caverna escura...
E quando estacionar no fim do mundo
Já sem corpo, apenas alma pura.
Porém pleno de lucidez (quase louco)
Eu pedirei a Deus pra voltar
E viver mais um pouco...
A fogueira de São João
Quando eu tinha nove anos
Isso há muitas luas passadas
As noites de Junho eram bem mais geladas...
Homens faziam fogueiras,
À meia-noite, haveria futuras e loucas caminhadas
Ao som do sino, sobre brasas vermelhas.
Diziam que São João deitava sobre elas
E ninguém se queimava
Eu era um tolo —ou um menino de muita fé?
Meia-noite em ponto, sem nada no pé
Avancei corajoso sobre o braseiro temido
Caminhei descalço sobre um manto de fogo vivo
Saí do outro lado, creiam-me, sem me queimar!
Olhei para trás apavorado:
No tapete rubro, meu trajeto ficara marcado
São João de fato me protegera
—ele realmente estivera no fogo deitado...
Edna
Quando eu tinha nove anos
(Era só eu quem sabia disso)
A Edna era minha namorada.
Mandei uma carta de amor pra ela
Acho que ela não gostava de mim
Sonhava talvez com algum rei mais bonito
Bem mais rico, do Oriente
Ela mandou que eu pulasse
Num mar de água quente!
Ainda bem que lá em Minas
Não tinha mar, felizmente...
Barranco do rio
No fim da estrada, no barranco do rio.
Serei um barco de recurso parco
Serei o navio e o capitão.
Outros barcos, feitos de papelão
Também estarão descendo junto...
Centauros fantásticos
Com cabeça de homem e corpo de cortiça
Feito galho pleno de corvos em busca de carniça
Flutuarão, mortos de medo, descendo o rio.
Não, ninguém terá mais pressa.
O ritimo será ditado pela corrente
Sem motor nem vela, guiados apenas pela sorte.
Desceremos todos o grande rio...
O rio desconhecido, afluente da Morte.
Ribeiro, o beijoqueiro
O Ribeiro tinha tanto medo
De perder o emprego
Que jamais contrariava seu patrão.
Nunca, nem jamais perdeu sequer um dia
Saiu de férias e morreu.
Chegou apenas um pouquinho atrasado:
Ainda assim, morto de vergonha,
Escondido num caixão, veio disfarçado...
A galinha cega
Um punhado de milho foi jogado no quintal
Há uma galinha cega bicando ali perto
A galinha que bica a esmo é a morte.
A faminta não escolhe tamanho ou cor
Nós somos o milho certo, macuco no embornal!
Pra evitar o bico certeiro, só tendo muita sorte
E é preciso fugir rápido do terreiro...
A lenda do amolador de facas
Diz uma lenda antiga
Aqui de Taubaté,
Que o amolador de facas
Amola também a faca da morte.
Dizem que quando ele passa na rua
Alguém morre naquela via.
A morte pode acontecer na mesma noite.
Ou na tarde do outro dia.
Mas as mulheres de Taubaté
Ainda saem das suas casas destemidas.
Agitando tesouras e facas cegas
Procurando os serviços do amolador...
A cidade continua crescendo, cheia de vida
Curioso é que o amolador de facas sumiu!
Talvez tenha sido vítima da própria lenda.
Mas o alegre vendedor de bijus,
Sobre quem não pesa nenhuma lenda triste,
Passa todos os dias na boca da noite,
Passa tocando um sininho de festa.
Vendendo mil cones de sorvete imaginário
—cones leves e marrons, feitos em massa de hóstia,
Com açúcar mascavo, canela e baunilha—.
São torradinhos e gostosos!
O mensageiro da morte, há muito, desapareceu.
Não veio nunca mais.
Os meninos de Taubaté pelo que vejo.
Não apreciam o amolador de facas
Parece que gostam mesmo é de lenda doce
Da doce lenda da vida...
Obrigado doutor!
O jovem entrou e sorriu quando viu o doutor.
É sempre assim: iniciada a entrevista,
A longa espera é esquecida —nada mais importa!
O médico difícil, o mesmo que custou abrir a porta.
É também o amigo das receitas certas...
Visitar o médico é uma alegria que o propagandista sente.
O médico (aquele que muitas vezes parece distante),
Esforça-se a cada momento para agradar a todo representante
E se lembrar do último lançamento...
Abracei a pasta durante muitos anos —foram quase quarenta.
Que eu me lembre, de uma tão longa lista,
Nunca soube de um médico que desgostasse do propagandista.
Vi (isto sim, eu vi) médicos apressados, ocupadíssimos,
Abrirem mão de preciosos minutos para ouvir histórias já ouvidas,
Reverem educada e pacientemente as mesmas literaturas,
(velhas como as sagradas escrituras),
Levando-as, com respeito, em cheias sacolas...
Nos corredores de hospital, nos consultórios ou na sala ao lado.
Encontrei-os sempre gentis.
E soube compreender aquele que me atendeu apressado,
Na saída ou na chegada, antes ou depois de uma cirurgia urgente.
(em que quase perdera o paciente), mas encontrava tempo para ouvir,
Com respeito e alegremente,
os meus velhos e repetidos apelos...
A secretária do médico já sabe —isto é sagrado:
Os representantes passam na frente!
Por causa disso vi muita briga com paciente.
Aos médicos, estes autores do nosso orgulho,
o meu sincero agradecimento.
Volto para lhes dizer obrigado!
Obrigado pela porta que me foi aberta.;
Pela mão estendida, pelo sorriso e pelo tempo poupado.
Esse momento, eu lhe asseguro, o doutor não perdeu:
Está guardado na pasta da vida —no cofre do coração!
Confesso que foi aquele um bom tempo vivido.
Em salas silentes (sempre com calma, aguardei).
Atrás daquela porta fechada —esperto sabia eu,
Havia um médico ocupado, receitando quem sabe um produto meu...
Rosário de bolhas
Primeiro a vida, depois a morte.
Depois da morte, novamente vem a vida!
Esse rosário infinito é a obra de Deus
Um Sêr poderoso e brincalhão.
É como se fosse um menino no quintal
A soprar um canudinho colorido
Fazendo as nossas vidas frágeis e breves
Breves como bolinhas de sabão...
Os amigos
Os amigos são como raros selos:
É bom tê-los
Mas nunca se deve lambê-los...
O outro lado
Tenho muito medo do outro lado
Vivo pensando nisso, apavorado
Mas, se um dia eu visse algo,
Uma pequena janela que se abrisse
Um sinal, uma sombra diáfana
Um ente querido que voltasse
Que saíse da parede e me assombrasse
Mostrando-me como se vive por lá
Eu nunca mais ficaria assustado...
Uma parada no posto da estrada
Um dia parei num posto
Num desses de beira de estrada.
Minha mulher voltou sorrindo pro carro
Ria de um lance que tinha presenciado:
Uma mulher, no box ao lado
Gemia de prazer e dizia: “ah, que delicia de mijada...”
Então pensei: “ao morrer não quero dar tal vexame”