(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 56ª. crónica da série*. São crónicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)
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DOIS PERSONAGENS EM BUSCA DE UM AUTOR
Apareceu Salomé, em plena Sexta-feira Santa, com véus e lenços transparentes, dançando com o ventre insinuante, para o desespero de seu padastro Póncio Pilatos. Os olhos felinos, ferinos e queria a cabeça de João Batista. No prato, inteirinha, para certificar-se de sua morte. Idéia fixa. A voz era de uma mexicana.
Em seguida, saí pela avenida oceànica -"el malecón" - de Santo Domingo, na República Dominicana.
A maresia forte devolvia o cheiro dos despejos dos esgotos, enquanto casais, Ã s centenas, caminhavam pela calçada e alguns turistas falavam em suas línguas secretas, para o próprio entendimento e satisfação. Um mendigo meteu a mão no meu peito, buscando uma esmola. Tremi de susto. Eu procurava os meus amigos Sofia e Mário nalgum restaurante dos hotéis da orla marítima.
Ainda estava entorpecido, depois de um sono atravessado, no final da tarde, cansado de tanto caminhar pelas ruas do setor colonial da"capital dominicana. Igrejas e casarões de pedras claras e sólidas, como testemunhos de cinco séculos de perplexidade e esperança. Tão alto fala a vontade humana em suas utopias e obstinações!
Por ali andou Cristóvão Colombo e ali foi enterrado. Alguns prédios conservam linhas tardias da arquitetura medieval espanhola, em que os traços civis, militares e religiosos se confundem. Em Santo Domingo começou a América e o processo de descobrimentos, da conquista, da evangelização e domínio espanhol no Novo Mundo.
Regresso ao Hotel V Centenário a tempo,de assistir à crucifixão de Cristo, via satélite. A cores. King of the Kings.
Sofia Vivo é artista e andarilha. Tem um vigor dominante, uma presença muito forte e
desinibida. Mário de Andrade é suave como um amante domesticado fazendo a corte. Sempre irónico.
Os dois chegaram a Porto Rico, via Aruba, depois de lerem alguns capítulos de Relógio, não marque as horas enviados pelo correio. Não os esperava mais, pensando que o entusiasmo pela viagem arrefecera.
- Vê lá como nos coloca no seu relato - brincou Mário, que não é o escritor mas é sim economista de um banco continental de desenvolvimento.
- Depende. A realidade é sempre mais cara do que a fantasia, mas podemos transformar fantasia em realidade a gosto do freguês ... - brinquei eu. Como quer que os descreva? Como turistas novos-ricos buscando fan¬tasias ou como intelectuais entediados fugindo da realidade?
Eu havia faltado ao encontro marcado para o lançamento de nossa antologia poética, na Flórida. Sofia foi a animadora e produtora do evento, na Feira Internacional do Livro de Miami. Eu sabia que ia ser um fracasso. O livro saiu atrasado da gráfica, não houve tempo para incluir o vernissage na programação oficial e fiquei retido em San Juan por causa da greve da American Airlines. Poupei-me.
No ambiente limitado de Brasília, onde existem tantos escritores quanto academias literárias, Sofia é polivalente: poetisa, bailarina, artista plástica... Uruguaia, cidadã do mundo, mantém-se sempre ativa nas lides culturais. Não gosta da cidade, gosta do Mário, que é brasileiro e está estacionado ai por razões profissionais.
Nossa amizade é recente mas assídua, graça ao calor humano com que ambos brindam suas relações pessoais.
Alugaram um carro e eu saí com eles na condição de cicerone. Sem planos. Divertindo-nos. É possível dar a volta à ilha em dois dias, graças à s estradas e autopistas. Horas de observação e reflexão num veículo em movimento. Olhando pra fora e para dentro, e para a vida vivida.
- Os ingleses colecionavam países, tinham colónias nos quatro pontos[ cardeais. Outros colecionam vistos em passaportes ... A ver qual de nós esteve em mais países. - sugeri, para passar o tempo.
Sofia, que já desempenhou múltiplos papéis na vida e tem uma inclinação pelo aprendizado/ensino de línguas estrangeiras, ganhou folga: esteve em mais de sessenta, contra os meus quarenta e os vinte do marido.
A paisagem nova e repetitiva, impondo comparações a partir ~ experiências de cada um. Cidades, povoados, praias, balneários e o sol amenizado pelo ar condicionado do carro. Uma parada para observar a costa atlàntica desde EI Yunque, uma breve caminhada pela praia de Fajardo, um mergulho no mar em Guajataca e as lagostas e camarões ~ costa do Caribe, que a gente não sabe se são frescos ou se foram importados das ilhas vizinhas ...
Logo saímos buscando os classificados dos jornais para saber as oportunidades de excursão. No Caribe qualquer ilha é país. Ou cada país é uma ilha. Até as mais diminutas, perdidas no oceano. E falam as línguas dos antigos proprietários, ou suas degenerações (degenerações pode parecer uma expressão preconceituosa, usemos então palavras mais apropriadas: mestiçagens, fusões, variações) como o papiamento e o créole. Foi como chegamos à República Dominicana.
Sofia tem uma capacidade extraordinária para negociar, para barganhar, o que é providencial nestas circunstàncias. Se ela fosse a Cúcuta, como a minha amiga Blanca Alvarez, seria capaz de comprar pelo preço justo enquanto os tímidos e os tolos saem sempre lesados. Sabe articular, tem um sorriso por detrás de uma certa agressividade na voz, é firme e persistente. Mas o Mário garante que é mais pelo prazer do desafio do que pelo desejo de levar vantagem; que ela é capaz de pagar espontaneamente a diferença conquistada na barganha quando o vendedor cai-lhe bem. Eu acrescentaria: com a satisfação de ter sido generosa, com o dinheiro alheio ... Mas é provável que não seja bem assim, em toda parte. Há lugares em que os preços são anunciados acima do valor real para permitir a pechincha, garantindo o lucro do negociante e a satisfação de um cliente como ela.
Os dominicanos são artistas nas artes da trapaça com os turistas, facilitados pela sua simpatia. Indiscutivelmente, um povo agradável e comunicativo. No càmbio negro o dólar sobe uns dez por cento, chance para os doleiros. Eu não sei lidar com essa gente. Prefiro o certo ao duvidoso, o seguro ao risco. Sofia quis tentar, por achar divertido. Os dois malandros tentaram trapaceá-la, passando as cédulas celeremente e dobrando outras, contando-as em dobro. Ela percebeu e desmascarou o leviano. Saiu, irritada do episódio. Mais irritada do que se tivesse sido enganada.
- Incompetentes, nem roubar sabem! - esbravejou.
Ela parecia frustrada, como se desejasse experimentar a situação com um verdadeiro e hábil trapaceiro. Mário ainda pensou em ensinar o malandro, baseado na experiência de ter sido enganado antes na Tcheco-eslováquia. Apelei para o humor:
- Esses coitados têm muito o que aprender. Melhor fariam se fossem treinados pelo teu marido que é banqueiro e sabe fazer bem essas coisas ...
Depois ela negociou o preço da charrete. O cocheiro pedia cento e vinte pesos, ela ofereceu oitenta. Acabamos embarcando por cem. Mas o cavalo ficou irredutível, negou-se a sair, emperrou de vez. O pobre homem começou a agredir o animal e nós preferimos pular fora.
- Oferece cento e vinte, quem sabe ele desemperra ... - concluí.
Mário e Sofia ainda tiveram fólego para uma viagem à s Ilhas Virgens mas eu preferi ficar e cuidar dos meus afazeres. Logo manifestaram o desejo de conhecer Judith pessoalmente. Já a conheciam da leitura das primeiras partes do presente relato. No encontro, olharam-na com certa curiosidade e simpatia. A mesma sensação que deve ter experimentado Leila ao conhece-la. Judith sempre passa uma sensação de doçura e desconforto.
Próxima crónica da série: (57) LOST CITIES IN THE AMAZON
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de crónicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.
Iremos publicando as crónicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...
Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".
Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.