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Cronicas-->A perfeição da existência de deus -- 16/06/2003 - 21:35 (Luciene Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A perfeição da existência de deus

Não descobriram a cura para o càncer. Tampouco para a AIDS. Nem mesmo para a gripe.
E as TV s anunciam o quanto o mundo é perfeito pois já mapearam o universo e conhecem o que há no fundo do mar.
E todos os dias estão descobrindo mais e mais mistérios.

Mundinho, nordestino, de mãe sem pai, sem pai também Mundinho, semi alfabetizado, ajudante geral, descobriu seu caminho. Já foi plantador de alimentos nos roçados das cidades interioranas, office boy, palhaço de circo, servente de pedreiro, encanador, eletricista, crente. Já foi alcoólatra, já se apaixonou, já fez mulher sofrer, já chorou. Já fez mandingas, já tentou seguir orientações médicas, já foi cobaia de residentes nos grandes hospitais da vida. Já pegou ónibus cheio, trem lotado. Já foi assaltado e humilhado. Sabe o valor que o pão tem para a vida. Mundinho precisa comer.

Mundinho nasceu sem os dois olhos. Como seus irmãos. Como toda a humanidade. Aos sete anos, entregaram-lhe aos bancos de outros cegos. Absorveu um pouco do que tinham. Dali, capengando, galgou maiores nacos de vida. E seguiu adiante. Batendo a cabeça em portas, valas, becos, paredes tortas, ruas curvas, postes altos, arvores úmidas. Deparou-se com o homem. Aquele pregado. E bebeu sangue, comeu carne. E maldisse, de joelhos, as faltas que não sabia cometer. Até que descreu e principiou a bateção de cabeça. Era menos cego. Mas precisava aprender.
Mofou noites meio a tomos empoeirados. Anotou e brigou com o que anotou. Sentiu saudades do homem pregado e descobriu um credo. Lá. Fresco. No ser quem era. Aquietou.
Marrudo. Teimoso. Em cheiro de brilhantina e água de colónia, divisou mais um nasgo de luz. Enamorou-se. Deu cria.
Acordava em colchas e almofadas, num clímax de vida. Era isso o que queria. E durou pouco. Precisava de dinheiro.

As misérias continuam sendo expostas na tela colorida e agora aparecem as mulheres da Patagónia com suas argolas nos pescoços. Elas não imaginam que Mundinho está olhando essas barbaridades normais, ou que ele já gostou de contar piadas sobre português, homossexual, corno, negro e assalariados. Elas não sabem dos planos de Mundinho, pois cada qual conhece a própria realidade. E é nela que deveriam viver para conseguir produzir algo mais que o externo caótico em que Mundinho vive com seus compatriotas. Ele conhece o inferno e o paraíso. E nenhum deles é mais importante, pois ele consegue se centrar na própria realidade.

À noite, o riso é pouco. A maioria das crianças nascem à noite. Os objetos ao redor parecem de cristal. Tudo é frágil. O caminho parece um lago. O vento que balança os galhos parecem fortes. E frios. Tudo se parece na solidão que é.
As pessoas sorriem, vestidas em suas roupas de baile. Jóias ofuscam a realidade, dando lugar a uma ilusão malevolente. Perguntas gentis falam em sutis abstrações, mostrando do frívolo humano. Chapéus e echarpes dançam vaidades. Perfumes importados dizem de sentidos deturpados. E bichos continuam sendo caçados.
Mas Mundinho não está mais aqui. Está dormindo. Poupando-se para o dia. À noite, ele dorme.

Se deus aparecesse para Mundinho agora e lhe desse rios de ouro, Mundinho já não
saberia dizer se isso pode ser bom. Ou ruim. Mundinho vive entre a vida e a
morte. E já se habituou a isso. Mundinho vence a si mesmo, a cada santo ou
endemoninhado dia. Para Mundinho, não existe mais bem ou mal. Apenas uma
situação real. Mundinho consegue conversar com o arco-íris e os pássaros lhe
sorriem. Mas não há alegria nessas coisas. Nem tristeza. Mundinho é feliz. As
vezes chora. As vezes ri. E não é um desgraçado. Mundinho não sente saudades. Vê a vida como uma passagem. E não acredita mais em morte. Não da forma como os mortais acreditam. Mundinho não sente mais raiva do pai que nunca teve. Isso foi numa época romantizada. Agora, nada disso tem importància.

Mundinho não se preocupa com a desordem económica do mundo. Tampouco lhe soa nos ouvidos a revolta pelo travamento dessa sociedade que não se vê. Tampouco vêem Mundinho. E ele não tem inveja nem maledicências. Conseguiu um nível de existência diferente da dos santos. E Mundinho é eterno. Como a noite em que ele dorme. A noite que dorme Mundinho.

Para conseguir a eternidade, deus forçou Mundinho. Deu-lhe ao corpo esta doença
medrosa, como uma lepra, dessas que fazem com que os outros seres se
afastem. Dessas que corroem esperanças. Dessas que fincam a gente num
madeiro com cravos nas palmas das mãos. Dessas que fazem com que a gente
fique grudado com pregos nos pés. E de lá de cima, a gente olha o mundo,
isento de opiniões, pois a gente se reconhece em cada corpo ali embaixo,
percebendo a nossa contribuição para o que a turba faz. E Mundinho não sabe como beijar os pés desse deus, pois deus escondeu-se em suas feridas. Cada momento agora é deveras precioso para Mundinho. Tanto pode ser o primeiro, quanto o ultimo. E Mundinho já se cansou de chorar. Todas as vezes em que tentou chorar, começou a gargalhar, pois aquilo tudo era forte demais para ele. Para Mundinho, a existência é uma seara, como um campo de onde se colhem frutos. O destino do fruto, se bem ou mal, depende da época em que vive agora.

Mundinho sabe que deus existe. Os cientistas estão pensando em descobrir isso agora. Mas precisam saber primeiro que o mundo não é perfeito. E que a cura para a gripe ainda não aconteceu. Por isso não adianta excluir homens da sociedade, pois a sociedade é formada por homens. E eles são imperfeitos. Assim como a gripe, como o càncer e como a AIDS. E sabe-se lá que coisas mais.

L.Lima




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