993300>Ainda não se sabe ao certo a data exacta em que nasceu Camões, presumindo-se que o desconhecido desiderato ande à volta do ano de 1524. Também ainda não se sabe qual o lugar onde foi nado, se em Coimbra ou se em Lisboa. Os investigadores especializados e interessados, sobre o maior vulto da humanidade portuguesa, não encontraram por enquanto o papelinho ou a pedrinha que permitam designar sem contorno o dia da sua florescente vinda ao torrão lusitano.
Sabe-se, sim, o dia em que descontente partiu em corpo todo deste mundo: 10 de Junho de 1580, miseravelmente abandonado à sorte sua, sucumbindo numa tarimba dum esconso e sombrio hospício lisboeta. Talvez daí, derive a rota fama dos poetas que experimentam deliciosos sonhos em submissa decadência e acabam por finar-se sobre uma pobre e rasgada enxerga de indiferença.
Assim que o pó dos ossos mal levita, na primeira e azada oportunidade, a lúgubre bicharada humana, ambiciosa cambada de predadores necrófagos, se encarrega de fazer eclodir o auspicioso vendaval da glorificação, e nasce então o mito: um estoico náufrago, em pleno mar revolto, nada com um dos braços bem erguido das águas, onde segura o padrão sublime de todo um povo, passado, presente e futuro: Os Lusíadas.
És sem dúvida, Luís, pelo espólio deixado, o génio impulsionador da Língua Portuguesa, o cordelista épico, e sobretudo o versejador voraz que saboreou o fruto para dá-lo pleno aos vindouros à flor da boca e da pele, vigorosamente.
Ora, em superficial memória, em 1580 reinava em Portugal um padre, o Cardeal Dom Henrique, um símio universal sem macaca e sem macaquinhos - algo, por uma outra via, de Durão Barroso hodierno - que estimou colocar uma segunda coroa nos sucessivos três Filipes que amordaçaram a alma portuguesa ao longo de 60 anos.
Estava-se à entrada do Verão e o zé-povinho - quiçá na altura houvessem mais Maneis - começava a suar as habituais gotas do sangue sempre em vão que alimenta há miléniops as goelas dos vampiros das igrejinas e palacianas torres.
O Luís, que andaria à época pelos cinquenta e tantos anos de existência, tinha entrado em derradeira moléstia, daquelas em que o doente tosse para respirar e emite uma espécie de som oco que dá a nítida sensação de que o moribundo tem os pulmões furados.
Então, o fiel e indefectível escravo jau, condigno cão-humano, preciosidade que o aventureiro vate trouxe de longínqua viagem, abeirou-se de seu amo para lhe espremer, sobre os ressequidos lábios, umas gotas de sumo da laranja que tinha mendigado nas ruelas de Lisboa.
Inclinando-se sobre um dos ouvidos do Luís, segredou-lhe arrastadamente: "Senhor... Consta que o rei entregou Portugal aos espanhóis...".
Camões mais amareleceu até num ápice se tornar azul, hirto, de olhos em relâmpago parado, há exactamente 425 anos e o sol apagou-se sobre o relógio de pedra da gesta lusitana. Caído ao lado da tarimba estava uma folha de papel que o criado jau apanhou e encostou ao peito: |